Da (in) constitucionalidade do art.156 do código de processo penal e a ambição da verdade

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Identifica-se o fundamento de existência do processo penal num Estado Democrático de Direito, enquanto instrumento de proteção dos direitos e garantias fundamentais, destacando que a ambição da verdade não é compatível com um processo democrático.

RESUMO:A pesquisa tem por escopo identificar o fundamento de existência do processo penal num Estado Democrático de Direito, enquanto instrumento de proteção dos direitos e garantias fundamentais, destacando que a ambição da verdade não é compatível com um processo penal humanitário. Partindo desse raciocínio preliminar, foi possível verificar as bases ainda inquisitoriais do processo penal brasileiro, assentado na busca da verdade real, pois a gestão das provas continua nas mãos do juiz (princípio inquisitivo) ex vi o artigo 156 do CPP. No estudo, foi possível vislumbrar a não conformidade da lei infraconstitucional (artigo 156 do CPP) com os mandamentos constitucionais e internacionais, observando-se a não aplicabilidade do princípio in dubio pro reo, gerando a então ambição pela busca da verdade real no processo penal. Desse modo, através do estudo de teorias críticas sobre processo penal, chegou-se à conclusão de que há uma deficiência ideológica ultrapassada entre o CPP, de matriz autoritária, que impede o seu avanço.

PALAVRAS CHAVE: processo penal, constituição, verdade real.


INTRODUÇÃO:

A presente pesquisa tem como objetivo desvelar o fundamento de existência do processo penal num Estado Democrático de Direito e sua relação com a produção da verdade, analisando a natureza jurídica do processo enquanto situação jurídica, a imparcialidade do juiz e a gestão da prova como núcleo fundante do sistema processual penal.

Assim, pretende-se analisar o artigo 156, II do CPP, a fim de se verificar a sua (in)constitucionalidade e “a busca verdade real” no processo penal.

O objetivo principal é demostrar qual o fundamento do processo penal, enquanto conquista civilizatória, num Estado Democrático de Direito, pensado como instrumento de aplicação do direito penal, mas, também, como um instrumento a serviço de um projeto democrático traçado pelo texto constitucional.


MATERIAL E MÉTODOS:

A partir dos objetivos levantados, foi definida a metodologia de pesquisa. Esta constituiu-se em pesquisa bibliográfica descritiva onde ocorreu a realização de leituras a partir da Constituição Federal e da legislação infraconstitucional observando considerações conceituais sobre o processo penal e seus sistemas, assim como o estudo da sua “evolução” saindo de 1941 até 1988 (Promulgação da Constituição).


RESULTADOS E DISCUSSÕES:

O processo penal é uma guerra [5]e a sua natureza jurídica é desvelada pelo conceito de situações jurídicas que brotam ao longo do procedimento. Assim, o processo é um jogo, que será vencido pelo jogador mais habilidoso e não necessariamente pelo mais justo, já que as sentenças podem ser justas ou injustas. Em assim sendo, se o processo é um jogo, numa Democracia, o que mais interessa são os respeitos das regras do jogo, ou seja, o fair play processual. Por isso, no Estado Democrático de Direito, o fundamento de existência do processo penal não é a busca da verdade real (pois, isso se trata de um mito) e nem a segurança pública (algo factível num Estado Autoritário), mas sim a proteção dos direitos e garantias fundamentais.

 No entanto, o Código de Processo Penal brasileiro possui um viés fascista [6]por conta de ter sido criado no estado novo (Getúlio Vargas), em 1941, ainda sob vigência de outra Constituição (a de 1937). É nítido, através da exposição de motivos do CPP a observância desse viés arbitrário e a adoção de um processo penal pensado desde uma perspectiva de segurança pública, com a relativização das garantias fundamentais:

De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras do processo penal num Código único para todo o Brasil, impunha‑se o seu ajustamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinquem. As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidencia das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum. Este o critério que presidiu à elaboração do presente projeto de Código (exposição de motivos do CPP de 1941).

Observando tal exposição, é fácil perceber que o CPP foi erigido dentro de uma lógica de eficiência repressiva do Estado contra os delinquentes e na supremacia do interesse público (segurança) sobre o privado (direitos dos réus), de onde se extrai que as regras do jogo (devido processo legal, ampla defesa, contraditório, vedação de prova ilícita, juiz natural, etc) seriam as responsáveis pela impunidade e indireto estimula à criminalidade.

Com o surgimento da Constituição Federal de 1988 e todo o arcabouço democrático trazido por ela como os direitos e garantias fundamentais (que, no entendimento de alguns é a chamado de defesa da impunidade), observa-se uma clara e inegável contradição, inclusive, ideológica, entre o Código de Processo Penal e o atual texto constitucional. Assim, nos dias de hoje, o processo penal apesar de ser um instrumento para a aplicação do direito penal no caso concreto (princípio da necessidade), também deve ser um instrumento de proteção do indivíduo contra abusos do poder do Estado.

