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Direito médico e game studies:

a gameterapia como obrigação das operadoras de planos de saúde

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26/02/2019 às 16:25
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3 A GAMETERAPIA COMO OBRIGAÇÃO DAS OPERADORAS DE PLANOS DE SAÚDE: UM DIÁLOGO ENTRE DIREITO E GAME STUDIES

Ioanna Vouvou, ao se referir à obra do famoso autor Henry Jenkins – Cultura da Convergência –, menciona que a convergência de mídias não é explorada apenas sob o aspecto tecnológico, mas sobretudo cultural, social e politicamente, de maneira que as diversas mídias passam a ter as mais variadas formas de utilização:

Dans l’ouvrage, Henry Jenkins s’applique à expliquer avec des analyses de cas abondantes la façon dont la communication à l’ère de la convergence des médias est un axe central qui co-détermine le mouvement de la société. Au moment où diverses cultures médiatiques s’insèrent dans les représentations que les individus acceptent comme véritables pour le monde qui les entoure, cet ouvrage met l’accent sur la nécessité de faire évoluer nos instruments de recherche et d’étude. La convergence des médias, ici conceptualisée dans ses paramètres non seulement technologiques mais surtout culturels, sociaux et, aussi, politiques, est considérée comme un changement de paradigme pour comprendre l’évolution médiatique et ses usages divers. Un paradigme qui va à l’encontre du concept de « révolution numérique », dominant durant les années 90 et qui se résume grosso modo à l’idée de succession médiatique, rendant obsolètes les « anciens » médias (voir Nicholas Negroponte, Being digital, New York, A. A. Knopf, 1995). Inversement, l’idée développée dans l’ouvrage d’Henry Jenkins part de l’hypothèse d’interaction complexe entre anciens et nouveaux médias, produisant des entrelacs culturels et sociaux différents de ceux auxquels le public était habitué (VOUVOU, 2015).

Veja-se que a autora se refere a uma aplicação interativa e cultural das mídias que pode ter as mais diversas extensões. Desde a utilização das comunidades online para formação de grupos de engajamento e promoção de movimentos sociais, até a utilização prática de aparelhos eletrônicos interativos no sentido de trazer benefícios à saúde de pacientes.

Assim é que Sousa (2011, p. 156) explica que os jogos de videogame que possibilitam ao usuário alguma forma de exercício físico são denominados “exergames”. Enquanto os games mais clássicos seriam verdadeiros reforços ao sedentarismo, aqueles que incorporam as mais novas tecnologias tornam possível ao usuário inovadoras formas de interação, a exemplo do console Wii, muito famoso no auge dos anos 2000. Poder-se-ia dizer que o atual Switch, que lidera as vendas da gigante japonesa Nintendo, também teria potencialidade de trabalhar com jogos que possibilitam o exercício físico.

É justamente por meio desses aparelhos – e cite-se também a plataforma Kinect da Microsoft, lançada para Xbox – que o profissional da fisioterapia ou terapia ocupacional exercerá a atividade denominada gameterapia, contribuindo para a reabilitação do paciente e possibilitando a ele uma verdadeira reintegração plena ao convívio social, de modo a exercer plenamente as suas faculdades existenciais.

Veja-se que uma das preocupações dos Game Studies seria justamente a noção de “materialidade”, conforme evidenciam Thomas Apperley e Darshana Jayemane:

A noção de materialidade é usada amplamente aqui, indicando uma certa “teimosia” da realidade material que introduz um elemento aleatório ou contingente no que normalmente poderia ser pensado como estruturas formalizadas e calcificadas (acadêmicas ou não) – os corpos como locais de resistência e alteridade. Sustentamos que o trabalho atento à materialidade tornou-se um tópico chave nos estudos de jogo e também uma ponte para outras disciplinas. Tal trabalho evidencia uma crescente preocupação com os contextos, usos e qualidades das tecnologias de jogos, por um lado, e a atenção à análise situada do jogo e dos jogadores, por outro. Nosso exame desta mudança material será viabilizado através de três grandes tendências metodológicas: etnografia, platform studies e trabalho digital (APPERLEY; JAYEMANE, 2017, p. 3).

