Capa da publicação Ofensas e desagravos
Artigo Destaque dos editores

Ofensas e desagravos

27/01/2019 às 10:55
Leia nesta página:

Poderá dar-se o caso que a ofensa praticada contra o indivíduo alcance a todos os membros de sua classe.

I. De todos os bens, é a honra o mais precioso que tem o homem; sem ela, a mesma vida lhe não houvera de merecer os cuidados com que de contínuo a defende e protege. Era tal a conta que dela faziam os antigos, que não a queriam perder senão com a própria vida. E não foram poucos os que, educados nessa escola de probidade e inteireza de caráter, nada antepunham ao nobre sentimento da honra, elegendo por seu timbre o garboso versículo do poeta: “antes quebrar que torcer” [1].

Esse caríssimo atributo do homem é direito penalmente tutelado. Assim, cometerá crime (de calúnia, difamação ou injúria, conforme o caso) aquele que detrair a honra alheia; que ninguém sofre ser desonrado [2]. A razão disto bem se conhece das seguintes palavras de Matias Aires: “Acabando tudo com a morte, só a desonra não acaba, porque o labéu ainda vive mais do que quem o padece”. É “a única desgraça que se imprime na alma como um caráter imortal” [3].

II. Mesmo que exercitado na virtude da tolerância, não logra porém o homem permanecer imperturbável e sereno diante da perversidade da maledicência[4]; tampouco lhe é eficaz aquela exortação da filosofia estoica, segundo a qual ao varão virtuoso não lhe deviam fazer mossa nem abalo as contumélias e os baldões [5]. Ao homem agasta-o de ordinário quem o trata mal de palavras ou lhe profere expressões de travo irônico, visto inato o seu desejo de haver-se em boa conta e opinião.

 Algumas injúrias, contudo, ele pode (e talvez deva) levar em paciência, não só em obséquio à suave doutrina do Rabino da Galileia (que nos manda perdoar a quem nos ofende), mas também porque não é de bom exemplo fazer caso e cabedal de coisas insignificantes [6].

Por outra parte, afrontas há que, por sua gravidade, justamente se não relevam. Bem ao revés: reclamam providências rígidas contra quem as irrogou, para que não se presumam verdadeiras só pelas não haver o ofendido repudiado em tempo e com singular veemência. O silêncio, que noutros casos fora argumento de soberano desprezo das querelas e pequenezes humanas, aqui o seria de imprudência e temeridade [7].

III. Poderá dar-se o caso que a ofensa praticada contra o indivíduo alcance a todos os membros de sua classe. Da coletividade será então já o interesse na reparação do imerecido gravame, não só do indivíduo. Demonstrada a injustiça da ofensa, haverá lugar o público desagravo.

Nisto de desagravos, há de proceder-se com tento e circunspecção, não se convertam, posto involuntariamente, numa como ofensa reiterada. Temos entre mãos exemplo definitivo: desagravou-se publicamente, há assaz de anos, um dos mais insignes advogados criminalistas de São Paulo, a quem certo porta-voz da Presidência da República ofendera no exercício da ínclita profissão. Assinalada a data para o público desagravo, expediram-se editais, onde, ao mesmo passo que se convocavam para a sessão os advogados, eram transcritos, “ipsis verbis”, os epítetos desprimorosos disparados contra o ofendido, com o que novamente se lhe impôs crudelíssimo agravo [8]!

Em conclusão: as injúrias que por desventura recebamos, não as consideremos tão graves, que se não possam entregar ao silêncio, que é muita vez a resposta heroica dos espíritos superiores. Mas se foi nossa reputação, construída pelo comum com sacrifício imenso, a que intentaram demolir, então é meditarmos nestas profundas e belas palavras do Prof. David Speroni, as quais nos ensinarão a atuar a preceito: “Só dois valores grandes e puros encontrei na vida: a Mãe e a Honra. Se perdeis vossa Mãe, sois um órfão; se perdeis a Honra, sois um morto!” (apud J. Didier Filho, Direito Penal Aplicado, 1957, p. 154).


Notas

[1] Sá de Miranda; apud Ernesto Carneiro Ribeiro, Ligeiras Observações, 1902, p. 30.

[2] “Nenhuma contemplação merecem aqueles que, por ódio, despeito, rivalidade ou áspero prazer do mal, se fazem salteadores da honra alheia” (Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, 1980, vol. VI, p. 43).

[3] Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, 1752, pp. 41 e 42.

[4] “Mui comuns e gerais são em nós os excessos da língua”, já o advertia o clássico Amador Arrais (Diálogos, 1846, p. 57).

[5] “Semelhante enfim (o varão forte) ao rochedo elevado no meio do mar, aonde vem quebrar-se a fúria das ondas, sem que ele, batido por muitos séculos, mostre jamais aparência alguma de irritação” (Sêneca, Da Constância do Varão Sábio; trad. Cardeal Saraiva, Obras Completas, 1883, vol. X, p. 375).

[6] O poeta inglês Alexandre Pope, de sua vez, compôs este verso imortal: Errar é humano; perdoar, divino (“To err is human; to forgive, divine”).

[7] Faz ao intento aquilo de Kant, que Ihering trasladou em seu livro célebre: “Aquele que anda de rastos como um verme nunca deverá queixar-se de que foi calcado aos pés” (A Luta pelo Direito, 1968, p. 7; trad. João de Vasconcelos).

[8] Caso análogo a este lemos em João do Mato: “Tendo sido substituído por um suplente, quando juiz da 4a. Pretoria Civil, o respectivo titular fora insultado por um advogado que numa petição chamara o juiz efetivo de incompetente, burro e teimoso. O suplente deu o seguinte despacho, no processo: ‘Risquem-se as expressões incompetente, burro e teimoso’. As expressões foram riscadas, mas o despacho… ficou” (Bestiário Forense, 1959, p. 97).

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIASOTTI, Carlos. Ofensas e desagravos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5688, 27 jan. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71657. Acesso em: 29 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos