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Perspectiva processual coletiva das ações eleitorais

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4. AÇÕES ELEITORAIS COMO AÇÕES COLETIVAS LATO SENSU

Em outro momento desse trabalho dissemos que as ações coletivas se prestam à defesa de direitos transindividuais; passaremos agora para a análise dessas questões, esclarecendo porque consideramos os bens jurídicos objeto das ações eleitorais como direitos difusos, bem como as conseqüências processuais de reputá-las ações coletivas lato sensu.

Como primeira providência, impõe-se a definição do conceito de direitos transindividuais, e, em meio a estes, a menção aos direitos difusos, que mais nos interessam, por adequarem-se à questão eleitoral. Tal definição será extraída da doutrina de Hugo Nigro Mazzilli 5, nos seguintes termos:

Situados numa posição intermediária entre o interesse público e o interesse privado, existem os interesses transindividuais (também chamados de interesses coletivos, em sentido lato), os quais são compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas. (...) Difusos – como o conceitua o CDC – são interesses ou direitos "transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato". (...) São como um feixe ou conjunto de interesses individuais, de objeto indivisível, compartilhados por pessoas indetermináveis, que se encontram unidas por circunstâncias de fato conexas. (MAZZILLI, 2004, p. 50)

Complementando o conceito, o mesmo autor passa a fazer uma classificação dos direitos difusos em diversos grupos e, nessa análise, menciona que há interesses difusos "tão abrangentes que chegam a coincidir com o interesse público" (2004, p. 51). Sob esse conceito vislumbramos os direitos abarcados pelas ações eleitorais. Como pudemos delinear anteriormente, todas as ações estudadas – guardadas as devidas distinções - têm, como objetivo comum, a finalidade de garantir a legalidade do sufrágio, a lisura do processo eleitoral e, por conseqüência, a manutenção do status da democracia brasileira.

Esses direitos são pertencentes a toda a população brasileira, sejam eleitores ou não, posto que a todos interessa a manutenção da democracia e o bom exercício das funções políticas do Estado, o que somente poderá acontecer se o processo eleitoral estiver livre de qualquer mácula. Constitui também interesse comum a todos os eleitores (de forma indivisível) a garantia da sua liberdade de voto, bem como que a formação de sua opinião política não seja influenciada por outros fatores, como a corrupção e a captação ilícita de sufrágio. Ademais, interessa a todo o povo da nação o preenchimento das condições de elegibilidade por aqueles que pretendem disputar o pleito eleitoral, pois, somente com a possibilidade de diferentes candidaturas resta preservada a liberdade de escolha, mediante o julgamento das diversas propostas políticas apresentadas. E, por fim, constitui direito de cada cidadão o sufrágio universal, entendido este como o direito de votar e ser votado.

Como se colhe das afirmações acima, os direitos postos em discussão por meio das ações eleitorais são típicos direitos difusos, enquadrados na categoria mencionada por Mazzilli, ou seja, os que são tão abrangentes que chegam a coincidir com o próprio interesse público. E tal premissa decorre simplesmente do fato de que os elementos concernentes à lisura do processo eleitoral são corolários constitucionais, motivo pelo qual, lato sensu, se dirigem as ações eleitorais à garantia do cumprimento da própria Constituição Federal.

A respeito da Ação de Impugnação de Mandato Eletivo, dissemos anteriormente que a doutrina a considera verdadeira "ação popular eleitoral". Diante da importância do referido instrumento jurisdicional, o jurista Gregório Assagra 6 destina a ela considerações em seus estudos de direito processual coletivo, que muito bem definem a sua natureza de ação coletiva. Por isso, transcreveremos:

Portanto, o objeto da ação de impugnação de mandato eletivo é um direito difuso decorrente da legitimidade, normalidade e integridade do pleito eleitoral que foi lesado pelo abuso do poder econômico, pela fraude ou pela corrupção eleitoral. Com efeito, é a ação de impugnação de mandato eletivo espécie de ação coletiva, pois o que se tutela por seu intermédio é um direito difuso (espécie de direito coletivo em sentido amplo: art. 81, parágrafo único, I, do CDC), cujos titulares são indeterminados e indetermináveis, o objeto é indivisível e a origem decorre das circunstâncias fáticas ensejadoras de um dos ilícitos acima (abuso de poder econômico, fraude ou corrupção). E mais: é uma ação coletiva pertencente ao direito processual coletivo comum, haja vista que o fato que a motiva é um conflito coletivo ocorrido no mundo da concretude. (ALMEIDA, 2003, p. 317)

Tomando por base essa doutrina, podemos estender a mesma análise às demais ações, verificando que, na Ação de Impugnação de Registro de Candidatura, as circunstâncias de fato residem na falta de uma das condições de elegibilidade ou incidência de inelegibilidade; na Ação de Investigação Judicial Eleitoral, na ocorrência de algum ilícito relativo a abuso de poder econômico ou político, e no Recurso Contra a Diplomação, na incidência de algum dos motivos elencados no art. 262. do Código Eleitoral. Todas, portanto, circunstâncias fáticas que, por viciarem o processo eleitoral, contrapõem-se ao direito difuso de "normalidade e integridade do pleito eleitoral".