Assim é que, nos termos do Acórdão nº 38 do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, publicado no Diário Oficial da União nº 126 de 6 de julho de 2015, a prestação de serviço de gameterapia foi oficialmente reconhecida, juntamente com a realidade virtual e outras formas terapêuticas:

ACÓRDÃO Nº 38, DE 26 DE JUNHO DE 2015.

A atuação do fisioterapeuta vem ampliando, a cada dia, novos cenários para o mundo do trabalho. As especialidades, diante de inovadoras pesquisas científicas, têm apresentado crescente evolução no manejo dos pacientes, apresentando para a sociedade propostas terapêuticas de alta resolutividade.

Diante deste cenário, ACORDAM os Conselheiros Federais desta Autarquia, reunidos na 258ª Reunião Plenária Ordinária, que a modalidade terapêutica conhecida comercialmente como Pediasuit, Therasuit, Theratogs, entre outros, traz à luz da sociedade profissional um avanço técnico para a melhora da funcionalidade dos pacientes, sendo utilizada, para tal fim, intervenção com cinesioterapia, visando restaurar e recuperar a capacidade para a realização das tarefas. Capacidade, segundo a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) da Organização Mundial da Saúde, é a habilidade do indivíduo de executar uma tarefa ou ação e indica o provável nível máximo de funcionalidade que uma pessoa pode atingir. Funcionalidade é um termo genérico para as funções do corpo, estruturas do corpo, atividades e participação, que indica os aspectos positivos da interação ente um indivíduo (com uma condição de saúde) e seus fatores contextuais (fatores ambientais e pessoais).

O fisioterapeuta tem como objeto de atuação o movimento humano em todas as suas formas de expressão e potencialidades, quer nas alterações patológicas, fisíco-funcionais, quer nas suas repercussões psíquicas e orgânicas, objetivando a preservar, desenvolver, restaurar a integridade de órgãos, sistemas e funções desde a elaboração do diagnóstico físico e funcional, eleição e execução dos procedimentos fisioterapêuticos pertinentes a cada situação. Neste sentido o presente acórdão consolida as diretrizes de conduta do fisioterapeuta para uso da Cinesioterapia em padrões de treinamento terapêutico intensivo, com uso de recursos, técnicas e métodos que permitam o treinamento funcional, no âmbito do exercício da Fisioterapia, para as atividades da vida real, buscando a aquisição do controle e aprendizado motor. Para tanto, reconhecemos, além das demais previstas em outros regulamentos, como atividade própria do fisioterapeuta a utilização de recursos, métodos e técnicas cinesioterapêuticos intensivos com vistas a restaurar a capacidade para a realização de tarefas por meio do treinamento funcional, conforme abaixo:

a) Vestes Terapêuticas Associadas a Tensores;

b) Realidade Virtual e Gameterapia;

c) Estimulação Elétrica Funcional;

d) Dispositivos Robóticos;

e) Terapia de Contensão Induzida (TCI);

f) Treinamento de Marcha em Esteira com Suporte Parcial de Peso.

§ 1º Entende-se por veste terapêutica associada a tensores a indumentária própria que possui bandas tracionadoras e faixas elásticas, fixadas a superfícies estáveis através de cordas elásticas com o objetivo de estabilização, facilitação ou resistência ao movimento funcional, para aplicação de protocolo de treinamento sensório-motor intensivo.

§ 2º Entende-se por realidade virtual a experiência imersiva e interativa, baseada em imagens gráficas geradas em tempo real por computador, utilizado como meio para facilitação da cinesioterapia, favorecendo acesso a um ambiente multidimensional e multissensorial. A gameterapia simula atividades reais em ambiente virtual interativo por meio de jogos de videogames com ou sem uso de acessórios.

§ 3º Entende-se por estimulação elétrica funcional o uso da corrente elétrica de baixa frequência para provocar contração muscular com o objetivo de produzir movimentos.