Nesse sentido, o Estado tem o poder de punir e o deve fazer dentro dos limites democraticamente projetados na Constituição Federal, assim como KHALED JR afirma que:

O processo deve ser um limite ao poder; se não fosse esse seu sentido, sequer precisaria existir. Trata-se de um meio de redução da complexidade que condiciona a manifestação do poder punitivo a um conjunto de requisitos, exigindo que o processo seja o caminho necessário – único possível – para a imposição da pena. (KHALED JR, 2013, p.142).

Portanto, como possuímos um Código de Processo Penal que fora criado em um período ditatorial (1941) e uma Constituição Democrática, por óbvio, é necessário se fazer uma filtragem constitucional e convencional (observando a Constituição e os tratados internacionais de direitos humanos), pois as regras infraconstitucionais do estatuto processual penal brasileiro precisa passar por uma dupla conformidade: controle de constitucionalidade e controle de convencionalidade.

É certo que se faz necessário estudar os sistemas processuais, admitindo a existências de duas espécies diferentes: inquisitório e acusatório.

De plano, não se almeja realizar uma historiografia dos sistemas processuais. Mas, “uma pequena construção dos sistemas processuais é necessária” (GLOECKNER, 2013, p. 134) para sedimentar as noções elementares a fim de se analisar a constitucionalidade ou não do artigo 156 do CPP.

Inicialmente, poder-se-ia conceituar, sistema processual penal como “o conjunto de princípios e regras constitucionais, de acordo com o momento político de cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas à aplicação do direito penal a cada caso concreto” (RANGEL, 2012, p. 46).

Aponta, ainda, Lopes Jr (2012, p. 118-119), as seguintes notas características do sistema acusatório, na atualidade:

a) clara distinção entre as atividades de acusar e julgar; b) a iniciativa probatória deve ser das partes (decorrência lógica da distinção entre as atividades); c) mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio a labor de investigação e passivo no que se refere à coleta da prova, tanto de imputação como de descargo; d) tratamento igualitário das partes (igualdade de oportunidades no processo); e) procedimento é em regra oral (ou predominantemente); f) plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior parte); g) contraditório e possibilidade de resistência (defesa); h) ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional; i) instituição, atendendo a critérios de segurança jurídica (e social) da coisa julgada; j) possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição.

Já o sistema inquisitório, de maneira pura, é um modelo histórico, onde há um ‘desamor’ pelo contraditório, de acordo com Cunha Martins (2010). Lopes Jr (2012, p. 122), esclarece que:

O sistema inquisitório muda a fisionomia do processo de forma radical. O que era um duelo leal e franco entre acusador e acusado, com igualdade de poderes e oportunidades, se transforma em disputa desigual entre o juiz-inquisidor e o acusado. O primeiro abandona sua posição de árbitro imparcial e assume a atividade de inquisidor, atuando desde o início também como acusador. Confundem-se as atividades do juiz e acusador, e o acusado perde a condição de sujeito processual e se converte em mero objeto da investigação. (...) O juiz atua como parte, investiga, dirige, acusa e julga. Com relação ao procedimento, sói ser escrito, secreto e não contraditório.

Lopes Jr (2012) destaca ainda que, o sistema acusatório predominou até o Século XII, quando passou a sofrer a crítica de que a inércia do juiz, no campo da gestão da prova, fazia com que o julgador tivesse que decidir com base em um material probatório defeituoso, fruto de uma atividade incompleta das partes. Assim, ao longo do Século XII até o XIV, o sistema acusatório vai sendo substituído pelo inquisitório, em razão “dos defeitos” da inatividade das partes na produção das provas, levando o Estado a assumir a gestão da prova, a fim de não se deixar apenas nas mãos dos particulares essa função, pois isso comprometeria a eficácia do combate à criminalidade.

Aliás, a gestão da prova é o núcleo fundante dos sistemas processuais. Dessa forma, a mera separação das funções de acusar e julgar no processo penal não é o que realmente define e diferencia o sistema inquisitório do acusatório[7].

Com acerto, Goldschmidt (1935) ensina que no sistema acusatório, a produção da prova, ou seja, a apresentação de requerimentos e o recolhimento do material probatório compete às partes, cabendo ao juiz tão-somente decidir.

Coutinho (2001, p. 28), no mesmo sentido, afirma que “a gestão da prova, na forma pela qual ela é realizada, identifica o princípio unificador” do sistema processual, apontando que o princípio dispositivo é o núcleo estruturante do sistema acusatório, onde a gestão das provas está nas mãos das partes, sendo o juiz um mero espectador, enquanto no princípio inquisitivo a gestão das provas está nas mãos do julgador, cabendo-lhe a produção de ofício.

Nota-se que o artigo 156 do CPP claramente adota o princípio inquisitivo, ao entregar a gestão da prova para o juiz, que de ofício, poderá determinar a produção da prova, claramente pela adoção do mito chamada verdade real. Isso evidencia que o CPP acolhe o núcleo fundante do sistema inquisitorial, enquanto a Constituição Federal claramente delineia uma opção por um sistema acusatório.

