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Universalismo X relativismo: análise do caso Ximenes Lopes sob a ótica dos direitos humanos

08/12/2020 às 15:50
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O caso não é emblemático apenas por ser a primeira condenação do Estado Brasileiro por violação aos direitos humanos na Corte Interamericana. Também mostra a tendência do universalismo na análise das questões inerentes a essa temática.

1. INTRODUÇÃO

O respeito aos direitos humanos é de suma importância para a promoção de uma sociedade justa e solidária. Nas palavras de Ramos (2001, p. 27) trata-se de “um conjunto mínimo de direitos necessário para assegurar uma vida ao ser humano baseada na liberdade e na dignidade”.

A sociedade globalizada e organizada entendeu que os direitos humanos não podem ser vistos com regionalismo ou provincianismo.

Faz-se necessária uma integração entre as diversas nações e um esforço conjunto para o respeito às garantias individuais e coletivas do ser humano. Nesse prisma, nas palavras de Mello (2001, p. 33) “o direito internacional dos direitos humanos pode ser definido como o conjunto de normas que estabelece os direitos que os seres humanos possuem para o desenvolvimento de sua personalidade e estabelecem mecanismos para a proteção de tais direitos”.

Entretanto, as diferenças culturais, sociais e econômicas dos 191 (cento e noventa e um) países filiados às Nações Unidas dificultam uma prática padronizada dos direitos humanos.

É evidente que a visão do homem (e aqui no sentido conotativo da palavra) para os Indianos hinduístas é diferente daquela observada pelos Japoneses budistas.

Além do fator religioso, é compreensível que países como a Coreia do Norte e Estados Unidos possuam interpretações diferentes do que são os direitos humanos pelo modelo econômico e político que praticam.

A grande questão da internacionalização dos direitos humanos hoje remonta sobre o seguinte: os direitos humanos devem ser vistos sob uma ótica global padronizada ou devem ser relevadas as peculiaridades culturais de cada nação? Ou por outra: as penas de “apedrejamento em praça pública” pelo crime de adultério no Irã é uma afronta à dignidade humana ou simplesmente a repetição de um costume que remonta à época do Profeta Maomé?

Com o fito de discorrer sobre essas questões, serão analisadas, doravante, algumas particularidades do relativismo e do universalismo em relação aos direitos humanos.

Além disso, o caso Damião Ximenes Lopes (primeira condenação do Estado Brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos) será abordado, com um breve resumo e uma análise das manifestações relativista/universalista da sentença da referida Corte.


2. CASO DAMIÃO XIMENES LOPES: UMA PROVA DA TENDÊNCIA DO UNIVERSALISMO NOS DIREITOS HUMANOS INTERNACIONAIS

Damião, nascido no interior do Ceará, sofria de problemas mentais e foi internado em uma clínica para tratamento e custódia credenciado pelo Sistema Único de Saúde. Sua mãe, ao visitá-lo, constatou que ele possuía vários hematomas pelo corpo, estava sujo, machucado, com roupas rasgadas, amarrado e cheirando a excrementos.

Logo após a visita, a mãe de Damião recebeu a notícia de que ele estava morto.

Após 6 (seis) anos de tramitação do processo o Estado Brasileiro foi condenado a pagar US$ 136.500,00 (cento e trinta e seis mil e quinhentos dólares) de indenização a família de Damião[1].

O caso não é emblemático apenas por ser a primeira condenação do Estado Brasileiro por violação aos direitos humanos na Corte Interamericana. Também mostra a tendência do universalismo na análise das questões inerentes a essa temática.

É notório que durante toda a fundamentação da decisão do caso Ximenes apenas o respeito ao ser humano foi apreciado.

Questões culturais, sociais e econômicas como a falta de recursos financeiros, gestão pública, corrupção, situação dos hospitais por todo o país não foram analisadas, desconsiderando o relativismo que poderia atenuar a responsabilidade do Estado brasileiro pela morte de Damião.

