Magalhães Noronha explica que o delito é sempre uma ofensa à sociedade e que a pena, consequentemente, deve atuar estritamente no sentido de defesa dessa sociedade. Na seara disciplinar, a infração, para ser compreendida como tal, deve estar associada também a uma ofensa. A missão do Direito Penal é proteger os valores fundamentais, para a subsistência do corpo social. A missão do Direito Disciplinar é a de proteger os princípios norteadores da administração pública e a regularidade do serviço público.
Na seara criminal, a princípio, busca-se essa proteção pela intimidação coletiva, ou prevenção geral, quando o Estado difunde o temor aos possíveis infratores, mostrando a todos o risco de incorrerem nas mesmas consequências; ou, então, o que se faz modernamente, pela celebração de um compromisso ético entre o Estado e o indivíduo, pelo qual se restabelece o respeito às normas e aos valores sociais, menos por receio de punição e mais pela compreensão da necessidade desse equilíbrio.
Desta forma, tal qual acontece na esfera criminal com os delitos de menor potencial ofensivo, promove-se uma composição que permita alcançar a finalidade do controle sem necessariamente passar pelo trauma de um processo. E aqui não se trata de poupar o funcionário da referida perturbação, mas, sobretudo, de proteger o erário de gastos com medidas que, na prática, se mostram inócuas.
É certo que todo processo produz gastos, que são expressivos; gera desgastes entre pessoas, causando muitas vezes abalos irreparáveis nas relações corporativas. Logo, não se pode utilizar esse caminho como sendo o único e o melhor. O processo é instrumento de reserva.
Filipo Grispigni, no seu clássico Diritto Penale Italiano, explica com propriedade que “quando o Estado pode combater um mal com medida menos grave (...) não irá lançar mão da mais severa”. Portanto, se os administradores públicos tiverem uma solução ao alcance, menos complexa, menos onerosa, mais célere e de melhor resultado, nada justifica que avancem por veredas tortuosas.
As condutas perniciosas precisam ser enfrentadas com a espada; as condutas irregulares sem caráter pernicioso, por sua vez, devem ser tratadas com instrumentos que restabeleçam a ordem sem produzir feridas. Naquela burocracia em que os atos e ações esgotam-se em si, sem compromisso com resultado positivo, tem-se o seguinte cenário:
- O servidor sem caráter pernicioso, que pode ser corrigido e aproveitado, é constrangido, esmagado, desestimulado e transformado em sombra, em um fantasma dentro da repartição.
- O servidor de má índole, esperto, manipulador, tem larga probabilidade de sobreviver (em Juízo) a um processo disciplinar, geralmente conduzido sem segurança jurídica.
Nesse compasso, as medidas alternativas de compor o incidente, quando determinadas com prontidão, causam impacto mais favorável do que uma punição meramente formal, proferida dois, três, quatro anos depois do episódio. O Estado semeador do medo está falido. O que surte realmente efeito é aquela reação pela qual o agente, posto na presença da autoridade, é levado a compreender o destempero do seu procedimento e a assumir um compromisso ético de ajustamento da conduta. Para alguns indivíduos, doentes morais ou desprovidos de caráter, essa providência pode ser ineficaz; no entanto, para aquele que transgrediu uma norma, sem intencionalidade perversa, é a intervenção que mais apresenta resultado.
Reserve-se o processo disciplinar como instrumento a ser utilizado com segurança jurídica e com os recursos materiais e financeiros para o enfrentamento das condutas efetivamente perniciosas. Recupere-se o funcionário que incorreu em erro. É alguém em quem a administração já investiu e que, não obstante uma falha avulsa, ainda conserva potencial para servir à entidade pública.
USO ABUSIVO DO PODER
A promoção da responsabilidade disciplinar está dentro do poder-dever das autoridades. Estas, entretanto, assim como não podem ser omissas no conhecimento e na busca de solução, não possuem liberalidade para irem além daquilo que a lei autoriza. O poder não é algo para ser exercido aleatoriamente, sem medida, sem controle; trata-se de uma força que o Estado confere a um agente, que deve utilizá-la com legitimidade, ou seja, dentro do espaço necessário para o atendimento de um fim público.
Sebastião José Lessa[1] faz um interessante cotejo entre poder e abuso:
A bem dizer, o termo poder, na esfera da pública Administração, como é cediço, significa deliberar, agir e mandar, e mais específico, traduz a incumbência da execução das leis (...).
Por seu turno, o vocábulo abuso exprime o uso errado, excessivo ou injusto: exorbitância de atribuições.
(Grifos originais)
O processo disciplinar, por conseguinte, não pode ser empregado abusivamente, por capricho, por maldade. Nesse cenário, atrai a responsabilidade pessoal do agente – uma responsabilidade que concorre com a pessoa jurídica oficial.
É de se notar, nesse sentido, o que preceitua o Código Civil ao tratar dos atos ilícitos:
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Não se restringe, aqui, apenas ao titular de direito. A lei é interpretada no sentido também de alcançar o titular de um dever que, ao exercitá-lo, vai além dos limites impostos pela lei e pela boa-fé. Logo, é preciso que aqueles que são atingidos por processos gratuitos, por desmandos inequívocos, por atos de truculência sob a rubrica do dever, reajam à altura e busquem a reparação; e que o Judiciário lhes abra as portas; que não se intimide com as rubricas oficiais e com papéis timbrados. Uma análise acurada mostrará que em muitos casos as justificativas sob o fundamento do interesse público nada mais são do que disfarce do interesse particular do administrador público.
Implantação de meios alternativos de controle
A administração pública moderna, comprometida com a eficiência, tem espaço para buscar soluções além dos vetustos expedientes da sindicância e do processo disciplinar, sistematicamente utilizados por quadros despreparados como sendo a única forma de reação.
Os administradores bem informados devem observar que mesmo o Poder Judiciário está fugindo do horror do processo. Em espaços arejados, há mais de duas décadas a deusa da Justiça apresenta formas de redução de conflitos e de busca de resultados.
Na via administrativa, os dois expedientes que já se afirmaram no Brasil, são o ajustamento de conduta[2] para pequenos incidentes disciplinares e o termo circunstanciado administrativo para recompor danos ao erário.
Está-se a evoluir para a implantação, também na administração pública, de câmaras de conciliações de incidentes funcionais[3]. Com efeito, desde o início dos anos 1990, complexos processos judiciais são substituídos por soluções alternativas nas áreas cível e penal; e na virada do século 21, ganhou ênfase o chamado Sistema de Resolução Consensual e Arbitral de Conflitos. Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais têm organizado com grande êxito as Centrais, Câmaras ou Serviços de Conciliação, Mediação e Arbitragem. E essa é uma experiência que serve àqueles aos quais compete organizar políticas de controle da disciplina.
Léo da Silva Alves, conferencista com trabalhos na América do Sul, Europa e África, é autor de 48 livros sobre responsabilidade de agentes públicos; há mais de 25 anos atua no Direito Disciplinar como advogado, consultor de Corregedorias professor junto a Escolas de Governo, Escolas de Magistratura e Academias de Polícia. ([email protected])
[1] “Direito Administrativo Disciplinar” – Editora Brasília Jurídica – Brasília, 2006, pág. 83.
[2] Implantado no Brasil desde 2006, a partir de estudos do autor, com a apresentação formal no Encontro Nacional de corregedores em Natal- RN.
[3] Trabalho defendido pelo autor em Seminário de Direito Disciplinar, em Brasília, em setembro de 2013.