A inconstitucionalidade do regime de separação obrigatória de bens para maiores de setenta anos

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08/02/2019 às 17:00
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4. DO REGIME DE SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA OU LEGAL DE BENS

4.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As hipóteses do regime de separação obrigatório ou legal de bens estão previstas nos incisos do artigo 1.641 do Código Civil, quais sejam:

Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:

I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;

II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 12.344, de 2010).

III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.

O objetivo da norma é a proteção do patrimônio de determinadas pessoas. Entretanto muito se discute se realmente é necessária tal norma, uma vez que vai de encontro como o princípio da autonomia privada dos nubentes[27].

O inciso I traz hipóteses em que há causas suspensivas, como é o caso, por exemplo, do divorciado que ainda não realizou a partilha. O inciso II, é o cerne desta estudo, que o caso dos maiores de setenta anos, onde será comentado em tópico próprio. O inciso III traz a hipótese dos que dependem de autorização judicial para se casar, como por exemplo, o menor de dezesseis anos.

Ademais, das mais variantes formas de estipulação de regime obrigatório de bens, o que se mostra mais desproporcional é a que impõe tal sanção aos maiores de setenta anos, em flagrante afronta à Constituição Federal e ao Estatuto do Idoso, conforme demonstraremos no tópico a seguir.

4.2. DA INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME OBRIGATÓRIO DE BENS PARA IDOSOS

O debate sobre a inconstitucionalidade do art. 1.641, inciso II, do Código Civil, vem sido enfrentado ao longo dos anos por diversos doutrinadores e juristas, tendo sido recorrente até mesmo no legislativo e judiciário.

Inicialmente é preciso entender como surgiu a questão da obrigatoriedade do regime de separação de bens pelo fator idade, e a evolução do tema ao longo da história do direito brasileiro.

O tema apareceu pela primeira vez no Código Civil de 1.916, onde previa o art. 258, inciso II, que:

Art. 258. Não havendo convenção, ou sendo nula, vigorará, quanto aos bens, entre os cônjuges, o regime da comunhão universal.

Parágrafo único. É, porém, obrigatório o da separação de bens no casamento:

I. Das pessoas que o celebrarem com infração do estatuto no art. 183, nºs XI a XVI (art. 216).

II. Do maior de sessenta e da maior de cinquenta anos.

III. Do orfão de pai e mãe, embora case, nos termos do art. 183, nº XI, com o consentimento do tutor, ou curador.         (Vide Decreto do Poder Legislativo nº 3.725, de 1919).

IV. E de todos os que dependerem, para casar, de autorização judicial (arts. 183, nº XI, 384, nº III, 426, nº I, e 453).       (Vide Decreto do Poder Legislativo nº 3.725, de 1919).

Como é possível verificar, foi utilizado o critério etário à época da edição da norma por haver uma clara preocupação com o casamento movido por fins unicamente patrimonialistas, a fim de evitar o chamado comumente pelo senso comum de “golpe do baú”.

Ainda na vigência do Código Civil de 1.916, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula n. 377, onde informou que

Súmula 377

No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.

Diante disto é possível verificar que a partir desta Súmula, a obrigatoriedade da adoção do regime de separação total de bens prevista no art. 258 do Código Civil de 1.916 já era mitigada quando se comprovava o esforço comum.

Em 2002 o Novo Código Civil previa em seu art. 1.641, inciso II, que o regime seria obrigatoriamente o da separação de bens para homens e/ou mulheres acima de sessenta anos. A pequena modificação trazida pela nova Lei Civil tinha como fundamento o princípio da igualdade, demonstrando que não havia mais tratamento diferenciado entre os nubentes, porém tal modificação não sanava a sua inconstitucionalidade.

Tal dispositivo foi questionado na I Jornada do Direito Civil, em seu Enunciado n. 125, que diz:

125 - Proposição sobre o art. 1.641, inc. II:

Redação atual: “da pessoa maior de sessenta anos”

Proposta: Revogar o dispositivo.

Justificativa: A norma que torna obrigatório o regime da separação absoluta de bens em razão da idade dos nubentes não leva em consideração a alteração da expectativa de vida com qualidade, que se tem alterado drasticamente nos últimos anos. Também mantém um preconceito quanto às pessoas idosas que, somente pelo fato de ultrapassarem determinado patamar etário, passam a gozar da presunção absoluta de incapacidade para alguns atos, como contrair matrimônio pelo regime de bens que melhor consultar seus interesses.

Entretanto, o texto Civil continuou com a redação até 2010, onde então foi alterada a idade para setenta anos, através da Lei n. 12.344 de 2010.

 A deputada Solange do Amaral[28], autora do Projeto de Lei nº 108, de 2007, que originou a Lei nº 12.344, de 2010, justificou a alteração para setenta anos pelos seguintes motivos:

[...]

Em decorrência dos avanços da ciência e da engenharia médica, que implicou profundas transformações no campo da medicina e da genética, o ser humano passou a desfrutar de uma nova e melhor condição de vida, resultando em uma maior longevidade.

Hoje, no entanto, em pleno Século XXI, essa exigência não mais se justifica, na medida em que se contrapõe às contemporâneas condições de vida usufruídas pelos cidadãos brasileiros, beneficiados pela melhoria das condições de vida urbana e rural, graças aos investimentos realizados em projetos de saúde, saneamento básico, educação, eletrificação e telefonia. Iniciativas que se traduzem em uma expectativa média de vida, caracterizada pela higidez física e mental, superior a 70 anos.

Em virtude dessa realidade, impõe-se seja alterado o inciso II do Artigo 1.641 do Código Civil Brasileiro, com o objetivo de adequá-lo a uma nova realidade, para que o Regime Obrigatório de Separação de Bens só seja exigível para pessoa maior de 70 anos. Pelas razões expostas, e por entender que esta proposição consolidará uma situação fática vivenciada por todos os brasileiros, conto com o apoiamento de nossos Pares para a aprovação desta iniciativa.

Em que pese à tentativa de solucionar a problemática etária inserida no art. 1.641, inciso II, do Código Civil, tendo como justificativa que a expectativa de vida estaria superior a setenta anos, este fundamento não merece prosperar. Ocorre que tal norma civil em realidade não visa à proteção do idoso, visto que atualmente, em regra, a pessoa natural com idade superior a setenta anos tem total discernimento e plena capacidade para pratica dos atos da vida civil.

Além disto, a Lei n. 10.741 de 2003, Estatuto do Idoso, informa que, nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de discriminação, sendo o envelhecimento um direito personalíssimo inerente à este, conforme preceitua o art. 8° do Estatuto do Idoso:

Art. 8o O envelhecimento é um direito personalíssimo e a sua proteção um direito social, nos termos desta Lei e da legislação vigente.

Também informa o Código Civil de 2.002 em seu art. 1º, que toda a pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil, com exceções dos casos estipulados nos arts. 3º e 4º, os quais não abarcam a hipótese de incapacidade absoluta ou relativa pelo simples fato de estar em uma idade avançada.

Além disto, como visto anteriormente, é princípio inerente ao direito patrimonial dos nubentes, a autonomia privada quanto à estipulação do regime de bens inerente aos cônjuges, conforme preceitua o art. 1.639 do mesmo Diploma Normativo:

Art. 1.639. É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.

Desta forma, o art. 1.641, inciso II, do Código Civil é claramente inconstitucional, uma vez ir de encontro com os princípios da dignidade da pessoa humana, da isonomia e da proporcionalidade, previstos na Magna Carta, no Código Civil e no Estatuto do Idoso. Esse inclusive já foi o entendimento de diversos Tribunais conforme se verifica em[29]:

APELAÇÃO CÍVEL - PROCEDIMENTO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA - MODIFICAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS - SENTENÇA QUE DECLAROU EXTINTO O PROCESSO POR AUSÊNCIA DAS CONDIÇÕES DA AÇÃO - LEGITIMIDADE E INTERESSE PARA PLEITEAR A RESPECTIVA ALTERAÇÃO, QUE ENCONTRARIA RESPALDO NO ART. 1.639, § 2º, DO CC- MATRIMÔNIO CONTRAÍDO QUANDO OS INSURGENTES POSSUÍAM MAIS DE 60 (SESSENTA) ANOS DE IDADE - SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS - PRETENDIDA MODIFICAÇÃO PARA O REGIME DE COMUNHÃO UNIVERSAL - INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO CÓDIGO CIVIL E DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - CONCLUSÃO DE QUE A IMPOSIÇÃO DE REGIME DE BENS AOS IDOSOS SE REVELA INCONSTITUCIONAL - AFRONTA AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - LEGISLAÇÃO QUE, CONQUANTO REVESTIDA DE ALEGADO CARÁTER PROTECIONISTA, MOSTRA-SE DISCRIMINATÓRIA - TRATAMENTO DIFERENCIADO EM RAZÃO DE IDADE - MATURIDADE QUE, PER SE , NÃO ACARRETA PRESUNÇÃO DA AUSÊNCIA DE DISCERNIMENTO PARA A PRÁTICA DOS ATOS DA VIDA CIVIL - NUBENTES PLENAMENTE CAPAZES PARA DISPOR DE SEU PATRIMÔNIO COMUM E PARTICULAR, ASSIM COMO PARA ELEGER O REGIME DE BENS QUE MELHOR ATENDER AOS INTERESSES POSTOS - NECESSIDADE DE INTERPRETAR A LEI DE MODO MAIS JUSTO E HUMANO, DE ACORDO COM OS ANSEIOS DA MODERNA SOCIEDADE, QUE NÃO MAIS SE IDENTIFICA COM O ARCAICO RIGORISMO QUE PREVALECIA POR OCASIÃO DA VIGÊNCIA DO CC/1916, QUE AUTOMATICAMENTE LIMITAVA A VONTADE DOS NUBENTES SEXAGENÁRIOS E DAS NOIVAS QUINQUAGENÁRIAS - ENUNCIADO Nº 261, APROVADO NA III JORNADA DE DIREITO CIVIL, QUE ESTABELECE QUE A OBRIGATORIEDADE DO REGIME DE SEPARAÇÃO DE BENS NÃO SE APLICA QUANDO O CASAMENTO É PRECEDIDO DE UNIÃO ESTÁVEL INICIADA ANTES DE OS CÔNJUGES COMPLETAREM 60 (SESSENTA) ANOS DE IDADE - HIPÓTESE DOS AUTOS - APELANTES QUE CONVIVERAM COMO SE CASADOS FOSSEM NO PERÍODO COMPREENDIDO ENTRE 1964 E 2006, QUANDO CONTRAÍRAM MATRIMÔNIO - CONSORTES MENTALMENTE SADIOS - PARECER DA PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA NO SENTIDO DE SE ADMITIR A PRETENDIDA ALTERAÇÃO - SENTENÇA OBJURGADA QUE, ALÉM DE DENEGAR INDEVIDAMENTE A PRESTAÇÃO JURISDICIONAL, REVELA-SE IMPEDITIVA DO DIREITO DE ACESSO À JUSTIÇA - DECISUM CASSADO - REGIME DE BENS MODIFICADO PARA O DE COMUNHÃO UNIVERSAL - RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

(Tribunal de Justiça de Santa Catarina TJ-SC - Apelação Cível : AC 575350 SC 2011.057535-0)

No julgado o Desembargador Luiz Fernando Boller informou em seu voto que:

Em princípio, convém destacar que o inc. II do art. 1.641 do Código Civil, com a redação alterada pela Lei nº 12.344/10, disciplina que é obrigatório o regime da separação de bens no casamento da pessoa maior de 70 (setenta) anos, disposição que fulminaria, de plano, a pretensão dos recorrentes.

Todavia, tenho para mim que a interpretação do aludido dispostivo não pode ser realizada isoladamente, sem se atentar para os princípios que norteiam a ordem constitucional vigente, sobretudo o da dignidade da pessoa humana.

O critério etário utilizado pelo legislador teve por finalidade precípua a proteção daquele que se presumiu encontrar-se em estado de vulnerabilidade, permitindo ser mais facilmente ludibriado em razão de eventual interesse de outrem em relação ao seu patrimônio particular.