O universalismo se mostra presente quando as normas previstas na Convenção Americana de Direitos Humanos são tidas como embasamento legal para a condenação. A citação de precedentes serve como uniformização das decisões exaradas pela Corte contribuindo para um modelo único de respeito aos direitos humanos. Cito como exemplo:

Em casos similares, esta Corte determinou que o esclarecimento de supostas violações por parte de um Estado de suas obrigações internacionais por meio da atuação de seus órgãos judiciais pode levar o Tribunal a examinar os respectivos processos internos. Isto posto, os procedimentos internos devem ser considerados como um todo, uma vez que a função do tribunal internacional é determinar se a integralidade dos procedimentos esteve conforme com as disposições internacionais. (grifei)

Esta Corte salientou, em reiteradas oportunidades, que os familiares das vítimas de violações dos direitos humanos podem ser, por sua vez, vítimas. O Tribunal considerou violado o direito à integridade psíquica e moral de alguns familiares das vítimas em virtude do sofrimento adicional por que passaram, em conseqüência das circunstâncias especiais das violações praticadas contra seus seres queridos e das posteriores ações ou omissões das autoridades estatais frente aos fatos. (grifei)

O direito à vida e à integridade física são valores comuns aos países ocidentais. Damião sofria de transtornos mentais, foi internado, mal-tratado e morto sob a custódia de uma clínica de tratamento. Os elementos relativos estão escamoteados, ao passo que a vítima não fazia parte de um grupo culturalmente dissociado da sociedade comum que merecesse tratamento diferenciado, condizente com sua condição cultural, econômica e social.

Pode-se tomar como manifestação do relativismo a morosidade da tramitação do processo penal para apuração das responsabilidades dos envolvidos. A corte fez menção e determinou que o Estado:

{...} deve continuar a desenvolver um programa de formação e capacitação para o pessoal médico, de psiquiatria e psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem e para todas as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, em especial sobre os princípios que devem reger o trato das pessoas portadoras de deficiência mental, conforme os padrões internacionais sobre a matéria e aqueles dispostos nesta Sentença {...}

Além disso, em decorrência da condenação imposta ao Estado Brasileiro a Lei n. 10.216/2001 (BRASIL, 2001) que trata sobre “a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental” entrou em vigor com o fito de fazer cumprir a sentença proferida por aquela Corte, criando importantes órgãos como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) traduzindo a influência destas decisões no direito interno.


3. DIREITOS HUMANOS, UNIVERSALIDADE E RELATIVISMO

Em relação ao direito internacional as normas inerentes aos direitos humanos podem ter um viés universal desde que haja uma convergência de princípios e normas no direito interno de cada país soberano.

As economias das nações que se propõem a ter uma universalização de direitos devem estar equiparadas, porquanto de nada adianta os países signatários firmaram projetos que uma ou outra nação não conseguirão colocá-los em prática por insuficiência de recursos.

Da mesma forma, os sistemas e regimes de governo devem ser parecidos. Países democráticos vêem os direitos humanos sob outra ótica comparando com países que estão sob regimes ditatoriais, como exemplo. A democracia por si só é uma conquista da sociedade e uma valorização do ser humano enquanto coletividade. Ver o cidadão como sujeito de direitos e deveres é inerente aos valores democráticos, apegos que países que vivem sob regimes totalitários não têm.

A religião também se revela como fator preponderante para a universalização dos direitos humanos. Jean Jacques ROUSSEAU (2003, p. 123) escreveu que “muito importa ao Estado que cada cidadão tenha uma religião, que lhe faça amar os seus deveres; mas os dogmas dela só interessam o Estado e seus membros,no que se referem à moral, e deveres do que a professa, deveres que para com os outros deve preencher”, ou seja, a religião é fundamental para sustentação do Contrato Social.

Disso impende-se concluir que as crenças, os costumes, a liturgia, historicamente, tratam das relações sociais e pregam valores inerentes a vida e a convivência em sociedade. Mal comparando, o ocidente de maioria Cristã, consegue dialogar com mais facilidade entre seus pares do que com países do oriente, visto a divergência de valores humanos entre os hemisférios.

