1. INTRODUÇÃO
O Direito, enquanto instrumento de controle social tendente à imposição e restrição de determinadas condutas previamente definidas, não pode, muitas vezes, ser compreendido fora de um contexto de coerção [01]. Essa circunstância remete-nos a duas questões fundamentais: a uma, a quem cabe o uso da força e quais as razões para o acionamento do aparato coator; a duas, quais os limites para o emprego dessa força.
A temática é tão antiga e abrangente quanto o próprio Direito enquanto fenômeno social universal. Vale registrar, a propósito, o que diz Hans Kelsen [02]:
Se as ordens sociais, tão extraordinariamente diferentes em seus teores, que prevaleceram em diferentes épocas e diferentes povos, são chamadas ordens jurídicas, poder-se-ia supor que está sendo usada uma expressão quase que destituída de significado. O que o chamado Direito dos babilônicos antigos poderia ter em comum com o direito hoje nos Estados Unidos? O que a ordem social de uma tribo negra sob a liderança de um chefe despótico — uma ordem igualmente chamada "Direito" — poderia ter em comum com a constituição da república suíça? No entanto, há um elemento comum que justifica plenamente essa terminologia e que dá condições à palavra "Direito" de surgir como expressão de um conceito com um significado muito importante em termos sociais. Isso porque a palavra se refere à técnica social específica de uma ordem coercitiva, a qual, apesar das enormes diferenças entre o Direito da antiga Babilônia e o dos Estados Unidos de hoje, entre o Direito dos ashanti na África Ocidental e o dos suíços na Europa é, contudo, essencialmente a mesma para todos esses povos que tanto diferem em tempo, lugar e cultura: a técnica social que consiste em obter uma conduta social desejada dos homens através da ameaça de uma medida de coerção a ser aplicada em caso de conduta contrária. Saber quais são as condições sociais que necessitam dessa técnica é uma importante questão sociológica.
A despeito das elucubrações dos que se ocupam da Teoria Geral do Estado, é imperiosa a inferência de que, afastada a prática da justiça privada há séculos — , salvo algumas poucas e ressalvadas hipóteses legais desse exercício por particulares, como no caso da legítima defesa —, cabe a ele, Estado, e apenas a ele, a estipulação de normas de conduta e a aplicação das sanções previstas para os casos de transgressão.
Suposto não seja o objetivo deste trabalho tratar pormenorizadamente do tema correlato à fonte de legitimação estatal para a estipulação de obrigatoriedade de condutas, para o emprego de meios de coerção voltados a imposição de um determinado agir e nem tampouco para o emprego do aparato cominatório-repressor, cabe registrar que provêm essas circunstâncias da soberania de que é dotado o Estado, seja ela entendida como um poder, uma qualidade ou mesmo a manifestação da unidade de uma ordem que se possa atribuir a esse ente.
O tópico, foco de cizânia entre os doutrinadores, tem na questão da concepção da soberania — se de jaez estritamente político ou de índole apenas jurídica — seu mais instigante ângulo de observação. Nada obstante ser açular, convém, em função de um imperativo esquemático, retermo-nos na idéia apresentada pelo Professor Dalmo de Abreu Dallari [03], no sentido de que referida noção evoluiu da acepção puramente política [04] para uma também de têmpera jurídica. Diz o insigne professor:
Por tudo quanto foi visto, pode-se concluir que o conceito de soberania, tendo sido de índole exclusivamente política na sua origem histórica, já se acha juridicamente disciplinado, quanto à sua aquisição, seu exercício e sua perda. Essa afirmação do poder soberano como poder jurídico é de evidente utilidade prática, constituindo um importante obstáculo ao uso arbitrário da força. Como é natural, e os fatos o comprovam constantemente, é absurdo pretender que a soberania tenha perdido seu caráter político, como expressão de força, subordinando-se totalmente a regras jurídicas. Entretanto, sua caracterização como um direito já tem sido útil, quando menos para ressaltar o caráter antijurídico ou injusto da força incondicionada, para a solução de conflitos de interesses dentro de uma ordem estatal ou entre Estados, contribuindo para a formação de uma nova consciência, que repudia o uso arbitrário da força.
Não é prematuro, a partir do que foi exposto, concluir que se reveste de sublime importância, para o Estado e seus agentes, a questão dos limites do emprego da força para a manutenção da ordem jurídica posta e, via de conseqüência, para a preservação das instituições que traduzem o modelo estatal ao qual estão submetidas as pessoas.
Esse debate, todavia, não pode eclodir sem incursão — ainda que breve, como reclama o objetivo do presente trabalho — ao terreno dos antecedentes históricos dos marcos jurídicos que atualmente regulam o emprego dos mecanismos estatais de coerção por meio da força.
A meada histórica tem sua gênese sintética e magistralmente exposta por José Afonso da Silva [05], nos seguintes termos:
Efetivamente, na sociedade primitiva, gentílica, os bens pertenciam, em conjunto, a todos os gentílicos e, então, se verificava uma comunhão democrática de interesses. Não existia poder algum dominante, porque o poder era interno à sociedade mesma. Não ocorria subordinação ou opressão social ou política. O homem buscava liberar-se da opressão do meio natural, mediante descobertas e invenções. Com o desenvolvimento do sistema de apropriação privada, contudo, aparece uma forma social de subordinação e de opressão, pois o titular da propriedade, mormente da propriedade territorial, impõe seu domínio e subordina tantos quantos se relacionem com a coisa apropriada. Surge, assim, uma forma de poder externo à sociedade, que, por necessitar impor-se e fazer-se valer eficazmente, se torna político. E aí teve origem a escravidão sistemática, diretamente relacionada com a aquisição de bens. O Estado, então, se forma como aparato necessário para sustentar esse sistema de dominação. O homem, então, além dos empecilhos da natureza, viu-se diante de opressões sociais e políticas, e sua história não é senão a história das lutas para delas se libertar, e o vai conseguindo a duras penas.
Na construção desse regime de limitação ao "sistema de dominação" atribuível ao Estado e que se torna efetivo também por meio de seu aparato repressor, várias concepções de ordem ético-religiosa foram sendo agregadas para que se pudesse obter a justificação para o cerceio da ação estatal contra os indivíduos — regime este que hoje concebemos sob a designação genérica de direitos humanos —, não sendo possível deixar-se de destacar os contributos do pensamento agostiniano, de inspiração nitidamente platônica, e tomista, de influência aristotélica.
Aliás, convém registrar a lição de Ana Cláudia Silva Scalquette [06] acerca da relevância do ideário medieval:
Encontramos coesão na doutrina quanto à importância que teve o período da Idade Média para o desenvolvimento dos direitos humanos fundamentais, pois, através da formação de uma teoria de direitos naturais, onde surgiram princípios tendentes a limitar os poderes do Rei, criaram-se condições para o surgimento de pactos, forais e cartas de franquias, culminando com o reconhecimento dos direitos fundamentais nos processos revolucionários do século XVIII.
Esse acervo doutrinário foi sendo gradativamente inserto na ordem jurídica positiva de inumeráveis nações, convindo mencionar, exemplificativamente, as Cartas e Declarações Inglesas (Magna Carta, de 1215; a Petition of Rights, de 1628; o Habeas Corpus Act, de 1679; e o Bill of Rights, como resultado da Revolução Gloriosa, de 1688), a Declaração de Direitos do Povo da Virgínia e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, esta francesa e aquela estadunidense [07].
A força, portanto, deixar de ser, paulatinamente, instrumento de emprego irrestrito voltado à imposição da vontade estatal traduzida em norma cogente, ao menos no que concerne ao alcance e intensidade. Registre-se, por oportuno, o que diz Fernando Armando Ribeiro [08]:
Tem-se, assim, que não basta a força para se impor uma norma como válida. Já Russeau ([s.d.]:20), em seu majestoso O contrato Social, realisticamente havia advertido: "O mais forte não é jamais suficientemente forte para ser sempre o senhor, se não transformar sua força em Direito e a obediência em dever". Igualmente curiosa é a advertência atribuída a Talleyrand, que, ante a prepotência de Napoleão, lhe teria afirmado: "Com as baionetas, Senhor, pode-se fazer tudo, menos uma coisa: sentar-se sobre elas". É a diferença entre o poder-força e o verdadeiro poder que se traduz em autoridade, que se investe de superioridade moral e justificativa ética. O primeiro sustenta-se apenas mediante ameaça e intimidação. A autoridade, ao contrário, baseia-se primacialmente no respeito livremente consentido.
A marcha histórico-evolutiva consolidou uma ordem de pensamentos que se traduz hoje em regras que são postas sob a designação de Direitos Humanos e Direitos Fundamentais [09] e que, induvidosamente, quando menos no que diga respeito aos povos sujeitos à influência do pensamento ocidental, constituem os lindes da atuação estatal, significativamente no tocante ao emprego da força por parte do Estado contra o indivíduo.
2. EMPREGO DE MEIOS DE COERÇÃO MEDIANTE FORÇA VERSUS DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS – LIMITAÇÕES – LEGISLAÇÃO DE INCIDÊNCIA EM TERRITÓRIO BRASILEIRO
A Constituição da República Federativa do Brasil, já em seu artigo primeiro, estabelece:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
O referido dispositivo, ao fincar os pilares sobre os quais se erige a República, revela dois aspectos de especial importância para a compreensão do tema objeto de análise no presente trabalho.
O primeiro deles diz respeito ao fato de que nossa federação constitui-se em "Estado Democrático de Direito". Essa estipulação traz graves implicações, pois, como adverte Alexandre de Morais [10],
O Estado Democrático de Direito significa a exigência de reger-se por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo, bem como o respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais. (grifo acrescido)
Não menos relevante é a advertência de Uadi Lammêgo Bulos [11]:
O constituinte, inspirado no artigo 2º da Constituição portuguesa, finda esse art. 1º afirmando que a República Federativa do Brasil "constitui-se em Estado Democrático de Direito". Fê-lo acertadamente, porque quis reforçar a idéia segundo a qual o Estado de Direito e democracia, bem como democracia e Estado de Direito, não são noções tautológicas, pleonásticas. Ao invés, inexistem dissociadas. Devem, por isso, vir juntas e não separadas uma da outra, pois visam reforçar a concepção de que o Estado Democrático de Direito surge em oposição ao Estado de Polícia — aquele autoritário, que apregoa o repúdio às liberdades públicas, no sentido mais vasto e completo que essa expressão possa ensejar. Ao utilizar a terminologia Estado Democrático de Direito, a Constituição reconheceu a República Federativa do Brasil como uma ordenação estatal justa, mantenedora dos direitos individuais e metaindividuais, garantindo os direitos adquiridos, a independência e a imparcialidade dos juízes e tribunais, a responsabilidade dos governantes para com os governados , a prevalência do princípio representativo, segundo o qual todo poder emana do povo e, em nome dele, é exercido, por meio de representantes eleitos através do voto. Em realidade, a expressão Estado de Direito, sem o qualitativo democrático, é tradução literal do vocábulo alemão Rechtsstaat, empregada desde o começo do século XIX. Com o tempo. Com o tempo, o termo incorporou-se ao vocabulário jurídico e político, significando o oposto de Polizeistaat — Estado de Polícia, o Estado da época do Absolutismo. Daí a ponderação arguta de Gomes Canotilho e Vital Moreira ao anotarem o art. 2º da Carta portuguesa, que equivale, como dissemos, a este art. 1º da nossa Constituição: "este conceito — que é seguramente um dos conceitos chaves da CRP — é bastante complexo, e as suas duas componentes — ou seja, a componente do Estado de direito e a componente do Estado democrático — não podem ser separadas uma da outra. O Estado de direito é democrático e só sendo-o é que é Estado de direito; O Estado democrático é Estado de direito e só sendo-o é que é democrático" (...) "Esta ligação material das duas componentes não impede a consideração específica de cada uma delas, mas o sentido de uma não pode deixar de ficar condicionado e de ser qualificado em função do sentido da outra" (Constituição da República Portuguesa anotada, 3 ed., Coimbra, Coimbra Ed., 1984, p. 73). A expressão Estado Democrático de Direito, tal qual empregada pelo constituinte de 1988, serve para abranger os valores que informam a República Federativa do Brasil, dentre os quais a liberdade pessoal, a liberdade de consciência, a liberdade de pensamento em toda a sua extensão (liberdade de discurso, liberdade de imprensa, liberdade de manifestação do pensamento), a inviolabilidade da vida, do sigilo da correspondência, do domicílio, das comunicações, do devido processo legal (em toda a sua extensão), da igualdade de todos perante a lei, da irretroatividade da lei penal, exceto para beneficiar o réu, a liberdade de culto, de locomoção, de associação, do direito de greve, dos direitos econômicos, sociais, trabalhistas, previdenciários etc. (sem grifo no original).
O segundo aspecto significativo diz respeito aos fundamentos da soberania e da dignidade da pessoa humana.
Com relação à soberania, afora o que já dito alhures, convém transcrever o que diz Marcelo Caetano [12] acerca daquilo em que consiste a figura jurídico-política em comento:
um poder político supremo e independente, entendendo-se por poder supremo aquele que não está limitado por nenhum outro na ordem interna e por poder independente aquele que, na sociedade internacional, não tem que acatar regras que sejam voluntariamente aceitas em pé de igualdade com os poderes supremos dos outros povos.
No tocante ao que se compreende, do ponto de vista jurídico, como sendo dignidade da pessoa humana [13], é preciosa a lição de Alexandre de Moraes [14]:
A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, ma sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. (...) O princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal da dignidade da pessoa humana apresenta-se em uma dupla concepção. Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento de igualitário dos próprios semelhantes.
A agregação das idéias até aqui veiculadas — Estado Democrático de Direito, Soberania e Dignidade da Pessoa Humana — autorizam a ilação de que o Estado Brasileiro está jungido a princípios e regramentos jurídicos endógenos e exógenos que limitam seu agir, em quaisquer circunstâncias, frente aos seres humanos que estejam sob sua autoridade. A noção de Estado Democrático de Direito, como se extrai do próprio texto constitucional, firma o compromisso estatal indelével com as construções jurídico-políticas relativas à soberania e à dignidade da pessoa humana.
A soberania impõe, demais do que já anotado, a obrigatória observância dos instrumentos internacionais chancelados pelo Brasil, desde que formalmente insertos na ordem jurídica positivada. A submissão e o acatamento às "regras que sejam voluntariamente aceitas" e que foram firmadas em paridade de condições com outras potências e organismos internacionais é, antes de conseqüência, manifestação precípua da autoridade soberana nacional frente ao concerto das nações.
De outra parte, o fundamento republicano da dignidade da pessoa humana, como já supracitado, impele o Estado Nacional, igualmente de forma inarredável, ao respeito aos Direitos Humanos e aos Direitos Fundamentais e, aqui, portanto, torna-se necessário explicitar-se a distinção técnico-jurídica entre estes e aqueles, conforme anteriormente mencionado (nota 9) e, para tanto, apresenta-se oportuna a formulação de Scalquette [15]:
A principal distinção que se faz acerca das expressões é a de que "direitos fundamentais" são os direitos do homem juridicamente positivados, sendo que a expressão "direitos humanos" teria relação com uma esfera maior de atuação, a esfera internacional, onde é indiferente a vinculação do indivíduo a este ou aquele sistema jurídico, mas sua própria existência humana já se mostra suficiente para que este tenha seus direitos reconhecidos.
