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Esterilização feminina na ótica dos direitos reprodutivos, da ética e do controle de natalidade

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04/09/2005 às 00:00
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2 ESTERILIZAÇÃO VOLUNTÁRIA FEMININA

            Esterilização voluntária feminina [55] insere-se no rol dos diversos métodos de controle de fecundidade normatizados para o exercício do planejamento familiar. Em dezenove de agosto de 1997, após ter sido retirado os vetos aos artigos 10, 11, 15 e parágrafo único do artigo 14 da Lei nº. 9.263 de 1996, a esterilização voluntária feminina e masculina foi regulamentada, dentro de um escopo maior sobre a legislação do planejamento familiar.

            Por ser um ato cirúrgico e de difícil reversão, foi regulado pela legislação brasileira, de tal forma que restringiu sua utilização somente para casos previstos em lei. Será analisado neste capítulo, sua interpretação jurídica em face da Lei do Planejamento familiar que foi promulgada buscando legalizar tal ato cirúrgico há muito tempo elegido por muitas mulheres como forma de evitar nova gravidez.

            2.1 Da cirurgia de laqueadura tubária e sua interpretação jurídica

            Esterilização feminina compreende em um ato cirúrgico, conhecido como laqueadura tubária, feita com anestesia geral, que interrompe a passagem das trompas para o útero evitando o encontro do espermatozóide com o óvulo. Uma vez interrompido esse canal, evita-se a fecundação do óvulo e a gravidez. É eficaz em 99% dos casos. [56]

            A Tecnologia da esterilização surge no início do século XIX, porém foi popularizada na década de 60. Analisando a regulação da esterilização, Samantha Buglione [57] afirma, possuirmos duas opções:

            Uma é de pensar a esterilização como uma tecnologia médica que diz respeito apenas ao desejo individual, como uma cirurgia plástica, por exemplo; e a outra é pensar a esterilização dentro do universo das práticas reprodutivas, o que implica ter em mente as relações familiares.

            Porém, alerta a Autora, que as várias facções que pensam em reprodução, família e métodos contraceptivos giram em torno de três concepções:

            A primeira refere-se ao reconhecimento da reprodução como sendo algo de competência estrita da autonomia e da vontade individual, e, por conseqüência dos direitos individuais; a segunda defende ser a reprodução uma questão de interesse público, ou seja, devendo (e podendo) ser determinada não pelos indivíduos, mas pelo Estado; e, por fim, a terceira, que reconhecendo a complexidade do tema, parte do pressuposto de que a autonomia é um critério fundante das questões reprodutivas, porém, estas questões não se esgotam nela, devendo-se, ainda, pensar a autonomia de forma contextualizada, sendo necessário problematizar a concepção moderna de autonomia igualmente com as conseqüências das práticas reprodutivas.

            Tais concepções, não de maneira cronológica, podem ser observadas ao longo da história, já previamente analisada, e refletem como a esterilização foi regulada em nosso país e no resto do mundo.

            Antes de 1996, a esterilização era enquadrada como crime no Brasil, como lesão corporal com perda da função (artigo 129, §, III do Código Penal) ou como exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo (art. 132 do Código Penal). A esterilização voluntária era, portanto, interpretada como ofensa criminal, uma vez que resultava, como o entendimento majoritário, em perda ou incapacidade da função reprodutiva e sua prática carrega consigo uma penalidade de um a oito anos de reclusão. [58]

            O método contraceptivo de esterilização foi regulado na rede pública através da Portaria nº. 144 de 20 de novembro de 1997. E, em 11 de fevereiro de 1999, a Portaria 048 de revogou a Portaria nº. 144, para trazer inovações a respeito do procedimento de esterilização voluntária. A maior modificação apresentada nesta Portaria foi a proibição da realização da laqueadura tubária durante o período do parto ou aborto e até 42 dias depois destes, exceto em casos de cesarianas sucessivas anteriores [59] e casos onde a exposição a outro ato cirúrgico representasse risco de vida para a mulher. Assim, são criados mais quatro novos códigos de procedimentos cirúrgicos pagos pelo SUS para realização de "Cesariana com Laqueadura Tubária em Pacientes com Cesarianas Sucessivas Anteriores", sem muitos esclarecimentos sobre as diferenças entre eles, aparentemente para grupos de risco distintos: 1) risco de vida; 2) risco de vida com atendimento recém-nascido na sala de parto; 3) risco de vida em hospitais amigos da criança e 4) em gestante de alto risco. [60]