Contudo, tal disposição legal implica discriminação ao presumir que o nubente maior de 70 (setenta) anos de idade não possui eficiente capacidade de discernimento, restrição que não pode ser admitida, por revelar-se contrária ao atual ordenamento.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais[30], julgando o incidente de inconstitucionalidade n. 1.0702.09.649733-5/002 – Comarca de Uberlândia, no mesmo sentido, informa que:

INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE - DIREITO CIVIL - CASAMENTO - CÔNJUGE MAIOR DE SESSENTA ANOS - REGIME DE SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS - ART. 258, PARÁGRAFO ÚNICO DA LEI 3.071/16 - INCONSTITUCIONALIDADE - VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E DA DIGNIDADE HUMANA.

Em seu voto, o E. Desembargador José Antonino Baía Borges, é categórico ao afirmar que:

A escolha do regime de bens no casamento é um direito patrimonial, essencialmente disponível, por isso, a meu ver, desarrazoada e injustificável a interferência do Estado nesse tipo de relação privada.

A pessoa maior de sessenta anos é plenamente capaz para o exercício de todos os atos da vida civil, especialmente nos dias de hoje, diante do aumento da expectativa de vida.

A incoerência dessa norma fica ainda mais evidente se levarmos em conta que pessoas com idade superior a sessenta anos podem exercer cargos de grande importância para a nação, tais como Presidente da República, Presidente do Congresso Nacional, Juiz de Direito, Desembargador, Ministro de Corte Superior e, no entanto, não poderiam escolher o regime de bens do casamento.

Na mesma linha, a Jurisprudência de diversos Tribunais já reconheceram também a inconstitucionalidade em controle difuso, a saber:

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APELAÇÃO CÍVEL. RECURSO ADESIVO. UNIÃO ESTÁVEL. 1) REGIME DE BENS. ART. 1.641, II, CC/02. INAPLICABILIDADE. Não se aplica à união estável o art. 1.641, II, CC/02, por afronta ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, e pelo descabimento de aplicação analógica para restringir direitos. O regime de bens na união estável é o da comunhão parcial, ainda que um dos companheiros tivesse mais de sessenta anos. 2) DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. Ainda que a autora não tenha requerido o direito real de habitação, ele pode ser concedido de ofício. 3) MEAÇÃO. SUB-ROGAÇÃO NÃO DEMONSTRADA. A sub-rogação, para ser reconhecida, deve restar inequivocamente demonstrada. Inexistindo tal prova nos autos, concede-se o direito de meação à autora sobre o imóvel adquirido na vigência da união estável. Apelação da sucessão/ré desprovida. Recurso adesivo da autora provido.” (TJRS, Apelação Nº 70023452725, 8ª Câmara Cível, Rel. José Ataídes Siqueira Trindade, j. 08/05/2008).

CIVIL. DIREITO CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ANULATÓRIA DE DOAÇÃO A CONSORTE. NUBENTE SEPTAGENÁRIO. FRAUDE AO REGIME DE SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA. INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 258, § ÚNICO, INCISO II DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. NÃO VIGE MAIS TAL RESTRIÇÃO POIS INCOMPATÍVEL COM AS CLÁUSULAS CONSTITUCIONAIS DE TUTELA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMADA, DA IGUALDADE JURÍDICA E DA INTIMIDADE. RESPEITO AOS ARTIGOS 1º, INCISO III E 5º, INCISOS I, X E LV DA CF/1888. RECURSO IMPROVIDO. SENTENÇA CONFIRMADA EM TODOS OS SEUS TERMOS. 1. O referido artigo realça o caráter protetor do legislador, que pretende resguardar o nubente maior de sessenta anos, e com o advento da Lei nº 12.344, de 09/12/2010, tutelou os maiores de setenta anos de idade, de uma união fugaz e exclusivamente interesseira. Vale ressaltar também, que este dispositivo fere os princípios da dignidade da pessoal humana e da igualdade, previstos em norma constitucional. 2. Acerca da restrição apontada pelos apelantes, tem-se assentes que o artigo 258,inciso II do Código Civil de 1916 tem tido sua aplicação mitigada pela doutrina e jurisprudência, a considerarem que foi reproduzido pelo Código Civil de 2002 (artigo 1641, II). 3. A doação realizada a apelada, foi com relação à parte disponível do patrimônio do autor da herança, em observância ao direito à legítima dos autores, os herdeiros necessários, mesmo porque não se pode doar acima do disponível sem que prejudique dos herdeiros necessários, no caso, os ora apelantes. 4. Ademais, tal limitação apontada pelo apelantes não pode superar a vontade do autor da doação, não podendo ser ignorada especialmente pelo fato de que o mesmo gozava plenamente, ao tempo da doação, de suas faculdades mentais, não havendo motivo para desconsiderar um ato da vontade deste de apenas deixar amparada a pessoa que lhe acompanhou nos seus últimos dias de vida. 5. Sentença confirmada 6. Apelação conhecida e improvida. (TJCE; Apelação nº 745-67.2004.8.06.0043/1; 5ª Câmara Cível; Rel. Des. Francisco Suenon Bastos Mota; DJCE 30/09/2011; Pág. 54).