A proposição induz à ilação de que pode haver a existência complementar ou dissociada de duas ordens jurídicas, uma nacional e outra internacional. O assunto, com efeito, é objeto de discórdia entre os estudiosos do Direito Internacional Público, entre constitucionalistas e entre estes e aqueles, divididos entre os adeptos da Teoria Monista e os defensores da Teoria Dualista. Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer e Anna Carla Agazzi [16], ambos Procuradores do Estado de São Paulo e membros do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, ensinam:
A teoria monista desdobra-se em várias concepções, como a do primado do Direito interno, a do primado do Direito internacional público e a de possibilidade de escolha entre os dois primados. Segundo essa teoria, acolhida principalmente pelos juristas alemães, o Direito das gentes emana do Direito interno, porque resulta de ato fundamental do Estado, que por si limita o próprio poder, se obrigando às demais soberanias. Esta concepção não é muito aceita, sofrendo pesadas críticas em função dos valores inerentes à soberania. A escola austríaca já pende para o primado do Direito internacional público, capitaneada por Kelsen. No pensamento de Scelle, resumidamente, temos que embora o indivíduo conviva em sociedades menores, suas atividades comerciais, culturais, políticas e sociais estão permeadas por uma solidariedade que se estende ao nível mais amplo — internacional. No dizer de Oscar Tenório, o Direito intersocial possui uma unidade resultante da própria unidade do Direito de forma geral, o que gera uma fusão entre o Direito interno e o Direito internacional, uma vez que todas as oposições entre os dois são eliminadas. Já a teoria dualista, que tem como um de seus mais notáveis defensores Triepel, estabelece diferenças entre o Direito internacional público e o direito interno. Ainda que se admita a vontade do Estado como origem do Direito internacional, estabelece que deva haver uma manifestação superior. Esses dois conjuntos de regras jurídicas — de Direito interno e de Direito internacional — são distintos na medida em que as regras internas são emanadas de um poder ilimitado, de um Estado com poder de coação para fazê-las serem cumpridas, existindo assim, uma forte subordinação.
A despeito das considerações conflitantes de ordem doutrinária, convém atenção ao ensinamento pragmático de Fábio Konder Comparato [17]:
Sem entrar na tradicional querela doutrinária entre monistas e dualistas, a esse respeito, convém deixar aqui assentado que a tendência predominante, hoje, é no sentido de se considerar que as normas internacionais de direitos humanos, pelo fato de expirarem de certa forma a consciência ética universal, estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado. Em várias Constituições posteriores à 2ª Guerra Mundial, aliás, já se inseriram normas que declaram de nível constitucional os direitos humanos reconhecidos na esfera internacional. Seja como for, vai-se afirmando hoje na doutrina a tese de que, na hipótese de conflito entre regras internacionais e internas, em matéria de direitos humanos, há de prevalecer sempre a regra mais favorável ao sujeito de direito, pois a proteção da pessoa humana é a finalidade última e a razão de ser de todo o sistema jurídico.
Quiçá como seqüela dessa concepção, o constituinte derivado pátrio, por meio da Emenda Constitucional n.º 45, de 8/12/2004, publicada no Diário Oficial da União de 31/12/2004, acresceu um terceiro parágrafo artigo 5º da Constituição da República, com a seguinte dicção:
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
Esse cenário traz à tona a conclusão de que encontra plena vigência na ordem interna a Convenção de Genebra de 12 de agosto de 1949 [18] e seus Protocolos Adicionais, I e II, ambos de 1977 [19], especialmente seus dispositivos relacionados à caracterização dos atores de conflitos armados não internacionais, já que indispensáveis ao estabelecimento de corredores de ajuda humanitária internacional e à poda de eventuais exorbitâncias ao emprego da força bélica.
Não se pretende, com tal inferência, contudo, admitir-se a retórica humanitarista que, em última instância, serve a propósitos de um nítido intervencionismo voltado a satisfação de interesses econômicos e estratégicos de potências estrangeiras.
Danielle Annoni [20], Professora do Departamento de Direito da UFSC e da UNISUL, faz, acerca dessa circunstância, relevante advertência:
O imperativo humanitário faz-se imprescindível. A intervenção da comunidade internacional no Estado violador dos direitos humanos mínimos, inerentes a todo cidadão, é necessária e legítima, desde que consciente. Intervir, para buscar pela consolidação da democracia; intervir para preservar direitos e garantir o exercício da cidadania; intervir não permitindo que práticas condenáveis, como a escravidão, o genocídio, a tortura, a miséria tornem-se banais; intervir para impedir a guerra, a barbárie, a violação aos direitos humanos em caso de guerra civil, estado de emergência ou conflitos armados é questão de sobrevivência, do homem e do planeta. Mas intervir não significa gerir.
O uso indiscriminado do discurso de intervenção humanitária e de proteção aos direitos humanos banaliza sua credibilidade, sua força de aglutinação e movimento. Cria resistências e dúvidas. Dificulta a atuação de agentes governamentais, das Organizações não-Governamentais (ONGs), dos agentes e instituições voluntárias que passam a ser vistos como espiões, impedindo que a ajuda humanitária atinja o seu destino. Retarda o processo de construção de uma aldeia global pacífica, democrática e cidadã.
Como exemplo da utilização desvirtuada dos imperativos humanitários, a mesma Danielle Annoni [21] leciona:
Entre 1990 a 1997, o Conselho de Segurança da ONU, sob a égide do direito humanitário, autorizou o uso da força em cinco situações: no Iraque, na Somália, na ex-Iugoslávia, em Ruanda e no Haiti e impôs sanções em oito situações, incluindo ainda a Libéria, a Líbia e Angola. Mas, porque (sic) não se manifestou sobre a mutilação de crianças em Serra Leoa, sobre a exploração de crianças e mulheres na China e na Índia, sobre a atuação dos EUA na América Central e do Sul e na Ásia?
Annoni [22] responde sua própria indagação ao narrar o que segue:
As exigências humanitárias e ambientais impostas pela União Européia à Turquia, quando da exportação e importação de produtos turcos, a intervenção norte-americana no Kuait, na defesa das reservas de petróleo, são outro exemplo do uso indiscriminado da intervenção humanitária e dos direitos humanos como justificativa para a ingerência noutros Estados e proteção de sua economia.
Práticas como estas são freqüentes no mercado internacional. Ocorre, contudo, que muitos Estados não conseguem se defender destas medidas discriminatórias, em razão dos autos custos de uma demanda junto à Organização Mundial do Comércio. E o discurso de proteção e defesa do meio ambiente, direitos humanos, intervenções humanitárias, políticas e sociais acabam por ser absorvidas pela comunidade internacional como positivas, quando, em verdade, a efetivação desses direitos e a criação de mecanismos realmente eficazes de sua proteção não ultrapassam o discurso.
Entretanto, mesmo sob o risco perene de que a defesa de interesses alienígenas seja levada a efeito sob o manto da necessidade de estabelecimento de veios de ajuda humanitária e suposto haja, induvidosamente, franco intuito de limitar, por meio das definições encerradas nas convenções e protocolos referidos, o emprego do poderio militar, como legítima consagração de valores altruísticos, afigura-se igualmente certa a conclusão de que, as mesmas disposições também autorizam o emprego da mesma força quando assente um cenário em que a atuação de grupos de conformação militarizada instale um cenário de crise aguda que enseje, por exemplo, a decretação do Estado de Sítio (v. g. eventual levante secessionista).