O ser humano em sua essência é o resultado daquilo que vive e sua vivência. Impor uma ordem pré estabelecida do que se é permitido ou não fazer invariavelmente faz com que o país dominante impunha seu conceito de direitos humanos, que se sabe, não é absoluto.

A imposição de uma ordem cultural estranha a vivenciada pelo país submergido pode ser extremamente prejudicial à estabilidade da nação “invadida”. Veja-se, como exemplo a Primavera Árabe[2]. Os países árabes, historicamente governados por ditadores militares, aristocratas e líderes religiosos não têm a democracia como regime de governo. Todavia, instigados e financiados pelo ocidente, alguns grupos através de protestos pacíficos ou confrontos armados reivindicaram por democracia (ou de forma ufanista, reivindicaram por liberdade) e líderes como Muamar Kadafi (Líbia) e Hosni Mubarak (Egito) foram depostos.

Porém, a influência religiosa e a monocultura do petróleo nos países árabes fazem com que a realidade regional seja completamente diferente daquela vivida no ocidente. O resultado da famigerada revolução democrática é uma guerra civil sem fim, com milhões de cadáveres e outros tantos milhões de refugiados.

Fatalmente, mais salutar para a estabilidade política do mundo é entender os direitos humanos sob uma ótica relativista, ponderando a realidade regional e a cultura de cada povo, afinal, como afirma Norberto Bobbio (2004, p. 16) “os direitos humanos não nascem de uma só vez e nem de uma vez por todas”.

Os relativistas vêem os direitos humanos não como uma forma individualizada, mas sim de uma maneira coletiva. O caso da iraniana Sakineh Modammadi Ashtiani é um clássico exemplo de como o relativismo se expressa nas mais diversas formas e mexe, principalmente, com o brio dos ocidentais.

Sakineh foi condenada a apedrejamento por ter cometido adultério. Após uma forte pressão de países como os Estados Unidos, Chile, Reino Unido e França e de uma mobilização de celebridades pela internet, a Justiça Iraniana decidiu cancelar a pena imposta e Sakineh, que hoje, se encontra presa - mas viva.

O chefe do poder executivo no Brasil à época, o ex-presidente Lula expressou de forma inequívoca que é adepto ao relativismo cultural. Lula declarou (Lula diz que seria "avacalhação" se envolver no "caso Sakineh”, 2010[3]) sobre o tema que é “preciso tomar muito cuidado porque as pessoas têm leis, as pessoas têm regras. Se começarem a desobedecer as leis deles para atender o pedido de presidentes daqui a pouco vira uma avacalhação”.

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Malgrado a opinião do ex-presidente, há um mínimo, um padrão ético básico que deve ser respeitado por todos os Estados. Norberto BOBBIO (2004, p. 25) se filia a esse entendimento:

Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez, e nem de uma vez por todas.

Ou ainda Boaventura de Souza SANTOS:

{...} enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo globalizado — uma forma de globalização de-cima-para-baixo. Serão sempre um instrumento do "choque de civilizações" tal como o concebe Samuel Huntington (1993), ou seja, como arma do Ocidente contra o resto do mundo ("the West against the rest").

Portanto, os direitos humanos na ótica internacional tende a ser utópico em sua plenitude, pois depende sobremaneira da homogeneidade dos Estados. A ponderação das características regionais deve prevalecer, sempre respeitando um padrão existencial mínimo.


4. CONCLUSÃO

A internacionalização dos direitos humanos é novidade para os estudiosos do direito. As duas Grandes Guerras Mundiais, em especial a segunda, fizeram por acelerar o processo de integração entre as nações, perplexas com as atrocidades cometidas durante os conflitos. Flávia PIOVESAN (2006, p. 109) ensina que "a internacionalização dos direitos humanos constitui, assim, um movimento extremamente recente na história, que surgiu a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo".

O vanguardismo traz problemas que a ele são inerentes. A construção doutrinária ainda engatinha e diversas são as arestas para que se tenha uma ordem globalizada de respeito aos direitos humanos.