§ 4º Entende-se por dispositivo robótico o aparato eletromecânico ou biomecânico capaz de realizar tarefas de maneira autônoma, pré-programada ou por meio do controle humano.

§ 5º Entende-se por Terapia de Contensão Induzida (TCI) a contenção mecânica do segmento corporal sadio, acompanhada de treinamento intensivo e movimentos funcionais com o segmento corporal afetado.

§ 6º Entende-se por treinamento de marcha em esteira com suporte parcial de peso a utilização de dispositivo, elástico, para a suspensão parcial do peso corporal durante o treino de marcha em esteira.

Compete ao fisioterapeuta a decisão de escolher a melhor abordagem cinesiomecanoterapêutica, seja esta aplicada de forma intensiva, ou ainda, em circuito ou não, combinada ou não com as abordagens acima descritas, baseadas no diagnóstico cinesiológico funcional, alinhadas aos conceitos da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde e com os recursos disponíveis. Quórum:DR. ROBERTO MATTAR CEPEDA – Presidente; DRA. LUZIANA CARVALHO DE A. MARANHÃO – Vice-Presidente; DR. CÁSSIO FERNANDO O. DA SILVA – Diretor-Secretário; DR. WILEN HEIL E SILVA – Diretor-Tesoureiro; DRA. ELINETH DA CONCEIÇÃO DA S. BRAGA – Conselheira Efetiva; DR. LEONARDO JOSÉ COSTA DE LIMA – Conselheiro Efetivo; DR. MARCELO RENATO MASSAHUD JUNIOR – Conselheiro Efetivo; e DRA. PATRÍCIA LUCIANE SANTOS DE LIMA – Conselheira Efetiva.

Brasília-DF, 26 de junho de 2015.

Dr. Cássio Fernando O. da Silva

Diretor-Secretário

É sabido que o rol de terapias e procedimentos que devem ser custeadas pelos planos de saúde é definido pela Agência Nacional de Saúde. Ora, se a fisioterapia é incluída nesse rol (Resolução 428/2017 ANS) e a gameterapia, é uma prática terapêutica reconhecida como uso de videogame em sessões fisioterápicas, não haveria razão para limitação ou recusa da operadora em fornecer tal atendimento, configurando a vedação verdadeira prática abusiva. O mesmo se diga com relação ao Pediasuit, o Therasuit, dentre outros tratamentos mencionados no acórdão.

Veja-se que, quanto à responsabilidade objetiva do Estado (art. 37, §6º da Constituição), já houve condenação da Fazenda Pública pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina a fornecer a paciente o serviço público fisioterápico na modalidade de gameterapia. Tal ficou consubstanciado em decisão do ano de 2015, proferida no recurso de apelação cível nº 2015.077378-3.

Tudo isso evidencia que é possível até mesmo fazer uma ponte entre o direito do consumidor e o princípio da fraternidade. Sob a liderança das professoras Josiane Rose Petry Veronese e Olga Maria Boschi Aguiar de Oliveira, desenvolveu-se na Universidade Federal de Santa Catarina o Programa de Pós-graduação “Direito e Fraternidade”. Dos estudos desse núcleo de estudos, é possível perceber: tal princípio ressurgiu, e potencializado diante dos desafios de tutela dos novos direitos dos novos sujeitos.

Assim é que Nicknich (2013, p. 45) menciona uma verdadeira “ressignificação do princípio da dignidade da pessoa humana” através do resgate da fraternidade, de forma a possibilitar a consolidação da democracia e a criação de oportunidades de qualidade de vida. Isso se dá tanto no direito público como no âmbito privado. A autora menciona que foi Norberto Bobbio quem criou a ideia de novos direitos em sua A era dos direitos – afinal, novos bens jurídicos passaram a ser considerados; outros sujeitos de direitos surgiram que não o homem; o homem passa a ser considerado na sua realidade concreta de velhice, infância, doença, etc.

