O transconstitucionalismo e seus impactos na sociedade moderna

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16/02/2019 às 20:45
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3. OS DIREITOS HUMANOS E O TRANSCONSTITUCIONALISMO

Sabe-se que os Direitos Humanos como se conhece hodiernamente nem sempre foram aplicados no passado. Pode-se ilustrar que a eficácia dos Direitos Humanos se deu após a 2° Guerra Mundial, mais precisamente em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (Carta das Nações Unidas, 1945), ou seja, há cerca de 70 anos. Comparado à existência do homem civilizado, onde registros apontam que as primeiras civilizações se encontravam concentradas no Antigo Egito (COMPARATO, 2006, p. 17) é notório que os aproximados 70 anos de Direitos Humanos existentes são ainda irrisórios, caminhando para um aprimoramento em razão da evolução em que se encontra a sociedade.

Lado outro, necessário se faz mencionar brevemente e entender as ascensões que os Direitos Humanos tiveram até chegar à contemporaneidade.  

3.1. Contexto histórico

No ano de 539 a.C., os exércitos de Ciro, O Grande, conquistaram a cidade da Babilônia (BOBBIO, 2004, p. 260). No entanto, o marco histórico de sua trajetória foi seu ato de bondade para com as pessoas ali presentes na época. Ciro libertou os escravos, declarou que todas as pessoas tinham o direito de escolher a sua própria religião, e estabeleceu a igualdade racial (BOBBIO, 2004, p. 265). Por todos esses atos humanísticos, ele ficou perpetuamente conhecido no tempo juntamente com o seu registro denominado Cilindro de Ciro. Este registro é identificado como a primeira carta de direitos humanos do mundo (COMPARATO, 2006, p.19).

Um pouco mais adiante no tempo, mais precisamente em 1215, a Magna Carta foi de grande influência para o processo histórico que conduziu à regra de lei constitucional hoje em dia no mundo anglófono. Ainda em 1215, após o Rei João da Inglaterra ter quebrado regras e costumes ancestrais que vigoravam no país há gerações, seus súditos o forçaram a assinar a Magna Carta (BOBBIO, 2004, p. 269). Amplamente visto como um dos documentos legais mais importantes e estudados na formação da democracia moderna, a Magna Carta foi um ponto de reviravolta crucial na luta para estabelecer a liberdade.

Em 1628, um marco miliário ficou conhecido como Petition of Rights (Petição de Direitos, 1628). O registro foi feito pelo Parlamento Inglês e enviada a Carlos I como uma declaração de liberdade civil. A rejeição pelo Parlamento de financiar a política exterior impopular do rei tinha causado grandes alvoroços, Carlos I então não viu outra opção a não ser exigir empréstimos forçados e o aquartelamento de tropas nas casas dos súditos como uma medida econômica.

Essas medidas foram consideradas como um ataque direito ao Parlamento. O Parlamente então revida com bastante hostilidade contra Carlos e a Jorge Villiers, o Duque de Buckingham, com a Petition of Rights, iniciada por Sir Edaward Coke, que baseou-se em estatutos e cartas anteriores e afirmou quatro princípios (BOBBIO, 2004, p. 272): I – Nenhum Tributo pode ser imposto sem o consentimento do parlamento, II – Nenhum súdito pode ser encarcerado sem motivo demonstrado (a reafirmação do direito de habeas corpus), III – Nenhum soldado pode ser aquartelado nas casas dos cidadãos, e IV – A Lei Marcial não pode ser usada em tempo de paz.

Pouco mais de 100 anos, a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776) e a Constituição do país (1787) saíram de uma utopia para se tornar uma realidade papável para a sociedade norte americana. A Declaração de Independência foi assinada aos 04 de julho de 1776 por 11 das 13 colônias existentes na época (COMPARATO, 2006, p. 29). O principal autor foi Thomas Jefferson, que escreveu o documento explicando o porquê o Congresso ter votado no dia 02 de julho para declarar a independência da Grã-Bretanha.

Um pouco mais tarde, em 1787, a primeira e única Constituição dos Estados Unidos é implantada no país se tornando uma referência internacional no mundo ocidental (COMPARATO, 2006, p. 36). Em 1791, as dez primeiras emendas da Constituição entram em vigor, limitando os poderes do governo federal, seguindo esse exemplo, na França, em 1789, a população levou a cabo a abolição da monarquia absoluta e o estabelecimento da primeira República Francesa (COMPARATO, 2006, p. 39).

Com ela, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão foi adotada pela assembleia Constituinte Nacional (COMPARATO, 2006, p. 41). Ficava explicito na Declaração que todos os cidadãos devem ter a garantia de liberdade, propriedade, segurança e resistência à opressão (COMPARATO, 2006, p. 43).

Quase um século depois se passou até que falasse novamente em Direitos Humanos. Dessa vez foi em 1864, na Primeira Convenção de Genebra. Dezesseis países europeus e vários estados americanos assistiram a uma conferência em Genebra (COMPARATO, 2006, p. 46). O objetivo principal especificado no tratado era a ampliação do cuidado, sem discriminação ao pessoal militar ferido ou doente (COMPARATO, 2006, p. 49).

Chegando ao século XX, após a 2° Guerra Mundial e suas mazelas e catástrofes causada à humanidade, em abril de 1945, delegados de cinquenta países se reuniram em São Francisco para formar um corpo internacional para promover a paz e prevenir as futuras guerras, criando, assim, as Nações Unidas (COMPARATO, 2006, p. 56).

E não podendo deixar de citar nesta obra que, em 1948, as Nações Unidas adotaram a proposta de Eleanor Roosvelt que, juntamente com sua comissão, elaborou o rascunho do documento que viria a converter-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Roosvelt referiu-se à Declaração como A Carta magna internacional para toda a Humanidade (COMPARATO, 2006, p. 61).

3.2. Os Direitos Humanos e o Transconstitucionalismo

Diante o exposto anteriormente, é possível enxergar que os Direitos Humanos passaram por vários estágios diferentes e, felizmente, a sociedade atual goza de benefícios não antes vistos no passado. No entanto, Marcelo Neves manifesta uma problemática não antes analisada. Segundo o autor, as questões dos direitos humanos deixaram de ser uma preocupação estatal e perpassa hoje todos os tipos de níveis múltiplos: ordens estatais, internacionais, supranacionais, transnacionais e locais (NEVES, 2009, p. 256).

Juntamente com essa problemática, os direitos fundamentais se desprendem de uma concepção meramente estatal, transformando-se em exigências globais. Como afirma Flávia Piovesan, “fortalece-se a ideia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado do Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional” (PIOVESAN, 2009, p. 14).

É correto, desse modo, alegar que a partir do último século passou a se poder falar de uma sociedade mundial, onde que nos leva a procurar soluções comuns, preferindo o pensamento cosmopolita e não provinciano. A partir desse ponto que Marcelo Neves, como já citado, afirma que as ordens internacionais se entrelaçam de modo constante definindo o transconstitucionalismo. Desse modo, é sensato dizer que os direitos humanos sejam definidos primariamente como expectativas normativas de inclusão jurídica de toda e qualquer pessoa na sociedade (mundial) e, portanto, de acesso universal ao direito enquanto subsistema social (NEVES, 2005, p. 8 e ss) .

Antes de se adentrar em uma nova problemática, é importante ressaltar que, para Bobbio (BOBBIO, 2004, p.285), existem gerações ou dimensões dos direitos humanos. O que implica nesta obra e na sociedade hodierna seria a terceira geração ou dimensão representada pela necessidade de proteção coletiva, sendo que os direitos de terceira dimensão são os direitos resultantes da fraternidade e da solidariedade, destacando-se o direito ao meio-ambiente e à autodeterminação dos povos. Luño também apresenta argumentos importantes quanto a sua tese na aplicação dos direitos humanos de forma universal em sua Concepção Universalista. O autor analisa os seguintes aspectos sobre a universalidade dos direitos humanos: a universalidade como elemento constitutivo da gênese da ideia dos direitos humanos; as diferentes teses que impugnam a universalidade de nosso tempo; e o caráter universal como risco básico do conceito dos direitos humanos (LUÑO, 2006, p. 53).

Com relação a isso, Luño afirma que tais direitos consistem numa categoria histórica, pois nascem com a modernidade, sendo que a formação histórica da ideia de direitos humanos foi tratada pela doutrina jusnaturalista e do contratualismo. A concepção jusnaturalista diz que todos os seres humanos, desde seu nascimento, possuem direitos naturais que emanam de sua racionalidade. Já para a concepção contratualista, as normas jurídicas e as instituições públicas não podem ser concebidas como produto de arbítrio dos governantes, mas sim, como resultado do consenso popular (LUÑO, 2006, p. 56).