3 – REGÊNCIA CONSTITUCIONAL DAS FORÇAS ARMADAS - HIPÓTESES DE EMPREGO.
Desde o estabelecimento da primeira disciplina constitucional originariamente brasileira, ou seja, com a sobrevinda da Constituição Imperial, as Forças Armadas têm a ela consagradas disposições especiais nos textos da Lei Maior.
Na atual ordem não sucedeu diversamente, tendo o Texto Constitucional em vigor — decerto como reflexo da necessidade de proteção máxima aos consagrados dos valores do Estado Democrático de Direito — conferido a elas papel precípuo na defesa do Estado e das instituições democráticas (Capítulo II, Título V, da Constituição da República Federativa do Brasil).
Por essa razão Bulos [23] ensina que
Postas a serviço do direito e da paz social, têm o objetivo de afirmar a ordem interna da Nação. Do ponto de vista externo, buscam garantir a defesa da soberania a da pátria, funcionando como vigas mestras de subsistência do Estado, em perfeita sintonia com seus fins essenciais.
(...)
Ao incluir as Forças Armadas no Título V, relativo à defesa do Estado e das instituições democráticas, a Constituição quis enfatizar o seu poderio, imprescindível nos momentos cívicos da vida internacional. Por isso, o respeito à sua autoridade consigna um dever de todos, tendo em vista a destinação que o constituinte lhe outorgou.
José Afonso da Silva [24] oferta ensinamento de mesma índole:
A Constituição vigente abre a elas um capítulo do Título V sobre a defesa do Estado e das instituições democráticas com a destinação acima referida, de tal sorte que a sua missão essencial é a defesa da Pátria e a garantia dos poderes constitucionais, o que vale dizer defesa, por um lado, contra agressões estrangeiras em caso de guerra externa e, por outro lado, defesa das instituições democráticas, pois a isso corresponde a garantia dos poderes constitucionais, que, nos termos da Constituição, emanam do povo (art. 1.º parágrafo único). Só subsidiária e eventualmente lhes incumbe a defesa da lei e da ordem, porque essa defesa é de competência primária das forças de segurança pública, que compreendem a polícia federal as polícias civil e militar dos Estados e do Distrito Federal. Sua interferência na defesa da lei e da ordem depende, além do mais, de convocação dos legítimos representantes de qualquer dos poderes federais: Presidente da Mesa do Congresso Nacional, Presidente da República ou Presidente do Supremo Tribunal Federal.
Não correspondendo as hipóteses de agressão armada externa ao objetivo basilar do presente trabalho, circunscrever-se-á a abordagem da problemática do emprego das Forças Armadas na defesa das instituições democráticas e na defesa da lei e da ordem.
Ainda que contrariando a seqüência estrutural da Constituição, parece mais adequado à presente exposição de idéias que a investigação em curso tenha início com a temática da defesa da lei e da ordem já que, como inferência das considerações doutrinárias supracitadas, trata-se de hipótese de menor dimensão — mas não menos relevante —, pois o emprego do aparato bélico em tais circunstâncias é levado a efeito apenas de forma subsidiária e eventual.
3.1 – DO EMPREGO ORDINÁRIO DAS FORÇAS ARMADAS NA DEFESA DA LEI E DA ORDEM
A presente abordagem não pode avançar sem reforço da noção de que o emprego das Forças Armadas, na preservação da lei e da ordem sucede, como já referido, "subsidiária e eventualmente", pois a missão de garante é reservada pela regra constitucional, em primeiro momento, ao aparato policial, em sua acepção estrita, seja ele federal ou estadual.
Todavia, ainda que posta sob a circunstância de emprego supletório, não se pode caracterizar a inserção do aparato bélico no cenário em comento como sendo uma manifestação do estado de não normalidade.
Ao reverso, o emprego de tropas, a partir de diretrizes presidenciais e em cooperação com governos estaduais, é viável em circunstância ordinária, assim compreendida como aquela em que ocorre dano à ordem pública sem ameaça à estabilidade institucional.
A matéria, como não poderia deixar de ser, insere-se no âmbito da reserva legal e tem suas diretrizes postas nos termos tanto da Constituição da República (art. 142, § 1º) quanto da Lei Complementar n.º 97, de 9 de junho de 1999, com alterações trazidas pela Lei Complementar n.º 117/2004.
A norma infraconstitucional referida encerra a seguinte dicção:
Art. 15. O emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz, é de responsabilidade do Presidente da República, que determinará ao Ministro de Estado da Defesa a ativação de órgãos operacionais, observada a seguinte forma de subordinação:
I - diretamente ao Comandante Supremo, no caso de Comandos Combinados, compostos por meios adjudicados pelas Forças Armadas e, quando necessário, por outros órgãos;
II - diretamente ao Ministro de Estado da Defesa, para fim de adestramento, em operações combinadas, ou quando da participação brasileira em operações de paz;
III - diretamente ao respectivo Comandante da Força, respeitada a direção superior do Ministro de Estado da Defesa, no caso de emprego isolado de meios de uma única Força.
§ 1º Compete ao Presidente da República a decisão do emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos poderes constitucionais, por intermédio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados.
§ 2º A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal.
§ 3º Consideram-se esgotados os instrumentos relacionados no art. 144 da Constituição Federal quando, em determinado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional. (Incluído pela Lei Complementar nº 117, de 2004)
§ 4º Na hipótese de emprego nas condições previstas no § 3o deste artigo, após mensagem do Presidente da República, serão ativados os órgãos operacionais das Forças Armadas, que desenvolverão, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, as ações de caráter preventivo e repressivo necessárias para assegurar o resultado das operações na garantia da lei e da ordem. (Incluído pela Lei Complementar nº 117, de 2004)
§ 5º Determinado o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, caberá à autoridade competente, mediante ato formal, transferir o controle operacional dos órgãos de segurança pública necessários ao desenvolvimento das ações para a autoridade encarregada das operações, a qual deverá constituir um centro de coordenação de operações, composto por representantes dos órgãos públicos sob seu controle operacional ou com interesses afins.(Incluído pela Lei Complementar nº 117, de 2004)
§ 6º Considera-se controle operacional, para fins de aplicação desta Lei Complementar, o poder conferido à autoridade encarregada das operações, para atribuir e coordenar missões ou tarefas específicas a serem desempenhadas por efetivos dos órgãos de segurança pública, obedecidas as suas competências constitucionais ou legais. (Incluído pela Lei Complementar nº 117, de 2004)
§ 7º O emprego e o preparo das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem são considerados atividade militar para fins de aplicação do art. 9o, inciso II, alínea c, do Decreto-Lei no 1.001, de 21 de outubro de 1969 - Código Penal Militar. (Incluído pela Lei Complementar nº 117, de 2004) (grifos acrescidos)
É necessário destacar, em primeiro momento, que a turbação da lei e da ordem constitui pressuposto básico e primaz para o emprego das Forças Armadas, residindo no gradiente dessa circunstância — cuja primeira seqüela a ser identificada deve ser o risco a que se expõe a estabilidade institucional — o parâmetro primeiro para a estipulação das medidas operacionais necessárias e suficientes à restauração do cenário de conformidade.
Para a restauração da lei e da ordem, via aparato bélico, impõem-se, a teor do que dispõe a Lei Complementar n.º 97/1999, que se mostrem "esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal" (art. 15, § 2º) e que referida extenuação configura-se quando "formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional" (art. 15, § 3º).
