O estudo procura investigar os motivos pelos quais as mulheres brasileiras utilizam tão freqüentemente o único método irreversível, dentre outros tantos reversíveis, de planejamento familiar. Para tanto, pesquisou-se através de livros e estudos sobre o assunto como tal método contraceptivo é regulado no Brasil. Descobriu-se uma rica soma de direitos, o qual foram chamados de direitos reprodutivos, que garantem o livre exercício do Planejamento Familiar entre os casais, o acesso à saúde e a informação, entre outros. Tais direitos estão normatizados em nossa Constituição Federal e na Lei 9263/96, que foi promulgada após estudo sobre o uso indiscriminado de Esterilização em mulheres. Por fim, era necessário aprofundar-se na preocupação mundial com o crescimento demográfico e justificar o porquê da cultura da esterilização.
SUMÁRIO:RESUMO; INTRODUÇÃO; 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DOS DIREITOS REPRODUTIVOS, 1.1 Conceito e evolução histórica, 1.2 Diferença entre diretos sexuais e direitos reprodutivos, 1.3 Saúde reprodutiva, 1.4 A importância do movimento feminista, 1.5 Direitos reprodutivos como direitos humanos, 1.6 Os direitos reprodutivos na norma brasileira; 2 ESTERILIZAÇÃO VOLUNTÁRIA FEMININA, 2.1 Da cirurgia de laqueadura tubária e sua interpretação jurídica, 2.2 Do caráter definitivo, 2.3 Legitimidade, consentimento informado e autorização expressa do cônjuge na esterilização voluntária, 2.4 Ilegalidade da cirurgia durante a cesárea, 2.5 Capacidade de decidir sobre a esterilização. Sujeitos absolutamente incapazes, 2.6 O uso indiscriminado da esterilização em mulheres; 3 A ESTERILIZAÇÃO VOLUNTÁRIA COMO CONTROLE DE NATALIDADE, 3.1 A preocupação do estado com o controle da natalidade, 3.2 A ética médica no procedimento de esterilização, 3.3 Eficácia da lei – plano de políticas públicas para sua implementação adequada; 4 CONCLUSÃO; 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A procura por métodos para evitar gestação indesejada vem desde a antiguidade. O surgimento, no século XIX, da camisinha e, mais tarde, do DIU foram avanços importantes na busca do controle da natalidade. Nos dias de hoje, se dispõe de uma série de métodos, reversíveis ou não, para o exercício do planejamento familiar. Frente aos diversos métodos reversíveis de planejamento familiar, está a esterilização voluntária feminina, que é considerado um método contraceptivo irreversível.
Alvo de muita divergência, a esterilização voluntária feminina foi, e ainda é, um dos métodos mais utilizados pelas mulheres para o controle de sua fecundidade nos países latino-americanos. No Brasil, apesar de ter sido autorizada na rede pública somente com o advento da Lei 9263/96, o procedimento cirúrgico ainda é um tema controverso.
A ausência do setor público de políticas de saúde na área do Planejamento Familiar explica, em grande medida, o uso indiscriminado da cirurgia de laqueadura tubária em brasileiras. Ensejou a ação de clínicas e serviços privados de controle de natalidade, que agiram livremente durante o período da ditadura militar. Optou-se, portanto, em abordar tal prática, inserindo-a num contexto social e político, com o objetivo de compreender a falta de políticas públicas, ou sua ineficácia, nesta área.
Este trabalho busca analisar a esterilização voluntária sob a ótica do que hoje se denomina direitos reprodutivos. Ou seja, do direito de cada mulher decidir sobre seu corpo e sobre sua reprodução. Para tanto, contextualizou-se tais direitos na sua atual concepção, através de sua evolução histórica. Neste conjunto, comenta-se suas diferenças com relação aos direitos sexuais, bem como sua interligação com o conceito de saúde reprodutiva e da importância do movimento feminista para sua evolução em todo o mundo. Após, sua classificação jurídica internacional, abordou-se como os direitos reprodutivos são tratados aqui no Brasil.
No segundo momento, explora-se a regulação da esterilização na Lei do Planejamento Familiar, analisando sua interpretação jurídica e os critérios para sua utilização. Aponta-se, ainda, o elevado número de mulheres que optaram por tal método contraceptivo em nosso país, traçando uma crítica do uso indiscriminado desta prática em mulheres de baixa renda.
E, no terceiro capítulo, procurou-se justificar os motivos pelos quais a esterilização em mulheres causa tantas críticas. Da análise da preocupação dos governantes com o controle populacional às políticas públicas implementadas no país, pretende-se justificar como a cirurgia de laqueadura tubária se popularizou. Agentes diretos deste processo, não poderia deixar de tratar como tal procedimento é visto, eticamente, na ótica dos médicos.
1 CONTEXTUALIZAÇÃO DOS DIREITOS REPRODUTIVOS
O presente capítulo visa contextualizar os direitos reprodutivos na história. Para tanto, se faz necessário conceituar ditos direitos, conforme sua evolução ao longo dos anos. Atento com a extensa bibliografia que trata direitos reprodutivos juntamente com direitos sexuais, abordam-se suas diferenças. E, além de ser um tema da esfera jurídica, também percorre a esfera pública, de saúde pública, com isso, tratou-se, ainda, da saúde reprodutiva.
Uma vez que os direitos reprodutivos sempre foram pauta do movimento feminista, não poderia deixar de citar sua importância para a discussão e amadurecimento destes direitos. Por fim, a visão da norma internacional e brasileira, no que tange sua classificação, seja como direitos humanos, seja como norma inserida no rol dos direitos fundamentais, entre outras.
1.1 Conceito e evolução histórica
Caminhamos no fio da navalha, o que exige, e merece, nossa reflexão permanente. A vida reprodutiva é recheada de intimidade, de escolhas, de paixões; também é feita de violências, de submissão, de perdas. Anda entre o público e o privado, cultiva a tradição, rende-se à modernidade, quer atenção do Estado, prega a liberdade. Os direitos reprodutivos querem ser respeitados e protegidos, não regulados e controlados. [1]
Conceituar direitos reprodutivos não é uma tarefa fácil. Primeiramente, por ser um tema pouco abordado no universo jurídico, apesar de ser discutido desde o século passado pelo movimento de mulheres. Na norma brasileira, não se encontram, sendo assim suprido, através dos Tratados e Convenções Internacionais [2].
Maria Betânia Ávila [3] entende que o termo direitos reprodutivos surge a partir de uma redefinição do pensamento feminista sobre liberdade reprodutiva. Implica, assim, na ampliação dos direitos das mulheres para além da área de sua saúde, passando pelos direitos sociais.
Originário dos Estados Unidos e Europa, este termo sofreu modificações ao ser incorporado internacionalmente pelo movimento feminista, principalmente após o Tribunal Internacional do Encontro sobre Direitos Reprodutivos (Amsterdã, 1984) e da Conferência das Nações Unidas da Década das Mulheres (Nairobi, 1985). [4]
Para Flávia Piovesan [5], direitos reprodutivos correspondem ao conjunto de direitos básicos relacionados ao livre exercício da sexualidade e reprodução humana, circulando no universo dos direitos civis e políticos, quando se referem a liberdade, autonomia, integridade etc. e aos direitos econômicos, sociais e culturais quando se refere a políticas de Estado. Compreende assim, o acesso a um serviço de saúde que assegure informação, educação e meios, tanto para o controle de natalidade, quanto para procriação sem riscos para a saúde.
Samantha Buglione [6], analisando o conceito da Autora supra, conclui que a partir desta percepção incorpora-se o principio de que, na vida reprodutiva, existem direitos a serem respeitados, mantidos ou ampliados. Sob esse prisma, imputa ao Estado responsabilidades, bem como ações diretas na promoção do acesso a informação, viabilizando ao cidadão suas escolhas no que tange a reprodução.
Em nosso país, a discussão a cerca dos direitos reprodutivos deu-se na década de 80, com o processo de redemocratização do Brasil. Exemplo importante é o Programa de Assistência Integral da Mulher – PAISM, que incorporou idéias feministas sobre a saúde reprodutiva e sexual. [7]
Tais direitos surgem a partir de uma nova visão, mais expandia, do conceito de cidadania. Para conceituar direitos reprodutivos faz-se necessário estudar a evolução do papel da mulher na sociedade, para depois então chegar no que a mulher representa para a sociedade atual.