            O método cirúrgico foi autorizado no sistema público nacional somente com o advento da Lei do Planejamento Familiar. Porém, dita prática tem sido largamente utilizada há muito tempo pelo setor privado de saúde. Elza Berquó e Suzana Cavenagui [61] afirmam que é notório e de amplo conhecimento que várias cirurgias eram de fato regularmente realizadas durante partos por cesarianas e, fora do parto, registradas como outros procedimentos médicos nos serviços de saúde do Estado. Cita, ainda, diversos autores que coadunam com a mesma idéia.

            Concluem que, por tais procedimentos, a esterilização tornou o método mais utilizado dentre todos disponíveis para anticoncepção. Refere-se aos dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde de 1996, na qual a esterilização feminina consistia de 52,0% de todos os métodos contraceptivos utilizados, seguida em segundo lugar e com considerável distância, pela pílula, usada por 27,0% da população feminina. A esterilização masculina, por outro lado, é menos comumente praticada (2,4%) do que métodos tradicionais como a abstinência periódica (4,0%) e o coito interrompido (4,0%), dados retirados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS) de 1997.

            Apesar das várias opiniões acerca do tema, hoje, a esterilização voluntária feminina é um direito normatizados entre uma das opções de controle de fecundidade para todas as mulheres e dever do Estado em oferecê-la, gratuitamente, nos serviços de saúde pública, bem como da devida orientação sobre os demais métodos, visando o melhor planejamento familiar.

            2.2 Do caráter definitivo

            O procedimento cirúrgico de esterilização feminina é concebido como método irreversível, já que a porcentagem de chances de uma nova cirurgia traga, novamente à mulher, sua capacidade de reprodução, é muito pequena. Explica Hitomi Miura [62], secretária-geral da Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia de Brasília, que o procedimento de reversão da laqueadura [63] nem sempre é eficaz, pois o funcionamento das trompas pode ficar prejudicado.

            Especialista em fertilidade, Hitomi atende muitas mulheres com desejo de reverter a ligadura das trompas. Segundo ela, a vontade é comum entre as pacientes separadas que voltam a se casar e querem ter filhos com o novo companheiro. Em princípio, a reversão é mais indicada que a fertilização in vitro, cujas chances de sucesso variam de 25 a 40% por aplicação. Na opinião da médica, o ideal seria que as mulheres não tivessem feito a laqueadura.

            Para Antônio Carlos Rodrigues [64], professor de ginecologia da Universidade de Brasília (UnB), a esterilização só deveria ser feita por mulheres com propensão à gravidez de alto risco; aquelas com possibilidade de ter uma gestação normal deveriam optar sempre por contraceptivos reversíveis.

            Estudo conduzido pelo professor, em sua Tese de Doutorado pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética da Universidade de Brasília, indica que aproximadamente 40% das brasileiras já se submeteram à laqueadura e que o índice de arrependimento por terem realizado o procedimento (jovens com menos de 25 anos) é muito alto: entre 65 e 70% [65]. O trabalho mostra que a falta de informação sobre opções de métodos anticoncepcionais (como DIU, pílula ou utilização de preservativos), entre as mulheres, é grande e que não existe orientação e oferecimento do serviço de planejamento familiar.

            Para tanto, a esterilização voluntária deve ser uma decisão muito bem pensada. Os Autores que alertam para tal procedimento, baseiam-se no argumento que o percentual de arrependimento é grande e as chances dessa mulher arrependida voltar a ter capacidade de gerar é mínima.

            2.3 Legitimidade, consentimento informado e autorização expressa do cônjuge na esterilização voluntária

            Somente é permitida a esterilização voluntária em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de 25 (vinte e cinco) anos de idade ou pelo menos, com dois filhos vivos (artigo 10, I da Lei 9263/1996).