Pois bem, se a atuação do instrumental militar justifica-se e é autorizada em razão da falência dos órgãos nominados no artigo 144 da Constituição da República — traduzida na incapacidade de preservação e restauração da ordem pública e da incolumidade das pessoas por indisponibilidade de meios para a realização das tarefas que lhes são constitucionalmente reservadas — ilação irresistível é a de que o aparato da armada, empregando meios de maior pujança, deve sorver as atribuições das referidas entidades.
Logo, exemplificativamente, se a Polícia Federal, encontrando-se em circunstância em que exauridas as suas possibilidades operacionais de "prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins", finda por comprometer a necessidade de "preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio", a atuação das Forças Armadas, voltadas a tal desiderato, só poderá justificar-se mediante a assunção da missão originariamente destinada pela Constituição àquele órgão.
Não há outra conclusão possível. Afinal, se o comprometimento autorizador, ainda hipoteticamente considerado, é a supremacia do "tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins" sobre o aparato policial ordinário, restaurar-se-á a regularidade apenas com a supressão desse fator de desestabilização, e isso, como já referido, dar-se-á por meio do emprego de meios de maior robustez que, presumivelmente, só pode ser levado a efeito por intermédio da força bélica.
Essa circunstância — nada obstante a discussão ser de jaez estritamente jurídico — parece estar acorde, e ainda no campo da mera especulação exemplificativa, com a possibilidade de emprego do Exército no campo das "outras ações pertinentes" previstas no artigo 17-A da Lei Complementar n.º 97/1999 e no Decreto n.º 3.897/2001.
Outra indagação que irrompe da temática até aqui abordada — e convém assinalar também a sua têmpera notoriamente jurídica — diz respeito à circunstância de poder representar a atuação das Forças Armadas em sítio próprio do agir dos entes federados hipótese de intervenção federal.
O questionamento comporta respostas afirmativa ou negativa.
Para adequada compreensão da matéria, valho-me do que ensina José Afonso da Silva [25]:
Intervenção é antítese da autonomia. Por ela afasta-se momentaneamente a atuação autônoma do Estado, Distrito Federal ou Município que a tenha sofrido. Uma vez que a Constituição assegura a essas entidades autonomia como princípio básico da forma de Estado adotada, decorre daí que a intervenção é medida excepcional, e só há de ocorrer nos casos nela taxativamente estabelecidos e indicados como exceção ao princípio da não intervenção, conforme o art. 34 (...)
Alexandre de Moraes [26], por seu turno, leciona o seguinte:
Após análise das normas que regem o Estado Federal, percebe-se que a rega é a autonomia dos entes federativos (União/Estados/Distrito Federal e municípios), caracterizada pela tríplice capacidade de auto-organização e normatização, autogoverno e auto-administração. Excepcionalmente, porém, será admitido o afastamento desta autonomia política, com a finalidade de preservação da existência e unidade da própria Federação, através da intervenção.
Em decisão proferida no Processo de Intervenção Federal STF n.º 591-9/BA (DJ Nr. 177 - 16/09/1998, Pág. 42) o então Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, firmou o seguinte entendimento:
O instituto da intervenção federal, consagrado no texto de todas as Constituições republicanas brasileiras, representa um elemento fundamental, tanto na construção da doutrina do Estado Federal, quanto na praxis do federalismo. O mecanismo de intervenção constitui instrumento essencial a viabilização do próprio sistema federativo, e, não obstante o caráter excepcional de sua utilização - necessariamente limitada as hipóteses taxativamente definidas na Carta Política -, mostra-se impregnado de múltiplas funções de ordem político-jurídica, destinadas (a) a tornar efetiva a intangibilidade do vinculo federativo, (b) a fazer respeitar a integridade territorial das unidades federadas, (c) a promover a unidade do Estado Federal e (d) a preservar a incolumidade dos princípios fundamentais proclamados pela Constituição da Republica. A intervenção federal, na realidade, configura expressivo elemento de estabilização da ordem normativa plasmada na Constituição da Republica. É-lhe inerente a condição de instrumento de defesa dos postulados sobre os quais se estrutura, em nosso País, a ordem republicano-federativa.
O mesmo Alexandre de Moraes [27] esquematiza, nos termos das hipóteses constitucionais, os possíveis cenários de intervenção federal:
Intervenção Federal |
Espontânea |
Defesa da unidade nacional (CF, art. 34, I e II) |
Defesa da ordem pública (CF, art. 34, III) |
||
Defesa das finanças públicas (CF, art. 34, V) |
||
Por solicitação |
Defesa dos Poderes Executivo ou Legislativo locais |
|
Por requisição |
STF (CF, art. 34, IV – Poder Judiciário) - Provocada |
|
STF, STJ ou TSE (CF, art. 34, VI – ordem ou decisão judicial) |
||
STJ (CF, art. 34, VI – execução de lei federal) |
||
STF (CF, art. 34, VIII) |
Consideradas essas bases, é possível concluir-se, salvo melhor juízo de ordem técnico-jurídica, que haverá intervenção federal sempre que o emprego das Forças Armadas derivar de circunstância que não envolva o reconhecimento, por parte do Executivo Estadual, do exaurimento dos recursos do aparato relacionado no artigo 144 da Constituição da República.
Do contrário, derivando o emprego em comento de manifestação do poder local, estar-se-á diante de ato autônomo que, embora implique a transferência de "controle operacional dos órgãos de segurança pública necessários ao desenvolvimento das ações para a autoridade encarregada das operações", configurará vigência de ato de autogoverno inerente ao ente federado.
Outro aspecto que não pode escapar às considerações necessárias à caracterização do estado de normalidade diz respeito à noção de "estabilidade institucional".
Essa noção parte da premissa básica de que a normalidade do sistema constitucional democrático repousa na noção de equilíbrio. Inserto nessa ordem de idéias é que José Afonso da Silva oferta o seguinte ensinamento:
Diego Veladès observa, com David Easton, que "o equilíbrio é o elemento que caracteriza a ordem constitucional". Acrescenta que "o equilíbrio constitucional consiste na existência de uma distribuição relativamente igual do poder, de tal maneira que nenhum grupo, ou combinação de grupos, possa dominar sobre os demais", para concluir, agora com Catlin, que "a democracia é o equilíbrio mais estável entre os grupos de poder". Daí decorre, conforme os mesmos autores, que "a competição entre os distintos grupos sociais só é tolerável na medida em que esses mesmos grupos estejam subordinados aos procedimentos constitucionais". Isso quer dizer que, fora desses parâmetros, as competições pelo poder geram uma situação de crise, que poderá assumir as características de crise constitucional, e esta, se não for convenientemente administrada, governada, poderá provocar o rompimento do equilibro constitucional e, por conseguinte, pôr em grave risco as instituições democráticas.
A ruptura do equilíbrio constitucional que encerra as regras pela disputa pelo poder — a competição pelo comando político notabiliza a democracia —, o embate de forças fora dos lindes demarcados pela Constituição e que, portanto, impliquem periclitação à estabilidade das instituições democráticas, representa cenário que autoriza o emprego das forças armadas, mas não apenas para a defesa da lei e da ordem — que só pode se dar em razão do esgotamento do aparato policial ordinário para o enfrentamento das situações descritas alhures.
Circunstâncias dessa têmpera recomendam o enfrentamento da situação sob o enfoque do Sistema Constitucional das Crises, eis que configurado o estado de não normalidade.