A articulação por um direito à igualdade entre homens e mulheres surgiu na Revolução Francesa, quando as mulheres buscavam equiparar-se aos homens, reivindicando o direito de voto e a educação. Não existia, ainda, a preocupação com as desigualdades naturais. [8]
Somente nos anos 60 que as mulheres passam a romper com a pretensa naturalidade da opressão feminina através da nova ordem liberal, que tinha como base fundamental discutir a desigualdade como componente das relações sociais baseadas na dominação de sexo que hierarquiza as relações de gênero como relações de poder. [9]
A construção da idéia de gênero [10] deu-se com o movimento de mulheres, principalmente na década de 70, quando estas buscaram espaço para a constituição de uma cidadania feminina.
A utilização da categoria de gênero, segundo Bandeira [11], vem a ser o resultado da construção histórica e cultural que objetiva compreender as designações e os pressupostos relativos ao sexo biológico como elemento definidor e naturalizador de características, qualidades e potencialidades de homens e mulheres, através da história e das diferenças culturais.
Como conseqüência desta nova visão acerca dos direitos das mulheres surgem, no cenário mundial, discussões acerca de ditos direitos e o aperfeiçoamento das legislações. Foi na Conferência Mundial de Direitos Humanos, no Teerã, em 1968, onde surgiu a primeira idéia do que viria a ser, internacionalmente, os direitos reprodutivos:
Capítulo 16:
Os pais têm o Direito Humano fundamental de determinar livremente o número de seus filhos e os intervalos entre seus nascimentos.
Tal norma prevê a total liberdade de decisão do casal com relação a sua reprodução, ou seja, o direito individual de cada um decidir sobre seu próprio corpo, sem referir-se ao controle ou responsabilidades do Estado e tampouco aos direitos sociais.
As Convenções, Tratados e Conferências posteriores ao Teerã, que abordam sobre o tema deste trabalho serão analisadas, no item 1.5 do presente trabalho.
A legislação vigente em nosso país traz a questão dos direitos reprodutivos, em nossa Constituição Federal, no artigo 226, § 7º:
Art. 226.
...
§ 7º. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
A norma constitucional é regulada pela Lei 9263 de 1996, que versa sobre o planejamento familiar, lei esta analisada no item 1.6.
Ainda que hoje, no Brasil, o avanço no campo da reprodução seja notável; na esfera legislativa as ações têm sido tímidas, analisando pelo prisma da competência legal. Pode-se ilustrar dentre as inúmeras competências do Congresso Nacional, pode este, além de legislar, agilizar e regulamentar as normas constitucionais consideradas como não auto-aplicáveis; garantir alocações de recursos para políticas sociais na votação do orçamento da União; convocar membros do Poder Executivo para esclarecer assuntos relevantes; introduzir orientações, inclusive sobre igualdade de gênero, em suas subcomissões, especialmente na Comissão de Seguridade Social e Família, no que tange a projetos de lei relacionados com saúde e direitos reprodutivos; solicitar informações ao Poder Executivo sobre implementação dos compromissos internacionais assumidos junto às Nações Unidas, ou ainda, informes relativos às estratégias e medidas para a implementação de políticas públicas sugeridas no Plano de Ação de Cairo; apoiar campanhas públicas entre outros. [12]
A grande dificuldade na questão dos direitos reprodutivos está na própria história política do Brasil. Se por um lado é um tema que fortifica a democracia, por outro se esbarra na concepção autoritária, patriarcal e protecionista do Estado quando refere à reprodução.
1.2 Diferença entre diretos sexuais e direitos reprodutivos
Os direitos reprodutivos estão intimamente ligados a sexualidade do ser humano. Englobando, não somente as funções do aparelho genital ou do processo reprodutivo, mas também no direito de cada cidadão buscar o seu próprio prazer. [13]
Ao considerarmos que o sexo entre homens e mulheres não é somente uma necessidade biológica, reconhecemos o direito de cada cidadão de ter prazer, manter relações sexuais, sem, necessariamente, o intuito da reprodução. Sendo assim, podemos claramente separar os direitos reprodutivos dos direitos sexuais.