Inventário Arrolamento Sucessão do companheiro União estável iniciada quando o “de cujus” era maior de 60 anos Inconstitucionalidade do art. 1.641, II do Código Civil Precedentes Ausência de herdeiros necessários Aplicação dos arts. 1.829, III e 1.838 do Código Civil, art. 2º, III, da Lei 8.971/94 e art. 226, § 3º, da Constituição Federal Impossibilidade de se aplicar o art. 1.790, III, do Código Civil, sob pena de retrocesso Companheira que tem direito à integralidade da herança Recurso provido. (TJSP; Apelação Cível 0399286-78.2009.8.26.0577; 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo; Rel. Des. Fábio Quadros; 19/09/2013)

Além disto, diversos doutrinadores, em suas obras, já entenderam pela inconstitucionalidade de tal dispositivo, a exemplo de Flavio Tartuce[31], que diz:

Pois bem, vejamos a tese de inconstitucionalidade do inc. II do art. 1.641. De fato, há posicionamento convincente na doutrina segundo o qual essa previsão é inconstitucional. A essa conclusão chegaram os juristas que participaram da I Jornada de Direito Civil, conforme o Enunciado n. 125 do CJF/STJ, que propõe a revogação da norma. Foram as suas justificativas, com as quais se concorda integralmente: “A norma que torna obrigatório o regime da separação absoluta de bens em razão da idade dos nubentes (qualquer que seja ela) é manifestamente inconstitucional, malferindo o princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República, inscrito no pórtico da Carta Magna (art. 1.º, inc. III, da CF). Isso porque introduz um preconceito quanto às pessoas idosas que, somente pelo fato de ultrapassarem determinado patamar etário, passam a gozar da presunção absoluta de incapacidade para alguns atos, como contrair matrimônio pelo regime de bens que melhor consultar seus interesses”.

[...]

Na opinião do presente autor, o aumento da idade para os 70 anos, conforme a recente Lei 12.344/2010, não afastou o problema, mantendo-se a tese de inconstitucionalidade. Anote-se que o Projeto de Lei 6.960/2002, que posteriormente recebeu o número 699/2011, já pretendia efetuar esta alteração sob o argumento da “elevação da expectativa de vida da população brasileira”. Estando a limitação em qualquer patamar etário, a inconstitucionalidade persiste, especialmente pelo claro preconceito contra as pessoas de idade avançada.

Silmara Juny Chinelato[32], citada por Carlos Roberto Gonçalves também informa que:

A questão foi bem enfocada por Silmara Juny Chinelato28 • Na visão da mencionada civilista, inexiste razão científica para a restrição imposta no dispositivo em tela, pois pessoas con1 mais de 70 d nos aportam a maturidade de conhecimentÕs da vida pessoal, familiar e profissional, devendo, por isso, ser prestigiadas quanto à capacidade de decidir por si mesmas. Entender que a velhice, aduz - e com ela, infundadamente, a capacidade de raciocínio -, chega aos 70 anos é uma forma de discriminação, cuja inconstitucionalidade deveria ser arguida tanto em cada caso concreto como em ação direta de inconstitucionalidade ... "A plena capacidade mental deve ser aferida em cada caso concreto, não podendo a lei presumi-la, por mero capricho do legislador que simplesmente reproduziu razões de política legislativa, fundadas no Brasil do início do século passado".

Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona[33] são categóricos ao afirmarem:

A segunda situação prevista na norma é absurda e, no nosso entender, de constitucionalidade duvidosa.

A alegação de que a separação patrimonial entre pessoas que convolarem núpcias acima de determinado patamar etário teria o intuito de proteger o idoso das investidas de quem pretenda aplicar o “golpe do baú” não convence.

E, se assim o fosse, essa risível justificativa resguardaria, em uma elitista perspectiva legal, uma pequena parcela de pessoas abastadas, apenando, em contrapartida, um número muito maior de brasileiros.

Não podemos extrair dessa norma uma interpretação conforme à Constituição.

Muito pelo contrário.

O que notamos é uma violência escancarada ao princípio da isonomia, por conta do estabelecimento de uma velada forma de interdição parcial do idoso.

Avançada idade, por si só, como se sabe, não é causa de incapacidade!

(GAGLIANO, Pablo Stolze e FILHO, Rodolfo Pamplona. Manual de direito civil; volume único. São Paulo: Saraiva, 2017. P 1.199)

Machado Costa[34] em Código Civil interpretado:artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. 10.ed. Barueri-SP: Manole, 2017, comenta que:

Apesar de o legislador tentar querer proteger o patrimônio da pessoa maior de 70 anos, evitando o chamado "golpe do baú” (no caso do indivíduo inescrupuloso que quer se beneficiar do matrimonio com pessoa bem mais ve¬ lha para lhe tomar os bens), na verdade se tem presente um fato sui generis, que é a submissão de uma pessoa que tem capacidade e discernimento a res¬ peito da vida a uma situação constrangedora e restritiva de sua liberdade para o relacionamento. Por haver contraste desse inciso com o disposto no art. 5º, I,da Magna Carta, tem-se essa restrição como abertamente inconstitucional.

Caio Mário da Silva Pereira[35], também comenta em sua obra tal situação, onde elucida que:

No entanto, esta regra não encontra justificativa econômica ou moral, pois que a desconfiança contra o casamento dessas pessoas não tem razão para subsistir. Se é certo que podem ocorrer esses matrimônios por interesse nestas faixas etárias, certo também que em todas as idades o mesmo pode existir. Trata­-se de discriminação dos idosos, ferindo os princípios da dignidade humana e da igualdade.

Como se pode observar, a Jurisprudência e a Doutrina são pacíficas no sentido de que tal dispositivo não guarda conformidade com a atual ordem constitucional. É imperioso mencionar que, até mesmo no Poder Legislativo, diversos Deputados e Senadores já reconheceram a inconstitucionalidade de tal dispositivo, propondo a alteração deste, a exemplo dos Projetos de Lei n. 4945/2005; 760/2015; e 2285/2007.

O Deputado Antônio Carlos Biscaia, na Justificativa do Projeto de Lei n. 4945/2005, foi categórico ao informa que

O inciso II do art. 1.641 é atentatório à dignidade humana dos mais velhos, que ficam impedidos de livremente escolher o regime de bens, ao se casarem, como punição pela renovação do amor. Esse dispositivo é incompatível com os arts. 1º, III, e 5º, I, X e LIV da Constituição Federal.

O Senador Davi Alcolumbre, no mesmo sentido, informa em sua Justificativa ao Projeto de Lei n. 760 de 2015, que:

A obrigatoriedade do regime de separação total de bens foi inserido no ordenamento infraconstitucional sob o argumento de proteger o idoso maior de setenta anos, entretanto, tal mandamento contraria a lógica e suprime direitos que a Carta Magna consagra a todo cidadão.

Diante de todo o exposto, não resta dúvidas que o art. 1.641, inciso II, do Código Civil, é materialmente inconstitucional, uma vez ser clara a ofensa aos princípios da dignidade da pessoa humana e da não discriminação, devendo, por conseguinte ser revogado, conforme esforços de diversos Doutrinadores, Juristas, e Legisladores, através de Projetos de Leis em tramitação; uma vez não estar de acordo com o conceito e as ideias de Direito de Família Contemporâneo.

Sobre o autor
Luciano Garcia Santos

Pós graduado em Direito Público pela Faculdade UnYLeYa

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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