Pires (2016) afirma que, na contemporaneidade pós-moderna, o resgate da fraternidade implica na constante busca de uma nova dimensão sobre este mesmo conceito, tendo sido Chiara Lubich a responsável por sua difusão a partir de 1996. Na verdade, a fraternidade é um princípio que teve raízes no cristianismo e que, posteriormente, surgiu como uma categoria política no contexto francês do século XVIII. Importante é reafirmar a fraternidade, hoje, como um valor orientador dos novos direitos na pós-modernidade e como categoria jurídica. 

Poderão ser consideradas abusivas as condutas da operadora de plano de saúde que configurem recusa de atendimento das variações terapêuticas a serem realizadas pelo profissional da fisioterapia, sem que haja ao menos a aferição do laudo médico indicativo do tratamento ou mesmo a verificação da real condição do paciente. Inclusive, existe a súmula 601 do STJ, aprovada em 2018, no sentido de que o “Ministério Público tem legitimidade ativa para atuar na defesa de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos”, implicando a possibilidade do órgão realizar um controle prévio e abstrato das cláusulas contratuais reputadas abusivas. Tal pode ocorrer por meio da ação civil pública ou por meio do termo de ajustamento de conduta.

Veja-se acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, do ano de 2018, versando sobre a obrigação da operadora de plano de saúde de prestar o serviço fisioterápico na modalidade Pediasuit, que é previsto no referido Acórdão nº 38 do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional – situação análoga:

Ementa: Cerceamento de defesa. Inocorrência. Pleito de expedição de ofícios ao Núcleo de Apoio Técnico e de Mediação (NAT) e ao Comitê Científico da Associação Brasileira de Fisioterapia Neurofuncional (ABRAFIN) e realização de prova testemunhal. Dilação probatória despicienda. Conjunto probatório sólido. Princípio do livre convencimento motivado. Pretendida nulidade do julgado que requer a identificação em concretude de prejuízo processual. Aplicação do adágio pas de nullité sans grief. Prejuízo não demonstrado. Prova, ademais, que poderia ter sido encartada com a contestação. Preliminar rejeitada. Plano de saúde. Contrato de assistência médica e/ou hospitalar. Aplicabilidade do CDC (Súmula 469 do C. STJ). Possibilidade de revisão de cláusulas contratuais que decorre do próprio sistema jurídico (arts. 478 e 480 do CC e art. 6º, V, do CDC). Relativização da 'pacta sunt servanda'. Obrigação de fazer. Criança (04 anos de idade) com diagnóstico de Mielomeningocele, apresentando hipotonia muscular de tronco e membros inferiores. Prescrição médica positiva à 'Fisioterapia intensiva com método Pediasuit e Equoterapia'. Negativa de cobertura fundada em cláusula contratual restritiva. Irrelevância de o tratamento não corresponder às diretrizes de utilização estabelecidas no rol da ANS e de haver exclusão contratual. Recusa da operadora de saúde que se afigura abusiva. Conduta que implica na concreta inutilidade do negócio protetivo. Desequilíbrio contratual no exercício abusivo do direito que se evidencia na desigualdade material de poder. Prestadora que confunde boa-fé com interesse próprio. Menoscabo com o consumidor. Lesão à dignidade humana. Interpretação que fere a boa-fé objetiva e contrapõe-se à função social do contrato (arts. 421 e 422 do Cód. Civil). Conduta que a doutrina moderna caracteriza como ilícito lucrativo. Incidência dos arts. 4º, "caput", 7º, 46, 47 e 51, IV, do CDC. Cobertura devida. Precedentes. Sentença mantida. Recurso desprovido (ApCiv 0005484-05.2014.8.26.0584, Rel. Desembargador(a) RÔMOLO RUSSO, SÉTIMA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO, julgado em 17/04/2018 , DJe 17/04/2018).