A sexualidade, nessa perspectiva, foi um fator determinante para uma nova redefinição das relações sociais, tendo sua desmistificação no século XX com Freud. O Autor quebrou com a hegemonia do pensamento da idade média que tratava a sexualidade apenas sob a ótica moral e religiosa, tornando-a objeto de produção científica. [14]
Freud, em seus ensaios, concluiu que: 1 - há uma separação entre sexualidade e relação sexual genital; 2 - quebra da inocência das crianças, quando fala do processo de erotização que ocorre desde o nascimento; 3 - a sua independência frente ao objeto do desejo, ou seja, a singularidade e 4 - ao admitir a existência da bissexualidade. [15]
Com Foucault há uma desnaturalização da sexualidade. Quando o Autor traz a relação entre corpo e poder, passa-se a compreender sexualidade como uma dimensão cultural da vida dos sujeitos. [16]
A partir desta percepção, exige-se, além da desnaturalização dos domínios da sexualidade e reprodução, a desconstrução do paradigma que biologiza o feminino no social, demarcando seu lugar na esfera do privado e limitando sua ação na esfera pública. Tal radicalidade, segundo Maria Betânia Ávila e Sonia Corrêa [17], é necessária, pois os conceitos da modernidade possuem contradições no que se refere ao papel das mulheres na sociedade, bem como na política. Exemplifica a Autora, ainda, que embora sejam formalmente consideradas iguais perante a lei, o corpo feminino, que reproduz, continua sendo um corpo apropriado e subordinado às definições de ordem privada e pública.
Ensinam que, para romper com a lógica da apropriação, as mulheres contemporâneas lutaram por sua autonomia, ou seja, por uma existência com significado próprio. Entre os anos 70 e 90 essa premissa se deu, principalmente nos campo da sexualidade e reprodução, uma vez que, na vida cotidiana, era complicado falar em prazer, partilha de responsabilidades entre os casais e o direito de escolha. Desta forma, as mulheres conseguiram expandir e aprimorar a noção de seus direitos sexuais e reprodutivos.
O marco inicial desses inovadores direitos foi a liberdade de decisão das mulheres com relação a sua fecundidade e sua vida sexual. No Brasil e mundo, surgem, então, normas e preceitos legais para a proteção de ditos direitos, sendo os temas mais debatidos o aborto legal e o acesso a contracepção não coercitiva. [18]
O marco para separação da relação sexual com a reprodução foi a pílula anticoncepcional que proporcionou a mulher o gerenciamento de sua reprodução. [19]
Como já mencionado, no item 1.1, o conceito de direitos reprodutivos implica em obrigações positivas ao Estado, no sentido que imputa responsabilidades na promoção do acesso a informação e aos meios necessários para viabilizar as escolhas com relação à reprodução. Em contrapartida, os direitos sexuais decorrem de obrigações negativas, ou seja, o Estado não deve regular a sexualidade e as práticas sexuais, tendo o dever de coibir práticas discriminatórias que restrinjam o direito à livre orientação sexual. [20]
A reforma sanitária no Brasil culminou por definir a saúde com direito do cidadão e dever do Estado em provê-la. Surgindo, assim, em 1983, o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM). Tal programa trata a mulher em sua "integralidade", ampliando os programas de saúde para as mulheres não somente no campo materno-infantil, mas a implementação de serviços de saúde para as mulheres jovens, prevenção de DSTs, serviço de saúde para mulheres no período da menopausa, prevenção do câncer de mama e do colo do útero, ou seja, incorporar, efetivamente, a saúde como bem estar físico, mental psicológico e não mera ausência de doenças. [21]
O termo saúde reprodutiva surge, no Brasil, em meados dos anos 80, após a realização do Congresso Internacional de Saúde e Direitos Reprodutivos (Amsterdã, 1984) [22], quando é defendido o direito à saúde e a autonomia das mulheres e dos casais na definição do número de filhos.
A partir da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (DIPD) [23], restou definida saúde reprodutiva:
Saúde reprodutiva. A saúde reprodutiva é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não de mera ausência de enfermidade ou doença, em todos os aspectos relacionados ao sistema reprodutivo e a suas funções e processos. Conseqüentemente, a saúde reprodutiva implica a capacidade de desfrutar de sua vida sexual satisfatória e sem riscos, de procriar, bem como implica a liberdade para escolher entre fazê-lo ou não, no período e na freqüência desejada. Nessa última condição, encontram-se implícitos os direitos do homem e da mulher de serem informados e de terem acesso a métodos de planejamento familiar seguros, efetivos, aceitáveis e de custos acessíveis, assim como o direito de buscarem/usarem métodos de sua escolha para a regulação da fecundidade que não estejam legalmente proibidos. Está também implícito o direito de receber serviços apropriados de atenção à saúde que permitam gravidez e parto sem riscos e ofereçam aos casais as melhores oportunidades de terem filhos sadios. Define-se com atenção a saúde reprodutiva o conjunto de métodos, técnicas e serviços que contribuam para a saúde e bem-estar reprodutivos mediante s prevenção e solução dos problemas de saúde reprodutiva. Inclui também a saúde sexual, cujo objetivo é a melhoria da vida e das relações pessoais, e não somente o aconselhamento e a atenção referentes à reprodução e as doenças sexualmente transmissíveis. [24]
Portanto, a saúde reprodutiva implica, ainda, na capacidade de desfrutar de uma vida sexual satisfatória, podendo o indivíduo decidir com quem e com que freqüência deseja se reproduzir.