            Pesquisa realizada pela Comissão de Cidadania e Reprodução [66], em 1999, apontou que, na opinião dos médicos, a idade mínima prevista na Lei não é adequada. O principal argumento invocado para contra-indicar a cirurgia em jovens adultos é o risco de arrependimento por se tratar de método irreversível. [67]

            Rosane Mattar, Secretária Geral da Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (SOGESP) acredita que outros fatores relevantes deveriam ser considerados, além da idade: tempo de união do casal, número de filhos, antecedentes obstétricos, malformações, histórico de risco cirúrgico, antecedentes clínicos (hipertensão, diabetes etc.) e outros, ou seja, através de uma avaliação integral que considere todos esses fatores, estabelecendo posteriormente uma pontuação de critérios, como já assim procedem os serviços de planejamentos familiar. [68]

            No mesmo inciso que dispõem quem pode esterilizar-se (regra geral: art. 10, I, primeira parte da Lei 9263/1996), é estabelecido o prazo mínimo de 60 (sessenta) dias entre a manifestação de vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce (art. 10, I, segunda parte da Lei 9263/1996).

            A Lei permite, ainda, a laqueadura tubária a qualquer mulher com risco de vida ou de sua saúde ou do futuro concepto. Sendo condição expressa relatório escrito de testemunho, assinado por dois médicos (art. 10, II da Lei do Planejamento Familiar).

            Deve esta mulher ser informada do risco da cirurgia, efeitos colaterais, dificuldades de sua reversão e opções de contracepção reversíveis existentes, além de documento escrito e firmado, registrando a expressa manifestação de vontade de quem deseja submeter-se à esterilização (art. 10, II, §1º da Lei do Planejamento Familiar). Não sendo considerada a manifestação de vontade se expressa durante a ocorrência de alterações na capacidade de discernimento por influência do álcool, drogas, estado emocional alterado ou incapacidade mental temporária ou permanente (art. 10, §3º da Lei do Planejamento Familiar).

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            Referida Lei, apesar de proibir expressamente a esterilização durante os períodos de parto ou aborto, a aceita nos casos de comprovada necessidade como, por exemplo, por cesarianas sucessivas anteriores (art. 10, II, §2º da Lei do Planejamento Familiar).

            O artigo 10, § 5º, determina o consentimento expresso de ambos os cônjuges para que seja realizada a esterilização voluntária em pessoas casadas. Tal obrigatoriedade é baseada nos princípios do matrimônio, que responsabiliza ambos os cônjuges na decisão acerca do planejamento familiar (art. 226, §7º da CF e art. 1565, §2º do CC), uma vez que assumem mutuamente, pelo casamento, a condição de consortes, companheiros, responsáveis pelos encargos da família (art. 1565, caput do CC) e devem exercer conjuntamente a direção da sociedade conjugal (art. 1567 do CC).

            2.4 Ilegalidade da cirurgia durante a cesárea

            É vedada a esterilização cirúrgica em mulheres durante o período de parto ou aborto, exceto em caso de risco de vida para a mulher, conforme artigo 10, § 2º da Lei 9263/1996 e Portaria SAS/MS nº 048 (11/02/1999), que regulamenta a esterilização nos serviços públicos de saúde.

            Na época da aprovação das normas para a esterilização, as taxas de parto cesáreo constituíam um sério problema de saúde pública, justificando a medida. De acordo com a PNDS de 1996, mais de 50% de todas as esterilizações ocorreram durante um nascimento por cesariana. Nas regiões mais desenvolvidas do país estas estimativas chegam a 70%, indicando um abuso deste procedimento como meio de esterilização. [69]