Outro ponto crucial à caracterização das ações eleitorais como ações coletivas diz respeito à legitimidade ativa para a interposição destas. Conforme delineamos no tópico anterior, todas as ações eleitorais têm como legitimados comuns os candidatos, os partidos políticos, as coligações e o Ministério Público. Cada uma dessas pessoas, agindo no pólo ativo da respectiva ação, está atuando como legitimado extraordinário, defendendo, em seu próprio nome, direitos (aqui já mencionados) pertencentes a um número indeterminável de pessoas, sendo tal legitimação conferida por força da lei eleitoral. Nesse ponto, devemos trazer, de forma breve, o entendimento defendido por Nelson Nery, quando pondera que a legitimação nas ações coletivas não é propriamente extraordinária, e sim uma legitimação autônoma para a condução do processo. E tal se justificaria porque, para o jurista, a legitimação extraordinária pressupõe uma substituição processual, onde os titulares do direito poderiam defendê-los individualmente; para este, portanto, nas ações coletivas em defesa de interesses difusos, a lei elegeu alguém para a defesa de direitos, porque seus titulares não poderiam individualmente fazê-lo.

Da adoção do entendimento das ações eleitorais como espécies de ações coletivas decorrem dois postulados principais, bastante úteis à garantia da efetivação do Estado Democrático de Direito. O primeiro deles consiste na aplicação do princípio da máxima efetividade do processo coletivo, preceito que, levando em conta o máximo interesse social no bom resultado da demanda coletiva, impõe ao Judiciário uma conduta que possibilite o seu melhor aproveitamento, o que se materializa tanto na produção de provas quanto nas medidas de tutela que garantam essa máxima efetividade. Mais uma vez devemos citar Gregório Assagra, tendo em conta a lucidez de suas lições:

O interesse social, sempre presente nas ações coletivas, impõe essa efetividade no processo coletivo. (...) Com base nesse princípio, o aplicador do direito deverá se valer de todos os instrumentos e meios necessários e eficazes – decorrentes do princípio da máxima amplitude da tutela jurisdicional coletiva -, para que o processo coletivo seja realmente efetivo.(...) Com efeito, por força do princípio da máxima efetividade do processo coletivo, o Poder Judiciário tem, no direito processual coletivo comum, poderes instrutórios amplos e deve atuar independentemente da iniciativa das partes para a busca da verdade processual e a efetividade do processo coletivo. Isso não significa que tais poderes sejam ilimitados. Os limites a esses poderes instrutórios decorrem da própria Constituição Federal, que: garante o contraditório (art. 5º, LV); proíbe a utilização de provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, LVI); exige que todas as decisões jurisdicionais sejam fundamentadas, sob pena de nulidade (art. 93, IX). (ALMEIDA, 2003, p. 577)

Com esteio no princípio citado, adquire o julgador maiores poderes quanto à ação, devendo empregar todos os mecanismos – logicamente, aqueles que não vão de encontro à legislação eleitoral – para que seja conferida, no caso concreto posto a seu exame, o resultado que se apresente mais eficaz à preservação da legalidade e idoneidade do sufrágio, regra que se refletirá na atividade probatória e na valoração dos bens em jogo.

O segundo postulado principal, que imprime importante inovação ao processamento das ações eleitorais, é a aplicação do sistema da coisa julgada no processo coletivo, segundo os moldes do artigo 103, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor, conforme a disciplina da coisa julgada secundum eventum litis. Instituiu o diploma consumerista um sistema processual de defesa dos interesses transindividuais, no qual a coisa julgada recebeu tratamento diferenciado e inovador no ordenamento brasileiro, tendo, assim, sido especificado um tratamento particular no que tange a cada categoria de direito coletivo (lato sensu).

O artigo 103, I, do CDC disciplina as características da coisa julgada nas ações cujo objeto é a defesa de direitos difusos: é ela erga omnes, ou seja, produz efeitos extensivos a todas as pessoas e secundum eventum litis, ou, dependente de resultado do processo. Desse modo, sendo a ação julgada improcedente por falta de provas, não se verificará a coisa julgada, podendo qualquer legitimado intentar nova ação, com idêntico fundamento, valendo-se de prova nova ou não utilizada no primeiro processo, que possa subsidiar suas alegações.

Entendemos que a aplicação da coisa julgada segundo o sistema do CDC, nas ações eleitorais constituirá importante arma na defesa do sistema democrático, quiçá no que se refere ao combate à corrupção, à captação ilícita de sufrágio e à prática do abuso de poder político e econômico, quando, muitas vezes, não consegue o autor o suporte probatório necessário à comprovação das condutas, nos curtos prazos estipulados pela lei eleitoral. Desse modo, extinta a primeira ação (mediante julgamento de improcedência), em virtude da falta de provas, mitigados estariam os prazos de interposição, para que qualquer legitimado, de posse de novas provas, pudesse concretizar o intento de defesa do sistema democrático e da liberdade de voto.