Após a Conferência de Cairo, os homens passam a ser incluídos nas questões de direitos reprodutivos. Passo esse de extrema relevância, visto que, pela nova concepção, saúde reprodutiva não se preocupa apenas com o corpo feminino durante momentos particulares, tais como gravidez, o parto e a lactação. [25]
Chase e Perpétuo afirmam que saúde reprodutiva possui três pilares fundamentais que diferenciam do conceito dos controlistas [26] no que tange ao planejamento familiar. Primeiro, a liberdade de escolha reprodutiva, definida com a capacidade dos indivíduos em escolher o número de filhos que desejam, bem como o momento de tê-los. Segundo, a importância do contexto sócio-econômico e cultural no qual a escolha reprodutiva é feita, especialmente como esse contexto aplica-se à capacidade de todos os homens e mulheres – independente de raça, classe social, etnia ou preferência sexual – de exercer com segurança sua liberdade reprodutiva através do acesso a informação essencial à saúde reprodutiva. E, por fim, o direito de homens e mulheres de todas as idades exercerem e gozarem sua sexualidade com segurança. [27]
Para a Organização Mundial de Saúde e outras, saúde reprodutiva consiste:
a) que as pessoas tenham a habilidade de reproduzir-se assim com de regular sua fertilidade com o maior conhecimento possível das conseqüências pessoais e sócias de suas decisões, e com acesso aos meios para implementá-las;
b) que as mulheres possam ter acesso à maternidade segura;
c) que a gravidez seja bem-sucedida quanto ao bem-estar e á sobrevivência materna e da criança. Além disso, que os casais sejam capazes de manter relações sexuais sem medo de gravidez indesejada e de contrair doenças. [28]
Enfim, é de responsabilidade do Estado prover a saúde reprodutiva à população. E, sua omissão traz grandes problemas sociais, como o uso incorreto ou indiscriminado de métodos anticonceptivos, como a esterilização feminina, tema central deste estudo.
1.4 A importância do movimento feminista
A leis normatizam o cotidiano da sociedade, portanto, devem estar em consonância com os ideais éticos dos grupos sociais. As mulheres nos dias atuais possuem um universo de direitos conquistados através de suas lutas políticas e sociais. Construir uma idéia de sujeitas de direitos iguais aos homens, não foi de uma hora para outra.
A função social da mulher hoje não consiste apenas em procriar e cuidar, administrar a casa e zelar por seu marido e filhos, e sim de ter seu espaço na construção da sociedade moderna.
Para chegar a este status necessitaram buscar através de uma organização política e social seus direitos. Surge então, o movimento feminista, com várias ramificações de ideais, porém todas com o mesmo objetivo, tornarem-se independentes.
Na cidade de Porto Alegre, como em várias outras, há o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, criado pela Lei 347/95. Lá, encontra-se um universo de mulheres organizadas na busca de seus direitos individuais e coletivos. Conselho este composto de 40 entidades (governamentais e não governamentais), acrescenta a sociedade de Porto Alegre um local para discussão e proposição de políticas públicas para as mulheres. Promove seminários que tem como objetivo o empoderamento de informações, capacitações e reivindicações junto a Prefeitura da capital gaúcha.
Porém, não só nos Conselhos que as mulheres juntam-se para reivindicar e discutir seus direitos, mas em todas as esferas da sociedade.
A preocupação das feministas com os temas de reprodução remonta ao século XIX. A palavra de ordem na década de 70 era "nosso corpo nosso pertence" [29], que traduz o novo conceito de saúde para as mulheres. Tais reivindicações propiciaram o surgimento de grupos informais, instituições e mais diversas iniciativas voltadas para esta questão, como por exemplo, a legalização do aborto e o uso indiscriminado da esterilização em mulheres.