3.2 – DO EMPREGO DAS FORÇAS ARMADAS EM CENÁRIO ANÔMALO
O Estado, e em especial o Estado Democrático de Direito, ainda que considerado como força motriz da promoção do bem comum, não está imune a turbações derivadas de colisão de forças e interesses sociais e políticos, bem como não se pode reputar a salvo de investidas, intestinas ou não, que ponham em risco as suas instituições democráticas.
Essas situações anômalas — "o equilíbrio relativo é o traço característico dos Estados democráticos" [28] — podem, por sua gravidade e proporção, solapar de tal forma a ordem pública e a paz social, bem como a própria existência do Estado — além das instituições democráticas, como supradito —, que se faz necessária a previsão de um sistema que permita a este destinar esforços, por meio de prevenção ou repressão, que tornem viável a restauração da paz e da ordem. internas
Essa sistemática, presente em quase todos os sistemas constitucionais democráticos sabidos,
é tradicionalmente conhecida sob o nome de estado e/ou direito de necessidade estadual. Várias outras expressões são utilizadas para aludir a este mesmo problema: ‘defesa da Constituição’, ‘defesa da República’, ‘suspensão das garantias individuais’, ‘defesa de segurança e ordens públicas’, ‘estado de excepção constitucional’, ‘proteção extraordinária do Estado’. [29]
Entre nós, a temática, inscrita na Constituição da República em seu Título V, denominado Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas, recebe da doutrina, considerada a esmagadora maioria, a designação de Sistema Constitucional das Crises.
Independentemente das questões correlatas à nomenclatura, há outras de maior repercussão e envergadura, anotadas por Canotilho [30], nos seguintes termos, verbis:
Qualquer que seja o enunciado lingüístico e qualquer que seja a pré-compreensão dos autores relativa ao direito de excepção, o leque de questões subjacente à constitucionalização do regime de necessidade do Estado reconduz-se fundamentalmente ao seguinte: previsão e delimitação normativo-constitucional de instituições e medidas necessárias para a defesa da ordem constitucional em caso de situação de anormalidade que, não podendo ser eliminadas ou combatidas pelos meios normais previstos na Constituição, exigem o recurso a meios excepcionais. Trata-se, por conseguinte, de submeter as situações de crise e de emergência (guerra, tumultos, calamidades públicas) à própria Constituição, constitucionalizando o recurso a meios excepcionais, necessários, adequados e proporcionais, para se obter o ‘restabelecimento da normalidade constitucional’.
Em termos rigorosos, a constitucionalização de ‘situações de necessidade’ implica a consagração de um direito de necessidade constitucional e não de um simples estado de necessidade desculpante. Dito por outras palavras: a incorporação constitucional de uma disciplina extraordinária para situações de emergência significa que se pretende não apenas uma causa de justificação eventualmente excludente de culpa por factos ou medidas praticadas para defender a ordem constitucional ( o que pressupõe a sua ‘ilicitude constitucional’) mas uma causa justificativa que exclua a idéia de ilicitude dos mesmos factos ou medidas (o que implica, desde logo, o reconhecimento do direito e dever das autoridades constitucionalmente competentes para recorrer a meios excepcionais, necessários, adequados e proporcionados para afastar perigos graves ou situações de crise que ameaçam a ordem constitucional democrática).
É certo que o episódio de constitucionalização do sistema de regência de crises é o ápice de um processo histórico-evolutivo [31], sendo possível, segundo o constitucionalista português Jorge Miranda [32], promover-se, hoje, algumas verificações derivadas desse processo de inserção do sistema em questão na arquitetura das constituições hodiernas. Eis a lição do referido doutrinador:
1º) As formas de organização e as providências para tempo de excepção e de crise decorrem directamente da Constituição (em sentido institucional), escrita ou não, não ficam à sua margem; não existem senão na medida em que dela decorrem; são meios de garantia, não de ruptura constitucional.
2º) Tais formas de organização e tais providências são solidárias com a idéia de Direito vertida em cada Constituição, a dois títulos – por um lado, por terem de ser coerentes com essa idéia, com o modo como aí se estrutura o poder, com as demais instituições políticas, e , por outro lado, por, em última análise, se destinarem a preservar não só o Estado mas também o regime político vigente.
3º) Salus populi suprema lex – todavia, sempre de acordo com certo princípio de legitimidade, sempre tendo em vista o restabelecimento da normalidade.
4º) Não há, em cada Estado, duas Constituições aparelhadas – uma Constituição da normalidade e uma Constituição da necessidade; há uma só Constituição, assente nos mesmos princípios e valores, embora com regras adequadas à diversidade de situações.
5º) A chamada suspensão da Constituição em Estado de necessidade apenas pode ser parcial, traduzindo-se na aplicação – na medida das exigências desse estado – das normas previstas para o efeito, em vez das normas previstas para tempo de normalidade; para lá de uma vicissitude constitucional, trata-se de um específico fenômeno de aplicação de normas em circunstâncias diversas.
6º) No Estado Constitucional, representativo ou de Direito, com Constituição (em sentido material, e não só institucional), a extensão e a intensificação da normatividade acompanham-se da extensão e da intensificação das regras sobre situações de necessidade; o alargamento e o rigor do estatuto jurídico do Estado envolvem o rigor e o alargamento do estatuto jurídico das situações de necessidade.
7º) Uma constituição normativa acentua o caráter excepcional das situações de necessidade, mas, ao mesmo tempo, assume-as plenamente, sujeita-as ao seu império, ajusta os mecanismos de controlo do poder a essas circunstâncias.
8º) Num regime político baseado no respeito dos direitos e liberdades fundamentais, o estatuto das situações de necessidade centra-se na salvaguarda desses mesmos direitos e liberdades – se não pode deixar de admitir a sua suspensão, fá-lo na observância de precisos formalismos e com acrescidas garantias; pelo contrário, um regime totalitário ou autoritário não carecerá de recorrer a providências de suspensão, salvo no limite (porque aí já em época de normalidade se vive em permanente compreensão das liberdades).
Suposto a inscrição da temática no âmbito do trato constitucional represente, com efeito, significativo avanço ou, melhor dizendo, a própria via de salvaguarda do regime constitucional em instantes de tensão sócio-institucional (gerada por fatores externos ou internos), há que se ter em conta a circunstância de não bastar essa providência para a efetiva e adequada solução dos problemas derivados da instauração de um cenário de crise aguda.
A dinâmica dos fatos desse jaez jamais será de todo enquadrada em limites constitucionais estritos, nada obstante as salvaguardas, no tocante suspensão de direitos nas situações aludidas seja, no mais das vezes, taxativa.
Não raras vezes o detalhamento das medidas e o alcance delas é remetida à esfera infraconstitucional, o que abre ensanchas para eventuais exorbitâncias. Estas, contudo, mesmo no regime de crises, podem ser suprimidas por meio do controle político ou jurisdicional (art. 141 da Constituição da República Federativa do Brasil).
Acerca da questão, vale anotar a opinião de J.J. Gomes Canotilho [33], verbis:
Em meados do séc.XIX, a questão do direito de necessidade estadual estava suficientemente amadurecida para se poderem fixar as premissas jurídico-constitucionais dos regimes de excepção: (a) em primeiro lugar, a defesa do Estado e da segurança pública só é compatível com o Estado Constitucional se e na medida em que ela esteja prevista na Constituição e não remetida para o domínio extraconstitucional; (b) a suspensão da Constituição é uma contraditio in adjectu, porque ela significa na prática um regime sem Constituição (mesmo limitado a parte do território); (c) a defesa do Estado não exige a suspensão da Constituição, mas sim a de algumas garantias individuais; (d) a constitucionalização do regime de excepção não pressupõe uma normativização constitucional pormenorizada desse regime, podendo a Constituição remeter para a lei os casos de situação excepcional e as formas e medidas a adoptar em tais circunstâncias.