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Com isso, Luño afirma que as duas concepções têm em comum o fato de postular faculdades básicas comuns a todos os homens. Dessa forma, somente a partir do momento em que se podem postular os direitos humanos de todas as pessoas é possível se falar em Direitos Humanos (LUÑO, 2006, p. 60).

Por fim, na análise de sua obra, Luño defende que a universalidade constitui pressuposto fundamental da própria gênese dos direitos humanos na modernidade, independente da raça, língua, sexo, religião e convicções ideológicas, pois os direitos e as liberdades não estão comprometidos pelas fronteiras estatais (LUÑO, 2006, p. 63).

Lado outro, verifica-se um pequeno e importante enlace da relação do transconstitucionalismo com os direitos humanos, sendo o tema uma preocupação que envolve todo e qualquer Estado democrático contemporâneo para a preservação da paz. No entanto, é de suma importância expor que nem tudo parece ser uma realidade nata de cooperação entre as nações e, infelizmente, algumas alas que abrangem os direitos humanos ainda podem ser consideradas como uma utopia.

Neves, juntamente com a ajuda da obra de Luhmann, ressalta que geralmente há um grande agravamento, mormente aos pensamentos e ideias de cada Estado. Segundo Neves:

Mas a situação se agrava se considerarmos que as diversas ordens normativas do sistema jurídico mundial de níveis múltiplos têm compreensões sensivelmente diversas das questões dos direitos humanos, muitas delas sendo, inclusive, avessas à ideia de direitos humanos como que pretendem valer para toda e qualquer pessoa (NEVES, 2009, p. 256).

Para a solução deste problema, Neves aponta ainda o transconstitucionalismo como adequação permanente, pois de acordo com o jurista, o transconstitucionalismo corta transversalmente ordens jurídicas dos mais diversos tipos, instigando, ao mesmo tempo, cooperação e colisões (NEVES, 2009, p. 257). 

O autor aponta três modelos de normas constitucionais para a solução de divergências ente Estados a respeito dos direitos humanos, sendo eles: o Modelo de Resistência, o Modelo de Convergência e o Modelo de Articulação (NEVES, 2009, p. 258). Para o transconstitucionalismo de Neves, não caberia nem o Modelo de Resistência nem o Modelo de Convergência, pois, conforme salienta Vicki C. Jakson:

O modelo de convergência vê as normas constitucionais como locais para implementação de direito internacional ou para o desenvolvimento de normas transnacionais, enquanto o modelo de resistência orienta-se tanto para que as constituições estatais sirvam como base de resistência às pressões da globalização econômica, destacadamente nos países menos desenvolvidos, quanto no sentido de que elas atuem como argumento afirmativo para resistir à constitucionalização de normas de direitos humanos derivadas de fontes transnacionais, particularmente no federalismo americano (JACKSON, 2005, pp. 112-4).

 Contra esses argumentos posicionados, Jackson propõe uma terceira alternativa previamente citada acima, o Modelo de Articulação (engagement model), definindo-o da seguinte maneira:

Em terceiro lugar, o direito constitucional pode ser compreendido como um locus de articulação (engagement) entre o direito doméstico e as fontes práticas jurídicas do direito internacional ou estrangeiro. Segundo esse ponto de vista, os intérpretes da Constituição não tratam o material estrangeiro ou internacional como vinculante, ou como algo a ser presuntivamente seguido. Mas tampouco colocam viseiras para excluir as fontes e a experiência jurídicas estrangeiras. As fontes transnacionais são vistas como interlocutores, oferecendo um meio de testarmos a compreensão de nossas próprias tradições e possibilidades ao examiná-las na reflexão das outras (JACKSON, 2005, p. 114).

A rigor, o Modelo de Articulação pode ser um meio de entrelaçamento transversal, já que, desse modo, intercâmbio entre as ordens jurídicas podem ser alcançadas e modo efetivo, pois se há articulação, se há conversação entre os Estados, claramente não haverá convergência e muito menos resistência, encaixando-se totalmente ao transconstitucionalismo e aos direitos humanos.

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