            Pondera a respeito do tema Ana Maria Costa, integrante do Núcleo de Saúde e Sexualidade e coordenadora do Núcleo de Estudos em Saúde Pública da Universidade de Brasília, que, no Brasil contemporâneo a taxa de mortalidade materna, ou seja, óbitos de mulheres em decorrência da gravidez, do parto ou do puerpério, transita em torno de 150/100.000 nascidos vivos. Esta taxa é 25 vezes maior que a do Canadá, exemplifica. Conclui, assim, que o uso abusivo da cesariana, além de interferir nesta mortandade feminina, está diretamente relacionado ao desregramento das altas incidências de esterilizações entre as mulheres. [70]

            Atualmente essas taxas ainda se mantêm altas, mas tudo indica que estarão decrescendo, em virtude de campanhas pelo parto normal e à nova política de remuneração do Ministério da Saúde com relação aos partos cesáreos. Com isso, os serviços de saúde tendem a ser mais cautelosos ao optarem pela cesariana. [71]

            A Pesquisa realizada pela Comissão de Cidadania e Reprodução, em 1999, apontou para um aumento da demanda por cirurgia de esterilização após a publicação da lei do Planejamento Familiar o que, segundo alguns entrevistados, estaria prejudicando o acesso das mulheres com indicação clínica (risco à saúde) à cirurgia. A proibição da realização da cirurgia no puerpério para as mulheres que optaram pela esterilização na vigência da gravidez, com o intuito de dissociá-la do parto cesáreo, obriga a uma nova internação após os 42 dias do parto, requerendo nova disponibilidade de vaga e acarreta alta nos custos. Para Olinda e Maria Teresa [72], a minimização desse problema poderia ser obtida com pequena alteração nas normas, como permitir a realização da laqueadura tubária no pós-parto imediato, pois esta é mais fácil do ponto de vista técnico, desde que os demais critérios sejam mantidos (manifestação da vontade 60 dias antes da cirurgia, idade e número de filhos, aconselhamento etc.).

            Dito isto, resta analisar as exceções da Lei, no que se refere à legitimidade para requerer a esterilização, que são os absolutamente incapazes.

            2.5 Capacidade de decidir sobre a esterilização. Sujeitos absolutamente incapazes

            Não é permitido no Brasil o uso da esterilização voluntária em sujeitos absolutamente incapazes sem autorização judicial. Assim, o artigo 10, §4º da Lei 9263/2003 dá a autoridade judiciária o poder para decidir sobre a fertilidade dos sujeitos absolutamente incapazes [73].

            A Lei omite-se com relação aos sujeitos relativamente incapazes, deixando-os a mercê das regras e critérios gerais da esterilização. Infelizmente não se vislumbrou, em toda bibliografia consultada, algum caso de esterilização de sujeitos relativamente incapazes.

            Sobre esterilização em menor incapaz, a 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná autorizou, por unanimidade, a cirurgia de laqueadura em uma menor de idade deficiente mental [74]. No caso em tela, a mãe da adolescente incapaz ingressou em juízo requerendo autorização para a cirurgia de esterilização logo após abuso sexual e posterior gravidez da menor (na época do pedido a menor tinha 16 anos). Alega a genitora não possuir condições de manter a filha sob vigilância total.

            O pedido de laqueadura foi negado em primeira instância. O Ministério Público de 1º grau ofereceu parecer desfavorável ao pedido, concluindo que no requerimento não havia clareza da necessidade de cirurgia para esterilização. Ponderou a vedação legal para a prática da aludida intervenção em período gestacional avançado, com no caso da Requerente. Entendo, por fim, não poder ser acolhido o pedido, ainda porque a curatelada é "pessoa muito jovem e primípara". O juiz monocrático considerou que a requerente não poderia ter um provimento jurisdicional favorável, invocando apenas a Lei nº. 9.263/96 e apresentando um simples atestado médico, sem maiores esclarecimentos. Atesta em sua decisão que a Autora não provou a necessidade e possibilidade do pedido, vez que nem ao menos juntou aos autos laudo médico especializado e detalhado acerca do cabimento ou não da laqueadura. Fundamenta ainda sua decisão, no artigo 10, § 6º da Lei nº. 9.263/96, o qual dispõe sobre a esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes e depende ainda de regulamentação.