No início da década de 80, o movimento de mulheres, juntamente com outros atores políticos, interveio no debate nacional sobre planejamento familiar, guiado pela certeza de que a democracia seria a solução para que a sociedade brasileira modernizasse, gerando maior igualdade social e política. Naquele momento, rompe-se com a polarização entre o natalismo tradicional e o neomalthusianismo crescente que caracterizou o debate nacional entre 1970 e 1980. As feministas sinalizavam a revisão das concepções acerca do público e do privado na cultura política brasileira pregando a autonomia entre sociedade civil, sociedade política e Estado. [30]
Impulsionado pela pressão feminista, o Estado cria o Programa Nacional de Assistência Integral a Saúde Da Mulher (PAISM), que introduziu a política de gênero no Brasil. O movimento organizado sustentou, assim, o princípio de que as decisões da esfera reprodutiva devem orientar-se pelo livre-arbítrio dos indivíduos, em especial das mulheres, uma vez que a reprodução biológica viabiliza-se pelo corpo feminino. Portanto, a assistência à anticoncepção deveria compor uma política integral de saúde reprodutiva. Criticavam, ainda, os programas de planejamento familiar implementados no país pelas chamadas "entidades privadas", exigindo do Estado a superação de sua omissão no terreno de políticas públicas relativas à regulação da fecundidade. Resultado dessas reivindicações foi à formulação do PAISM, que buscava reverter muitas distorções identificadas no campo da saúde reprodutiva, particularmente no que se refere à oferta de anticoncepção. [31]
Como qualquer outro movimento social, as feministas construíram espaços de articulação crítica. Visando romper com a opressão de sua sexualidade e reprodução, instigaram a discussão à cerca das políticas controlistas e ao gerenciamento da sexualidade, que as afetam diretamente. [32]
1.5 Direitos reprodutivos como direitos humanos
A proteção internacional dos direitos humanos das mulheres teve início em 1919 [33], com as primeiras normas internacionais de proteção à maternidade, proibição do trabalho insalubre e perigoso. Normas estas, de caráter protetivo somente, influenciaram todas as legislações do mundo, inclusive a CLT [34] brasileira.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, ratificada pelo Brasil no mesmo ano, trouxe a igualdade e a autonomia, independente de sexo, e o princípio da não discriminação, que avança na idéia de proteção para a participação igualitária Mas é, em 1968, na I Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada no Teerã, que define como direito humano a liberdade de decidir sobre a vida reprodutiva. [35]
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assinada na Conferência Interamericana sobre Direitos Humanos na Costa Rica em 1969, regulariza o direito a vida e à integridade pessoal com direito fundamental de todos [36]:
Artigo 4º Direito à vida
Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da sua vida arbitrariamente.
Artigo 5º Direito à integridade física
Toda a pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.
Tais normas têm seu papel essencial ao servirem de base interpretativa para outras normas internacionais, devendo-se pensar em direitos reprodutivos conjuntamente com o direito fundamental a vida e da integralidade pessoal. Para Samantha Buglione, além disso, os direitos reprodutivos centram-se no pressuposto da não discriminação, sendo assim, quando o art. 4º refere-se "proteção à vida desde a concepção", a leitura da expressão deve ser feita de acordo com o conjunto de fatores que envolvem as condições econômicas, sociais, civis, políticas e históricas, sob pena de que elementos morais, presentes no sistema jurídico provoquem discriminações. [37]
A Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, aprovada pela Assembléia-Geral da ONU no ano de 1979 e aprovada pelo Brasil no mesmo ano, inova em seu texto, ao dizer que os Estados têm o dever de adotar medidas para se opor à discriminação e eliminá-la. Tal entendimento é englobado pelos demais instrumentos internacionais posteriores: [38]
Artigo 1º
Para fins da presente Convenção, a expressão discriminação contra a mulher significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos políticos, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.