Por outro lado, no aspecto judicial, a imparcialidade do juiz é um pressuposto de validade do processo e para assegurar sua efetivação a Constituição Federal define garantias que asseguram o cumprimento desta, além de vedar juízos e tribunais de exceção (não condizentes com o Estado democrático de direito).

O artigo 156, II da então discussão dessa pesquisa disciplina in verbis: “Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: II - determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante”.

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É evidente que o artigo acima mencionado traz um grande perigo para a democracia, pois permite que o juiz primeiro decida para depois ir atrás da prova (a primazia da hipótese sobre o fato), o que fatalmente evidencia a parcialidade do julgador, que deixando a condição de juiz imparcial passa a ocupar e a desempenhar o papel que seria das partes. Como esclarece Aury Lopes Jr. (2013): “se dúvida persiste no julgamento, o único desfecho admissível seria a absolvição do acusado, forte no in dubio pro reo, e não o ativismo judicial”, em que, assim ocorrendo, pode gerar numa prova desfavorável ao réu, que deveria ter sido produzida pela parte da acusação.


CONSIDERAÇÕES FINAIS:

O processo penal, como caminho necessário para a aplicação do direito penal no caso concreto, é um jogo, sendo que numa democracia a legitimidade do poder jurisdicional brotará do respeito das regras do jogo. Assim, o processo penal não deve ser um instrumento de segurança pública e de busca da verdade, mas sim de proteção do investigado/réu contra os abusos do poder estatal.

Ademais, o único sistema processual compatível com a Democracia é o acusatório e, por isso, a gestão da prova deve ser entregue para as partes (princípio dispositivo).

Dessa maneira, o juiz deve julgar de acordo com as provas produzidas pelas partes, pois quando o juiz determina provas de ofício, certamente, perderá sua imparcialidade. Logo, é inegável que a CF adotou o sistema acusatório e o CPP, por outro lado, ao acolher o princípio inquisitivo no artigo 156, está em descompasso com o texto constitucional.

Dessa forma, é inegável a inconstitucionalidade do artigo 156 do CPP, por se tratar do acolhimento de um sistema inquisitivo, com clara violação do modelo acusatório proposto pelo texto constitucional.


REFERÊNCIAS:

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O Papel do Novo Juiz no Processo Penal. In COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.) Crítica à Teoria Geral do Direito Processual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

__________. Introdução aos Princípios Gerais do Processo Penal Brasileiro. Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre: Nota Dez Editora, 2001.

GOLDSCHMIDT, James. Problemas Jurídicos y Políticos delProceso Penal. Barcelona: Bosch, 1935.

GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no processo penal. Bahia: Editora Juspodivm, 2013.

KHALED JR, Salah Hassan. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo, Editora Atlas, 2013.

_________________________. Ordem e progresso: a invenção do Brasil e a gênese do autoritarismo nosso de cada dia. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2014.

__________________________ et al. In dubio pro hell: profanando o sistema penal.  Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2014.

LEONEL, Juliano de Oliveira. Tribunal do Júri Aspectos Processuais. Florianopolis. Editora Modara. 2017.

LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. São Paulo: Editora Atlas, 2012.


[1] Trabalho apresentado na XVI Semana Científica do Centro Universitário Santo Agostinho – SEC 2018, evento realizado em Teresina, de 29 de setembro a 5 de outubro de 2018.

[5] GOLDSCHMIGT, “o processo é uma guerra inserida na mais completa epistemologia da incerteza”.LEONEL DE OLIVEIRA, Juliano. Tribunal do Juri Aspectos Processuais. Florianópolis/SC. Editora: Emporio Modara, 2017,p.19.

[6] LEONEL DE OLIVEIRA, Juliano. Tribunal do Juri Aspectos Processuais. Florianópolis/SC. Editora: Emporio Modara, 2017,p.25.

[7]“Apontada pela doutrina como fator crucial na distinção dos sistemas, a divisão entre as funções de investigar-acusar-julgar é uma importante característica do sistema acusatório, mas não é a única e tampouco pode, por si só, ser um critério determinante, quando não vier aliada a outras (como iniciativa probatória, publicidade, contraditório, oralidade, igualdade de oportunidades etc) (LOPES JR, 2012, p. 131). Em sentido contrário, Badaró (2014, p. 48-49) leciona que “A essência do modelo acusatório é a nítida separação entre as funções de acusar, julgar e defender. Para ele, “Em suma, o sistema acusatório, quanto à atividade probatória, deve reconhecer o direito à prova da acusação e da defesa, podendo ainda o juiz ter poderes para, em caráter subsidiário ou suplementar, determinar ex officio a produção de provas que se mostrem necessárias para o acertamento do fato imputado”.

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Sobre os autores
Vitoria Andressa Loiola dos Santos

É Técnica em Agronegócio pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão – Campus Barra do Corda (2014). Atualmente é discente do Oitavo período do curso de Direito da Universidade Santo Agostinho Teresina - PI e têm pesquisa científica na área indígena, penal e processo penal.

Juliano de Oliveira Leonel

Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB) e Professor do Curso de Direito da UNIFSA.

Pedro Igor Sousa de Oliveira

Bacharelando do curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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