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Mencione-se julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, também do ano de 2018, versando sobre situação análoga:

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CONSUMERISTA. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS COM PEDIDO LIMINAR. NEGATIVA DE AUTORIZAÇÃO DE EXAMES E DE SESSÃO DE FISIOTERAPIA.RELAÇÃO DE CONSUMO - INCIDÊNCIA. VIOLAÇÃO A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, BOA FÉ E FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO. DANOS MORAIS - CONFIGURADOS.MANUTENÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO. APELO IMPROVIDO. I - Os Tribunais possuem jurisprudência assentada no sentido de que basta que se trate de atividade fornecida mediante remuneração no mercado de consumo, que será considerada "serviço" para fins de proteção consumerista. No caso dos planos de saúde denominados de "autogestão", ainda que se possa falar num mercado de consumo mais limitado, continua a ser um serviço prestado mediante remuneração, o que não afasta a característica do instituto. II – O apelante fundamentou a negativa da realização de procedimentos, sob tese de que não havia previsão de cobertura dos procedimentos, no tocante ao exame (procalcitonina) e sessões de fisioterapias, de que não estavam cobertos pelo plano contratado, solicitado pelo médico que acompanhava o tratamento do paciente, desconsiderando, entretanto, que se tratava de atendimento emergencial que colocava em risco a vida da consumidora apelada. III – Ao contrário do alegado, a cláusula 1ª do contrato entabulado entre as partes (fl. 36) prevê a cobertura de custos das despesas médicas, hospitalares referentes a procedimentos cirúrgicos e de forma expressa, serviços auxiliares de diagnose para tratamentos especializados. IV - O apelante sequer acostou documentos aptos a comprovar a tese da legalidade da negativa dos procedimentos, com o que inobservou a norma do art. 330, II do CPC/73, pois a cabe ao réu a prova de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito autoral, o que não ocorreu no presente feito. IV - Inegável que o constrangimento infligido a ofendida, é suficiente para demonstrar que os transtornos e os aborrecimentos sofridos, transcendem a esfera do mero aborrecimento, de forma indubitável, caracterizam o abalo extrapatrimonial, vez que a conduta do apelante trouxe novas preocupações a consumidora apelada, vez que esta foi compelida a arcar com os custos do procedimento de emergência (fls. 09, 51), além de recorrer à Justiça para conseguir a manutenção dos seus serviços de saúde, o que evidencia que os transtornos excedem o mero dissabor contratual e se constituem dano moral in re ipsa, no qual os prejuízos suportados pelo ofendido são presumidos. V - Deve ser mantida a condenação de R$ 10.000,00 (dez mil reais), pois, para a fixação do quantum indenizatório, deve o magistrado tomar todas as cautelas para que a indenização não seja fonte de enriquecimento sem causa, ao mesmo tempo em que não seja meramente simbólica, sempre levando em consideração os princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Apelo improvido. (ApCiv 0567842017, Rel. Desembargador(a) JOSÉ DE RIBAMAR CASTRO, QUINTA CÂMARA CÍVEL, julgado em 09/04/2018 , DJe 12/04/2018).

Pode-se falar, então, em vício do serviço, nos exatos termos da teoria da qualidade do Código de Defesa do Consumidor? Pode ser que sim. Há direito à indenização em havendo recusa por parte da operadora de plano de saúde na prestação dos serviços? O consumidor, para tal, deverá fazer prova do dano e do nexo causal entre a recusa e o prejuízo sofrido. Pode ocorrer, por exemplo, o agravamento do estado físico do paciente, ocasionando sérias consequências a seus direitos da personalidade.

A disciplina das cláusulas e das práticas abusivas é que deve ser aplicada em benefício do consumidor, que não pode ter o seu direito estiolado. Sendo detentor de laudo médico que prescreve o tratamento da gameterapia, a operadora não poderá “tabelar” sua saúde, encaixando seu tratamento dentro de modalidades previstas no rol da ANS de forma exemplificativa.