O caso Ximenes Lopes foi um marco em relação a proteção e atenção aos direitos humanos do Estado Brasileiro. Após a condenação, o Brasil criou políticas públicas de proteção à pessoa com deficiência e reconheceu a atuação de uma Corte Internacional fora dos limites territoriais.

O julgamento da demanda envolvendo Damião provou que a tendência (ao menos nos estados americanos) é a universalização de direitos, ao passo que uma vez reconhecida e convencionada sua aplicação a norma aprovada vale como lei absoluta e de eficácia plena e imediata.

Entretanto, não obstante o universalismo - a primeira vista - parecer o modelo ideal de aplicação das normas sobre os direitos humanos, uma análise pormenorizada pode mostrar que a imposição de crenças e culturas pode ser uma prática espúria de domínio sócio, político, econômico e cultural.

A perversidade do jogo geopolítico do mundo, ao tratar de universalismo e relativismo, sempre deve ser ponderado as analisar esse tema.

Do que se conclui ao final, portanto, infelizmente, é que o universalismo é uma utopia, um ideal impossível de ser atingido. As divergências abissais entre as centenas de nações espalhadas por todo o mundo, de crenças, convicções políticas e religiosas são um entrave para a padronização de direitos.

Malgrado reconhecidamente um universalismo pleno seja impossível, deve haver um respeito ao coletivo e uma política de inserção de ideais humanitários incutida aos poucos nos países que são agressores contumazes. Há um padrão mínimo de respeito aos direitos humanos a ser respeitado, porque, afinal, contrariando Hobbes, o homem é bom em sua natureza.


5. REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 3ª reimpressão. Tradução de Carlos Nelson Coutinho; Apresentação de Celso Lafer. Nova ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

BRASIL, Lei n. 10.216 de 06 de abril de 2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm>. Acesso em: 12/01/2015.

LULA diz que seria "avacalhação" se envolver no "caso Sakineh". Disponível em: <http://noticias.bol.uol.com.br/internacional/2010/07/28/lula-diz-que-seria-quotavacalhacaoquot-se-envolver-no-quotcaso-sakinehquot.jhtm>. Acesso em 12/01/2015.

MELLO, Celso D. Albuquerque. Curso de direito internacional público. 13ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva 2006.

RAMOS, Andre de Carvalho. Direitos Humanos em Juízo. São Paulo: Max Limonad, 2001.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Coleção A Obra Prima de Cada Autor. São Paulo – SP: Editora Martin Claret, 2003

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma concepção multicultural dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Concepcao_multicultural_direitos_humanos_ContextoInternacional01.PDF>. Acesso em: 08/01/2015.


Notas

[1] Através do Decreto n. 6.185/2007 a Presidência da República autorizou o pagamento de R$ 280.532,85 (duzentos e oitenta mil quinhentos e trinta e dois reais e oitenta e cinco centavos) à família de Damião referente à condenação imposta pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

[2] É uma onda revolucionária de manifestações e protestos que vêm ocorrendo no Oriente Médio e no Norte da África desde 18 de dezembro de 2010. Até a data, tem havido revoluções na Tunísia e no Egito, uma guerra civil na Líbia e na Síria; também houve grandes protestos na Argélia, Bahrein, Djibuti, Iraque, Jordânia, Omã e Iémen e protestos menores no Kuwait, Líbano, Mauritânia, Marrocos, Arábia Saudita, Sudão e Saara Ocidental.

[3] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcostroyjo/2016/01/1731258-as-estreitas-janelas-de-oportunidade-para-o-brasil-no-ira.shtml

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Sobre o autor
Rubens Leonardo Silva

Mestrado em prestação jurisdicional e direitos humanos (UFT). Pós graduação em prática judiciária (ESMAT) e direito e processo do trabalho (UNOESC). Assessor jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Rubens Leonardo. Universalismo X relativismo: análise do caso Ximenes Lopes sob a ótica dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6369, 8 dez. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71636. Acesso em: 3 dez. 2024.

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