Somente em 1993, com a Conferência de Direitos Humanos em Viena [39], ratificada pelo Brasil no mesmo ano, que é dito explicitamente que os direitos das mulheres são direitos humanos. [40]
A Declaração e o Programa de Ação, resultantes desta Conferência, reafirmaram os princípios enunciados na Carta das Nações Unidas, de 1945, e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Esses documentos manifestam a preocupação com as diversas formas de violência e discriminação contra a mulher. Declaram, ainda, que os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integrante e indivisível dos direitos humanos universais. [41]
A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), realizada na cidade do Cairo em 1994, centrou em um enfoque mais abrangente de políticas sociais visando os direitos humanos e a igualdade de gênero, que extrapolam os aspectos específicos do controle da natalidade, planejamento familiar e saúde materno-infantil, preocupando-se com os temas como saúde, direitos sexuais e reprodutivos. [42]
Nesta Conferência visou-se promover a eqüidade e a igualdade dos sexos e os direitos da mulher, eliminando todo o tipo de violência contra a mulher, garantindo que ela controle sua própria fecundidade, além de afirmar que as mulheres têm o direito individual e a responsabilidade social de decidir sobre o exercício de sua maternidade, assim como o direito à informação e acesso aos serviços para exercer tais direitos e responsabilidades. Enquanto que o homem tem a responsabilidade pessoal e social, a partir de seu comportamento sexual e fertilidade, pelos efeitos dessas decisões na saúde e bem estar de suas companheiras e filhas. [43]
A IV Conferência Mundial da Mulher, realizada pelas Nações Unidas em Beijin, em 1995, aprovou uma Declaração e uma Plataforma de Ação, com o objetivo de promover a igualdade, desenvolvimento e paz para todas as mulheres. Sendo que, o Brasil assinou, sem reservas, ambas. [44] No item 7.3, tratou dos direitos reprodutivos, nos seguintes termos:
os direitos reprodutivos abrangem certos direitos humanos, já reconhecidos em leis nacionais, nos documentos internacionais sobre direitos humanos e em outros documentos pertinentes das Nações Unidas aprovados por consenso. Esses direitos baseiam-se no reconhecimento do direito básico de todos os casais e indivíduos a decidir livre e responsavelmente o número de filhos e o intervalo entre eles, a dispor da informação e dos meios para tal e o direito de alcançar o nível mais avançado de saúde sexual e reprodutiva. Inclui também o direito a tomar decisões referentes à reprodução sem sofrer discriminação, coação nem violência, conforme estabelecido nos documentos de direitos humanos. No exercício desse direito, os casais e indivíduos devem levar em consideração as necessidades de seus filhos já nascidos e futuros e suas obrigações com a comunidade. A promoção do exercício responsável desses direitos de todos deve ser a base primordial das políticas e programas estatais e comunitárias no âmbito da saúde reprodutiva incluindo o planejamento familiar.
Para Denise Dora Dourado os direitos reprodutivos podem ser para os direitos humanos um novo paradigma, que rompa com a hierarquia das gerações de direitos humanos, retomando com a idéia da integralidade. Desafiam, ainda, o princípio da universalidade dos direitos humanos, uma vez que, não existe a possibilidade de criarmos um padrão a cerca de com os seres humanos devem reproduzir-se, quantos filhos devem ter e nem mesmo de que forma devem comportar-se na sua vida reprodutiva. [45]
No sistema nacional, os tratados ao serem ratificados comprometem legalmente o governo, uma vez que passam a fazer parte do ordenamento jurídico existente, podendo ser utilizados em resoluções proferidas em sentenças ou como orientação para políticas públicas do Estado. Exercem duplo grau de ação no Estado, tornando, assim, de extrema importância na construção e efetivação dos direitos humanos. [46]
Porém, o status dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos no Brasil não é pacífico. A doutrina orienta no sentido de dá-los status constitucional, através da interpretação do art. 5º, § 2 em harmonia com o § 1º desse mesmo art., c/c art. 1º, III e art. 4º, II; todos da Carta Magna. Porém o Supremo Tribunal Federal jamais decidiu neste sentido, dando aos tratados Internacionais de Direitos Humanos status de lei federal. [47]
Na opinião de Flávia Piovesan [48], pode-se dizer que nosso país não só assinou todos os documentos relativos ao reconhecimento e às proteções aos direitos humanos das mulheres, como apresenta um quadro legislativo bastante avançado no que se refere a igualdade de direitos entre homens e mulheres. No entanto, muito ainda tem que ser feito no campo do legislativo.
Uma das dificuldades apontadas pela Autora é compatibilizar ações na área dos direitos humanos com modelos de desenvolvimento econômico e político excludentes e, portanto, incompatíveis com esses mesmos direitos. Porém, os Tratados e Convenções Internacionais e as Declarações oriundas das Nações Unidas gera uma espécie de "cultura" jurídica que fortalece os movimentos sociais nacionais organizados em torno da luta pela equidade na lei e na vida.