            A decisão foi revertida no TJ paranaense. A Procuradoria Geral de Justiça entendeu que as alegações da apelante careciam de solidez, não demonstrando em nenhum momento risco à vida ou a saúde de interdita, bem como ao futuro concepto, Considerando que não havia amparo legal, moral ou científico para a pretensão, Ministério Público opinou pelo improvimento do recurso. Para o relator do Recurso de Apelação, o Poder Judiciário não pode omitir-se em autorizar a cirurgia porque a finalidade do Estado é "promover a felicidade do cidadão". Na análise do mérito, o Relator cita a Apelação nº. 596.210.153 do Tribunal de Justiça do RS, na qual um dos julgadores, que teve seu voto vencido, assim entendeu :

            De primeiro, gostaria de referir que não vejo na pretensão veiculada - pedido de realização de cirurgia esterilizadora de um incapaz - indevida interferência do Estado na vida das pessoas. Alias, essa é a finalidade da estruturação social: resolver os problemas que se abatem sobre o cidadão, soluções estas que devem ser dadas pelo Poder Judiciário.

            De outra parte, não enxergo no pedido violação a qualquer dos direitos individuais, tão fartamente elencados na Carta Constitucional. A intervenção cirúrgica - singela, diga-se de passagem - é amplamente usada como método contraceptivo. Alias, o art. 226.§ 7°, da Constituição Federal assegura liberdade de decisão com relação ao planejamento familiar. Se violação a direito constitucional há é na possibilidade de uma pessoa, incapaz de assumir maternidade, gerar um filho, pois o art. 227 garante à criança o direito à vida, à saúde, e à convivência familiar. A incapacidade da interdita de criar um filho é evidenciada pelo fato de a anterior gravidez e o conseqüente nascimento de uma criança, ter levado à destituição do mátrio poder e entrega da criança à adoção. Mais não precisa se ter como evidenciada a necessidade de se impedir nova gravidez, atendendo aos interesses da curatelada o pedido de seu curador para que ela seja submetida à referida intervenção.

            No mesmo julgado do Tribunal do Paraná, um dos julgadores ressaltou, ainda, a necessidade de uma punição aos "elementos que praticam este tipo de abuso". Segundo o Desembargador, existe uma legislação deficitária neste setor. Para ele, a lei poderia prever a esterilização dos culpados pela prática do crime. [75]

            A Apelação Cível nº. 596.210.153, citada no acórdão já comentado, indeferiu o pedido de esterilização da requerente. Argumenta o Relator que o pedido pleiteado pelo curador de mulher portadora de doença mental, incapacitada para os atos da vida civil e sem vontade para consentir, poderá abrir um precedente "perigoso e terrível" caso seja deferido; pois, com o avanço da ciência, poderá mais tarde curar a psicose da qual é portadora a interdita e, se submetida à laqueadura tubária, perderá a possibilidade de procriar, já que não há garantia da reversibilidade da cirurgia esterilizatória. Diz ainda, o Relator, que existe outros métodos para controlar a concepção, visto que, o curador quer liberar a incapaz para o sexo. [76]

            Os casos expostos acima são alguns dos poucos julgados com relação à esterilização de incapazes. Samantha Buglione [77], em sua dissertação de mestrado, analisa algumas decisões que tratam deste tema e conclui que as decisões são contraditórias em suas argumentações. Para a Autora, o julgador, ao decidir, pode valer-se de pressupostos utilitaristas - que se preocupam com o bem comum - ou de pressupostos liberais - que defendem a qualquer custo a liberdade individual.

            A Autora cita o exemplo das políticas de sobre a fecundidade da China e Índia. Enquanto que no Estado de Kerla, na Índia, o governo investiu em saúde e educação, usando a cidadania com meio para promover responsabilidade; a China usou "a política do filho único", ou seja, o Estado exercendo o poder de controle sobre o indivíduo como meio de construção de uma sociedade mais equilibrada, com condições para o exercício geral da liberdade e práticas mais responsáveis. O resultado: Em 1979, no início das políticas, Kerla tinha o índice de fecundidade de 3, enquanto que a China 2,8. Em 1991, o índice ficou abaixo de 1,8 em Kerla, e a China na média de 2. [78]

            A realidade brasileira, revelada através de Pesquisas, as quais serão analisadas a seguir, demonstram um emprego muito maior de pressupostos utilitaristas na questão da esterilização voluntária feminina. Exemplo disto é a averiguação do uso indiscriminado de cirurgias de laqueadura tubária, principalmente nas mulheres de baixa renda.