Constitucionalização do estado de excepção e remissão para a lei da sua regulamentação são as pedras basilares da compreensão jurídico-constitucional do direito de necessidade. O problema está em que a disciplina constitucional é, por vezes, demasiado aberta, permitindo uma complementação legislativa sensivelmente subversora dos próprios princípios constitucionais. (sem grifo no original)
Esse cenário de recrudescimento das possibilidades de investida contra o regime constitucional é corolário direto da necessidade de hipertrofia do Poder Executivo que, no caso brasileiro, deterá, na pessoa de seu chefe, o poder-dever de decretar o Estado de defesa ou o Estado de sítio como meio para o enfrentamento da situação anômala caracterizadoras do estado de não normalidade.
Para mitigar a possibilidade de confirmação de prognósticos dessa índole é que Uadi Lammêgo Bulos [34], referindo-se aos dispositivos constitucionais em comento (Título V, Capítulo I, da Constituição da República Federativa do Brasil) leciona que
Qualquer interpretação dos dispositivos seguintes não pode ter como base aquelas concepções geopolíticas, mediante as quais se buscava a defesa deste ou daquele regime político ou de uma particular ideologia, ligada a grupos detentores do poder.
Ainda sobre a perspectiva de preservação da ordem constitucional na vigência do estado de defesa ou de sítio, convém registrar a opinião de Walber de Moura Agra [35], verbis:
O estado de sítio e o estado de defesa são excepcionalidades do Estado Democrático de Direito, e compõem o chamado ‘sistema constitucional de crises’, só podendo ser concretizados em situação de anormalidade. Isso acarreta, na esfera jurídica, a supressão de determinadas garantias, a maioria delas de âmbito constitucional, para fazer frente a essas anormalidades. (grifo acrescido)
Cremos, entretanto, que o emprego da locução "supressão de determinadas garantias" é de todo imprópria. Parece-nos mais adequado versar o assunto a partir não da "supressão", mas da mera suspensão das garantias constitucionais. A propósito, além do que já trasladado alhures, registramos a lição de Alexandre de Moraes [36]:
A Constituição Federal prevê a aplicação de duas medidas excepcionais para restauração da ordem em momentos de anormalidade — Estado de defesa e Estado de sítio —, possibilitando inclusive a suspensão de determinadas garantias constitucionais, em lugar específico e por certo tempo, possibilitando ampliação do poder repressivo do Estado, justificado pela gravidade da perturbação da ordem pública.
A excepcionalidade da suspensão de direitos fundamentais nas hipóteses de Estado de defesa e de Estado de sítio é permitida pela Constituição Federal, em virtude de determinadas situações anômalas e temporárias instauradas como resposta a uma ameaça específica à ordem democrática, pois essa limitação somante será possível em uma Democracia, quando sua finalidade for a própria defesa dos Direitos Fundamentais, postos em perigo. (grifo nosso)
A distinção é necessária, pois, na lição imorredoura de Rui Barbosa [37], alusiva ao Estado de sítio, há a constatação de que este
é um regímen extraordinário, mas não discricionário, um regímen de exceção, mas de exceção circunscrita pelo direito constitucional, submetida à vigilância das autoridades constitucionais, obrigada a uma liquidação constitucional de responsabilidades. É uma situação de arbítrio, mas arbítrio parcial, relativo, encerrado nas fronteiras de uma legalidade clara, imperativa, terminante, e em coexistência com o qual se mantêm os códigos, os tribunais, o corpo legislativo.
Além das considerações até aqui formuladas, convém registrar, por imprescindível, a existência de princípios informadores do sistema constitucional de crises, identificados por Lammêgo Bulos [38] como sendo três, a saber:
1º) princípio fundante da necessidade — os estados de defesa e de sítio só podem ser declarados à luz de fatos que os justifiquem, v. g., conturbações de ordem pública, ameaças à paz social , instabilidades institucionais, terremotos, enchentes etc.;
2º) princípio da temporariedade — os estados de defesa e de sítio têm prazo de duração preestabelecido no Texto Supremo;
3º) princípio da proporcionalidade — para serem adotadas tais medidas, elas devem ser proporcionais aos fatos que justificaram a sua adoção. Esse vetor é um desdobramento do princípio fundante da necessidade.
Estipuladas, a nosso ver, as principais estruturas jurídicas que emprestam os contornos do "direito de necessidade estadual", passaremos, doravante, a minudenciar as hipóteses traçadas na Constituição da República Federativa do Brasil e, específica e principalmente, tentaremos analisar as hipóteses e o alcance da utilização operacional das Forças Armadas no quadro sob análise.
Ponto primeiro para a compreensão do arquétipo nacional de governança das situações de periclitância que podem acometer o Estado e as Instituições Democráticas repousa principalmente na circunstância de haver, como distintivo entre as duas situações constitucionalmente previstas — Estado de defesa e Estado de sítio —, a majoração das medidas de restrição e a possibilidade do emprego de maior poder repressivo no caso de sítio.
Pode-se dizer, sem embargo, que o Estado de defesa é, em última análise, uma variante menos rigorosa do Estado de sítio (Princípio da Proporcionalidade).
Mas as distinções não se restringem ao quesito da diferença de gradiente repressivo e de limitação de direitos, havendo outras minúcias dignas de nota, eis que a gênese é o próprio texto constitucional. Bulos [39] registra as seguintes diferenciações entre o Estado de defesa e o Estado de sítio, verbis:
- No estado de defesa as medidas de legalidade extraordinária são menos drásticas, se comparadas ao estado de sítio.
- O Poder Executivo federal, no estado de defesa, toma providências mais amenas em relação aos direitos fundamentais. Já no estado de sítio, as medidas são fortes e muito gravosas às liberdades públicas.
- Daí dizer-se que, no estado de defesa, o próprio constituinte foi mais brando, valendo-se da proporcionalidade, ou seja, situações menos caóticas recomendam atitudes mais serenas.
- Em contrapartida, quanto mais graves são os fatos, mais intensas serão as reprimendas. Por isso é que, no estado de sítio, o constituinte confere ao Executivo poderes mais amplos, e, no estado de defesa, poderes mais restritos.
- Noutro prisma, o estado de defesa circunscreve-se a localidades determinadas, porque é proibida a sua decretação em todo território nacional. E faz sentido, porque medidas mais enérgicas devem ser tomadas via estado de sítio. Este sim, pode abranger o país por inteiro.
Percebe-se, sem embargo, e à exceção das hipóteses de "comoção de grave repercussão nacional" e de "declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira" (Constituição da República, art. 137, I e II) — quando o estado de sítio pode ser decretado antes mesmo da instalação do estado de defesa — que a distinção basilar entre este e aquele reside basicamente no maior potencial repressivo das medidas a serem adotadas em ambos os casos.
É necessário destacar, antes, peculiaridade alusiva à paz social que pode ser objeto de trato via decretação do estado de defesa.
O artigo 34, III, da Constituição da República reza justificar-se a intervenção federal para se "pôr termo a grave comprometimento da ordem pública". Implica isso que tal interferência, mesmo levada a efeito sob o manto da decretação do estado de defesa, deriva de situação já consumada e jamais se poderá reputar provocada, devendo ela, segundo classificação doutrinária supracitada, ser tida como espontânea.
Já quando a decretação do estado de defesa tiver por escopo "preservar" a "ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções da natureza" é possível que se a considere também como consectário da intervenção federal provocada, ou seja, "por solicitação" para a "defesa dos Poderes Executivo ou Legislativo locais".