Contudo, devemos reforçar, ao final, que não se defende aqui a aplicação de todo o sistema processual coletivo, presente no CDC e na Lei da Ação Civil Pública, pois deve-se sempre ter em conta que o processo eleitoral tem contornos definidos em legislação própria, sendo a legitimidade e o rito de cada ação definido pela lei que a instituiu – à exceção da AIME, cujo rito é o mesmo do processo civil, por falta de previsão legal específica -,motivos pelos quais deve valer aqui o princípio da especialidade. No entanto, levando-se em consideração a importância dos dois postulados aqui tratados, e também que estes não encontram óbice na legislação eleitoral, deve-se sim pugnar pela sua aplicabilidade no cerne das ações eleitorais próprias, tendo em vista o benefício que podem trazer à segurança e legalidade dos pleitos.

Em suma, a exegese restritiva da lei eleitoral deve ceder lugar à visão do sistema jurídico como um complexo de normas aptas a assegurar os interesses sociais e combater a cultura corrupta ainda existente em nosso país quando o assunto é a disputa dos pleitos eleitorais e o exercício dos cargos eletivos.


5. CONCLUSÃO

A Constituição de 1988 trouxe clara regulamentação do sistema eleitoral brasileiro, consolidando como bases do Estado Democrático de Direito o sufrágio universal e o voto direto e secreto, garantida a total liberdade de escolha, livre de pressões ou influências externas, que não as permitidas segundo a própria legislação eleitoral (propaganda política, por exemplo). Para tanto, consagrou também um sistema de inelegibilidades inatas e cominadas, com vistas a barrar a participação, no processo eleitoral, de pessoas contra as quais pende alguma condição impeditiva, seja em virtude da falta de condição de elegibilidade, seja em face da prática de algum ilícito eleitoral.

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Na legislação eleitoral, foi formulado todo um sistema de defesa da legalidade e idoneidade do processo eletivo, composto de diversas ações próprias, cada uma com objeto, legitimidade e momento de interposição particulares, mas todas voltadas ao interesse público da garantia da liberdade de voto e o bom exercício do direito de sufrágio.

Todas as ações estudadas podem ser encaradas com a qualificação de ações coletivas, o que se afirmou levando em consideração que a legalidade e idoneidade do processo eletivo se caracterizam como direitos difusos, espécie de direitos coletivos, pertencentes a toda a população, de forma indeterminada. Considerou-se, também, a conformação da legitimidade ativa dessas ações, em torno da qual foi possível concluir ser esta uma legitimação extraordinária (como prefere a maioria da doutrina), também considerada como autônoma por Nelson Nery, classificação da qual não ousamos dissentir, já que baseada em explicação plenamente verossímil.

A partir do momento em que são aceitas as ações eleitorais como ações coletivas, devem ser, no contexto processual, aplicados os postulados consistentes no princípio da máxima efetividade da tutela jurisdicional coletiva e da coisa julgada secundum eventum litis, pois estes possibilitarão uma maior eficácia das ações que se prestam ao nobre objetivo de garantir o reestabelecimento do sistema democrático, quando afetado em algum de seus elementos.

Concluímos, então, que o sistema jurídico não deve ser visto como compartimentos estanques, onde cada legislação cuida apenas de uma área específica. Ao contrário, uma visão panorâmica do sistema legal permite compatibilizá-lo com o ordenamento constitucional, em suas mais diversas áreas; e tal não é diferente quando se trata de direito eleitoral. Por fim, acreditamos que não devem os representantes do Poder Judiciário conscientizar-se da importância da sua atuação não como simples exegeta da lei, mas como um intérprete ligado à realidade do seu tempo, de forma a prestar relevante serviço ao povo brasileiro, já tão farto da corrupção e dos abusos daqueles que exercem ou pretendem exercer cargos eletivos em nosso País.


6. REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003.

COSTA, Adriano Soares da. Instituições de Direito Eleitoral. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.

MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. Rio de Janeiro: Impetus, 2004.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed., revista e atualizada. São Paulo: Malheiros, 2004.


NOTAS

1 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed., revista e atualizada. São Paulo: Malheiros, 2004.

2 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

3 RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. Rio de Janeiro: Impetus, 2004

4 COSTA, Adriano Soares da. Instituições de Direito Eleitoral. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.

5 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

6 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003.

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Sobre a autora
Isabelle de Carvalho Fernandes

advogada em Natal (RN)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDES, Isabelle Carvalho. Perspectiva processual coletiva das ações eleitorais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 775, 15 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7156. Acesso em: 18 nov. 2024.

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