            2.6 O uso indiscriminado da esterilização em mulheres

            O alto índice de mulheres esterilizadas no Brasil levantou uma série de indagações no final da década de 80 em nosso país. O primeiro documento oficial brasileiro sobre a prática da esterilização no país data de 1993, quando se apresentou ao Congresso Nacional o relatório nº 2 da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, criado através do requerimento 796/91, popularmente conhecido como "CPI da Esterilização". [79]

            A CPMI documentou os riscos para a saúde das mulheres face aos abusos da prática esterilizatória feminina, conduzida de forma indiscriminada e clandestina. Tal situação se traduziu em um projeto de lei aprovado no Congresso Nacional em 1996 (Lei nº. 9.263 - 12/01/96), que além de regulamentar o exercício do direito reprodutivo - dentro de uma visão de atendimento integral à saúde, proibindo a utilização de ações políticas para qualquer tipo de controle demográfico, regulamentou a esterilização no País. [80]

            O artigo que trata da regulamentação da esterilização foi vetado pelo Executivo no dia 15/01/96. O Presidente da República Fernando Henrique Cardoso baseou sua decisão em um parecer jurídico que considera a esterilização uma "clara mutilação". A imprensa veiculou, na época, que o Presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou que havia cometido um erro ao vetar esse artigo e requereu ao Congresso que derrubasse seu veto, o que só ocorreu em 14/08/97. A partir da publicação no Diário Oficial da União, em 27/11/97, a rede pública de saúde assumiu a responsabilidade de preparar os Hospitais Públicos para o cumprimento da Lei de Planejamento Familiar. Para tanto, os hospitais devem, a partir da nova legislação aprovada, se aparelharem com equipes multidisciplinares para aconselhar e desencorajar a esterilização precoce. [81]

            A Lei do Planejamento Familiar tinha como objetivo acabar com os altos índices de esterilização no Brasil denunciados pelas pesquisas. As mais recentes sobre o assunto datam de 1986 e 1996 [82], quando foi traçado o perfil da população brasileira. No que se refere aos métodos anticoncepcionais, no ano de 1986, a proporção de mulheres casadas que utilizavam algum método para evitar a gravidez era 64,5%, sendo que 42,2% utilizaram a esterilização com forma anticonceptiva. E, dentre mulheres entre 15-44 anos de idade, 66,2 utilizavam algum método, e 26,8 destas optaram pela esterilização. No ano de 1996, a porcentagem de mulheres entre 15-44 anos esterilizadas chega na marca 38,5, de um total de 77,9 que utilizavam algum método anticonceptivo. [83]

            A vedação do uso das ações de regulação de fecundidade para qualquer tipo de controle demográfico está prevista no Parágrafo único do artigo 2º da Lei 9.263/96. E, dentro de um contexto de direitos reprodutivos, a esterilização feminina não pode ser utilizada desta forma. Todas as pesquisas mencionadas e o histórico político internacional e brasileiro apresentado até aqui apontam para tal fato. Cabe, agora, expor os motivos de tamanha preocupação do Estado com o crescimento populacional e estudar a eficácia das políticas públicas no controle ao excessivo uso da cirurgia esterilizatória em mulheres.

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Sobre a autora
Renata Teixeira Jardim

Advogada, Consultora na área de Gênero, Direitos Humanos, Cidadania, Responsabilidade Social e Projetos Sociais, Pós-graduanda em Especialização para profissionais do Terceiro Setor, na FIJO - Fundação Irmão José Otão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JARDIM, Renata Teixeira. Esterilização feminina na ótica dos direitos reprodutivos, da ética e do controle de natalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 793, 4 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7212. Acesso em: 23 abr. 2024.

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