1.6 Os direitos reprodutivos na norma brasileira
Após definir os direitos reprodutivos na esfera internacional, resta apresentar como tais direitos são incorporados e conceituá-los na legislação do nosso país. Salienta Flávia Piovesan que o texto constitucional deve ser interpretado de forma coesa, devendo ser entendido no conjunto das normas e, principalmente, dos princípios informadores do próprio texto constitucional. Tal entendimento deve-se ao fato de que os princípios devem ser fonte inspiradora e de referência para a leitura dos dispositivos da Constituição Federal, vez que estão no topo da relação hierárquica das normas. [49]
Nesta linha, a Constituição Federal deve ser analisada sob a ótica dos princípios constitucionais da cidadania (art. 1º, II da CF), da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF), da promoção do bem estar de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor e idade e qualquer outra forma de discriminação (art. 3º, IV c/c art. 5º, I [50] da CF), todos estes essenciais na discussão sobre direitos reprodutivos.
Os direitos sociais representam o instrumento de efetivação do direito individual, sendo assim de vital importância na garantia dos direitos reprodutivos. O art. 6º da Constituição traz com direitos sociais a saúde, a educação, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e a infância e a assistência aos desamparados. O art. 7º do mesmo diploma legal define com direitos dos trabalhadores rurais e urbanos, além de outros que visem à melhoria da condição social dos mesmos, a licença a gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; a licença-paternidade [51] e proíbe a diferença salarial de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil. E ainda art. 10, II, "b" do ato das Disposições Transitórias veda a dispensa arbitrária ou sem justa causa da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto.
No que tange à saúde reprodutiva e o planejamento familiar é no Título VIII, "Da ordem Social", que a Constituição Federal consagrou a saúde com direito de todos e dever do Estado garanti-la, mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, bem como acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (artigo 196 da CF).
Traçando um paralelo com os direitos reprodutivos internacionais, principalmente no conceito de saúde definidos pela Organização Mundial de Saúde e pela Conferência do Cairo, que afirma que a saúde não se restringe a ausência de doenças, antes abarca um bem-estar físico, mental e social; podemos alargar os preceitos do artigo 196 da nossa Constituição Federal. Ou seja, ao incorporar o conceito de ser um bem-estar físico, mental e social, a proteção a saúde não se restringe ao universo prescritivo, mas pressupõem a prevenção, o acesso à informação e o respeito à diversidade, respeitando os princípios da dignidade da pessoa humana, a igualdade e a não discriminação. [52]
Importante destacar ainda a Constituição Federal, no art. 201, II, determina que os planos de previdência social, mediante contribuição atenderão a proteção à maternidade, especialmente à gestante. E, por fim, o art. 203, I diz que a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independente de contribuição a seguridade social, tendo como um dos objetivos a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice.
Para atender aos princípios dos direitos reprodutivos, os modelos de família e casamento citados pela Constituição Federal [53] devem ser entendidos como exemplificativos. [54] Sendo assim, deve ter proteção especial todo o tipo de relacionamento afetivo entre os indivíduos com fim de terem uma vivência compartilhada.
Conforme já mencionado, contempla a Constituição Federal, em seu artigo 226, §7º, o direito ao planejamento familiar, fundado nos princípios da dignidade humana e da paternidade responsável. Tal dispositivo constitucional contempla a liberdade de decisão do casal no que tange sua reprodução, bem como obriga o Estado a proporcionar recursos tanto de informação (educacionais) como científicos para o exercício desse planejamento. Veda, ainda, qualquer forma coercitiva de planejamento familiar. Porém, somente no ano de 1996 que o Estado regulou tal dispositivo legal, através da Lei 9.263 de 12 de janeiro de 1996.
A Lei do Planejamento familiar definiu, em seu artigo 2º, o que vem a ser a expressão planejamento familiar:
Art. 2º. Para fins desta lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem, ou pelo casal.
De forma clara, o legislador delimitou tal direito, seguindo o entendimento mundial, conforme já analisado através dos estudos dos Tratado e Convenções Internacionais.
Porém, é no artigo 10 da referida Lei que o legislador disciplinou a esterilização voluntária, método contraceptivo irreversível e de larga utilização entre as mulheres brasileiras. E, por ser este método o mais radical e controverso que a seguir será tecido maiores comentários acerca do mesmo.