Frise-se, derradeiramente, a questão da necessidade de haver hipóteses em que será definido um regime de coparticipação entre consumidor e fornecedor no custeio do serviço. Isso em prol do equilíbrio contratual. O tema foi analisado pelo STJ no REsp nº 1.642.255/MS, no ano de 2017:

RECURSO ESPECIAL. CONSUMIDOR E SAÚDE SUPLEMENTAR. PLANO PRIVADO DE SAÚDE. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE CLÁUSULA CONTRATUAL. MENOR IMPÚBERE PORTADOR DE PATOLOGIA NEUROLÓGICA CRÔNICA. LIMITAÇÃO DE 12 SESSÕES DE TERAPIA OCUPACIONAL POR ANO DE CONTRATO. DESVANTAGEM EXAGERADA. CONFIGURADA. ROL DE PROCEDIMENTOS DA ANS. EXIGÊNCIA MÍNIMA DE CONSULTAS. EQUILÍBRIO CONTRATUAL. COPARTICIPAÇÃO. NECESSIDADE. JURISPRUDÊNCIA ESTÁVEL, ÍNTEGRA E COERENTE. OBSERVÂNCIA NECESSÁRIA. 1. Ação ajuizada em 24/08/12. Recurso especial interposto em 23/05/16 e concluso ao gabinete em 18/10/16. Julgamento: CPC/15. 2. Causa de pedir da ação declaratória de nulidade de cláusula contratual fundada na negativa de cobertura de terapia ocupacional eletiva como tratamento de paralisia cerebral com epilepsia, baseado em prescrição médica. 2. O propósito recursal consiste em definir se é abusiva cláusula de contrato de plano de saúde que estabelece limite anual para cobertura de sessões de terapia ocupacional. 3. A Lei 9.656/98 dispõe sobre os planos privados de assistência à saúde e estabelece as exigências mínimas de oferta aos consumidores (art. 12), as exceções (art. 10) e as hipóteses obrigatórias de cobertura do atendimento (art. 35-C), tudo com a expressa participação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) na regulação da saúde suplementar brasileira (art. 10, §4º). 4. Há abusividade na cláusula contratual ou em ato da operadora de plano de saúde que importe em interrupção de tratamento de terapia por esgotamento do número de sessões anuais asseguradas no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS, visto que se revela incompatível com a equidade e a boa-fé, colocando o usuário (consumidor) em situação de desvantagem exagerada (art. 51, IV, da Lei 8.078/1990). Precedente. 5. Utilização da coparticipação para as consultas excedentes, como forma de evitar o desequilíbrio financeiro, entre prestações e contraprestações. Valoriza-se, a um só tempo, a continuidade do saudável e consciente tratamento do paciente enfermo sem impor à operadora o ônus irrestrito de seu financiamento, utilizando-se a prudência como fator moderador de utilização dos serviços privados de atenção à saúde. 6. Recurso especial conhecido e parcialmente provido (REsp nº 1.642.255/MS).

O STJ, portanto, segue uma orientação que preza pela ideia de obrigação como processo, não recaindo os encargos totalmente sobre o fornecedor nas hipóteses descritas acima. Aquilo que exceder à quantidade de sessões prevista no rol da ANS deverá ser custeado em regime de coparticipação, se houver desequilíbrio contratual.

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Sobre o autor
Thiago dos Santos Rocha

Thiago dos Santos Rocha é um advogado e autor de livros e artigos jurídicos, graduado em Direito pela Universidade Federal do Maranhão. É especialista em Direito do Consumidor, em Direito Constitucional Aplicado e em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio. Em seus textos acadêmicos, promoveu o diálogo entre Direito e Game Studies, abordando temas como: videogames e epilepsia; advergames e publicidade infantil; gameterapia e planos de saúde; videogames e política nacional de educação ambiental; etc. Também publicou obras na área de Direito Médico, tendo escrito os livros "A violação do direito à saúde sob a perspectiva do erro médico: um diálogo constitucional-administrativo na seara do SUS" (Editora CRV) e "A aplicação do Código de Defesa do Consumidor à relação médico-paciente de cirurgia plástica: visão tridimensional e em diálogo de fontes do Schuld e Haftung" (Editora Lumen Juris).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Thiago Santos. Direito médico e game studies:: a gameterapia como obrigação das operadoras de planos de saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5718, 26 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72202. Acesso em: 19 abr. 2024.

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