Como já referido, o estado de defesa é expressão menos drástica do estado de sítio, sendo viável, em sua vigência, a adoção taxativa das seguintes medidas coercitivas, nos termos do artigo 136 da Constituição da República: restrições ao direito de reunião, ainda que exercida no seio das associações; ao direito de sigilo de correspondência; e ao direito de sigilo de comunicação telegráfica e telefônica.
No tocante ao sigilo de correspondência e de comunicação telegráfica e telefônica, aparenta não haver como se escapar de meios eletrônicos para o seu controle e a violação de correspondência, embora possa e deve ficar a cargo da autoridade militar responsável pela gestão do estado defesa, sugere não haver necessidade de utilização de meios pungentes.
Já no que diz respeito à suspensão do direito de reunião pode haver, com efeito, necessidade de emprego de meios mais aquilatados de repressão.
Todavia, como já referido, sendo o estado de defesa o desdobramento de uma quebra menos nefasta do estado de normalidade, o emprego do aparato militar — e parte-se da premissa de que o estado de defesa deriva da ineficácia do aparelho ordinário de segurança — deve ser igualmente proporcional ao estado de tensão instalado e autorizador da medida de exceção.
Por isso, para impedir ou suprimir o direito de reunião, no curso do estado de defesa, embora se possa cogitar do emprego de meios de maior potencial ofensivo, não há como se autorizar, em razão do próprio gradiente da situação, o emprego de recursos extremados de dissuasão.
A majoração do emprego da força, como resultado de eventual ineficiência de meios empregados no estado de defesa, constitui situação sugestiva da necessidade de progressão para o estado de sítio, onde as possibilidades de aplicação da força tornam-se mais amplas.
Acerca do estado de sítio em confronto com o estado de defesa e, via de conseqüência, das implicações subjacentes respeitantes ao emprego de meios militares de maior envergadura, convém anotar a lição de Scalquette [40]:
O estado de defesa deverá ser decretado para preservar ou prontamente restabelecer a normalidade em locais restritos e determinados, valendo-se, para alcançar tal objetivo, de medidas coercitivas elencadas no próprio texto constitucional.
Ives Gandra Martins, analisando os pressupostos do estado de defesa, ensina que "inundações, terremotos, maremotos etc. não poucas vezes exigem esforço suplementar para superar suas conseqüências, tendo inclusive, o constituinte, previsto empréstimo compulsório específico para tais casos, no art. 148 da Constituição Federal". No que tange à grave instabilidade institucional conclui o autor que "se é grave e iminente a instabilidade institucional é difícil que se restrinja a lugares restritos e determinados", como preceitua o artigo 136 da Constituição de 1988.
Já no estado de sítio, encontramos os seguintes pressupostos materiais:
1. comoção de grave repercussão nacional ou ocorrência de fatos de comprovem (sic) a ineficácia da medida tomada durante o estado de defesa.
2. declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.
Podemos entender por comoção de grave repercussão nacional "um estado de crise que seja de efetiva rebelião ou de revolução que ponha em perigo as instituições democráticas e a existência do governo fundado no consentimento popular".
No caso de ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa, poder-se-ia decretar o estado de sítio que, possibilitando o uso de medidas mais abrangentes, seria o meio eficaz para o controle da situação.
Ensina José Afonso da Silva que os dois últimos casos são de guerra. O primeiro, estado de guerra juridicamente estabelecido, guerra declarada e o segundo situação de guerra dependente de referendo do Congresso Nacional, ambos em conformidade com os artigos 49, II e 84, XIX da Constituição de 1988. Nesse último caso, o autor pondera que guerra "é sempre externa, ou seja: só estado de beligerância com Estado estrangeiro é que fundamenta o estado de sítio na hipótese".
O estado de sítio defensivo [41], segundo a opinião de Bulos [42], ao reverso do que entende o professor Afonso da Silva, não alcança apenas a situação belígera em relação a potência estrangeira. Segundo aquele "A guerra que enseja o estado de sítio, tanto poderá ser a externa como a civil".
Essa última proposição parece-nos mais adequada ao enfrentamento das situações mais acirradas e que ensejam a decretação do sítio.
Veja-se, por exemplo, as hipóteses de intervenção federal tratadas nos incisos I e II do artigo 34 da Constituição da República (manutenção da integridade nacional e rebate a invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra).
Ora, parece-nos pouco provável, surreal mesmo, que o enfrentamento de eventual levante secessionista ou mesmo o ataque de uma unidade federada contra outra possa ser contornado sem o emprego de técnicas e táticas estritamente militares.
E pode-se dizer, sem embargo, que o alcance dessas medidas pode englobar não apenas os envolvidos diretamente nas escaramuças, eis que se voltam, induvidosamente, a também dissuadir a adesão aos movimentos revoltosos ou revolucionários que ponham em risco "as instituições democráticas e a existência do governo fundado no consentimento popular".
Esse cenário, é inevitável que assim se conclua, caracteriza o conflito não internacional descrito no art. 1º do Protocolo Adicional II da Convenção de Genebra, de 1977, como sendo aquele que se desenvolve
(...) entre as suas forças armadas e forças armadas dissidentes ou grupos armados organizados que, sob a chefia de um comando responsável, exerçam sobre uma parte do seu território um controlo tal que lhes permita levar a cabo operações militares continuas e organizadas (...)
Instaurado um cenário desse jaez, no âmbito de conflito interno, é perfeitamente aceitável — senão recomendável — o emprego de meios tipicamente militares para a asfixia da situação, pois graves as suas conseqüências, dentre as quais o alastramento de guerra fratricida.
Nessa seara não há óbices constitucionais para o emprego de armas contra nacionais insurretos, mas, na esteira do que já fora até aqui tratado, convém realçar a idéia de que norteia o sistema constitucional das crises o princípio da proporcionalidade, de sorte que o vigor do aparato bélico não pode ser, de logo e em qualquer circunstância, ser utilizado em toda a sua intensidade, devendo corresponder o emprego da força ao tipo de situação que se pretenda debelar.
Isso, sem dúvida, reclama das forças armadas, o adestramento apropriado para o enfrentamento das mais variadas situações, que envolvem desde a necessidade de contenção de simples distúrbio civil (onde o emprego moderado de violência pode mostrar-se suficiente) até a necessidade de por cobro a levantes revolucionários e secessionista, quando apenas a utilização de outros meios (bombardeios, emboscadas e outras técnicas de combate) mostre realmente eficaz.
Outro consectário do emprego da armada em situações que impliquem a instauração de um conflito não internacional é a devida observância dos instrumentos internacionais dos quais o Brasil é parte signatária.
As definições neles encerradas — como a de conflito não internacional — em razão do status constitucional que lhe foi ofertado pela Emenda Constitucional n.º 45/2004, não podem ser confrontadas com outras de menor estatura jurídica.
Logo, o enfrentamento, pela via militar de "forças armadas dissidentes ou grupos armados organizados que, sob a chefia de um comando responsável, exerçam sobre uma parte do seu território um controlo tal que lhes permita levar a cabo operações militares continuas e organizadas" configura hipótese que autoriza impõe, como já referido, as limitações humanitárias impostas pelo Direito Internacional, inclusive a sujeição a inspeções e eventuais intervenções por parte de organismos internacionais.
Nada obstante, as distorções políticas decorrentes da má utilização dos preceitos humanitaristas no âmbito do cenário internacional, especialmente no que diz respeito à manipulação desse ideário para a defesa de interesses de potências estrangeiras, devem ser cuidadosamente acompanhadas, devendo haver, inclusive como item necessário à preservação da soberania nacional, a preparação para o enfrentamento de situações dessa ordem.