"É tempo de adotar-se posição rigorosa visando a afastar o ciclo vicioso da projeção indefinida do cumprimento pelas pessoas jurídicas de direito público das obrigações, especialmente as retratadas em título judicial trânsito em julgado" [01].
I. CONSIDERAÇÕES INICIAIS:
O presente trabalho abordará de forma crítica a situação vivenciada por inúmeros municípios brasileiros com relação ao pagamento dos débitos oriundos de sentenças judiciais transitadas em julgado, constantes de precatórios.
Inicialmente serão abordadas a postura e as atitudes da administração pública e do Poder Judiciário frente a essa situação. Serão enfocadas, em seguida, as medidas judiciais possíveis de serem adotadas na hipótese de ser determinado o seqüestro de recursos públicos em virtude do não pagamento de precatório no exercício previsto.
Ao final serão apresentadas as conclusões e sugestões para viabilizar o adimplemento dos precatórios judiciais dentro do exercício financeiro respectivo, ou, pelo menos, de parcela significativa deles.
Vale registrar, desde já, que o tema analisado diz respeito ao pagamento de precatórios judiciais, entendendo-se como tal os referentes às obrigações não definidas em lei como de pequeno valor. Essas últimas possuem sistemática própria de pagamento, através das Requisições de Pequeno Valor – RPV.
II. AS PREVISÕES ORÇAMENTÁRIAS E A RECEITA EFETIVAMENTE REALIZADA:
Os municípios brasileiros, em especial aqueles mais carentes, vêm enfrentando nos últimos anos uma grave crise orçamentária e financeira decorrente do significativo aumento do número de precatórios judiciais e requisições de pequeno valor aliado à redução da parcela do Fundo de Participação dos Municípios – FPM. Verifica-se, ainda, com uma certa freqüência, a não realização da receita prevista na Lei Orçamentária, o que acarreta o acúmulo de precatórios não quitados de um exercício para o seguinte, comprometendo, desse modo, o pagamento dos precatórios orçados nesse último.
Atendendo ao disposto no §1º do art. 100 da Constituição Federal [02], os municípios, quando da elaboração das Leis Orçamentárias, incluem verba necessária para o pagamento dos precatórios judiciais apresentados até 1º de julho; entretanto, as receitas efetivamente realizadas têm ficado aquém do previsto no orçamento, pelo que os valores consignados ao Poder Judiciário não estão sendo suficientes para quitar todos os precatórios de determinado exercício. Cria-se, com isso, o famigerado "efeito cascata", ou seja, a acumulação de precatórios judiciais referentes a exercícios financeiros já encerrados sem o devido pagamento.
A realidade local (leia-se Nordeste), comparada a dos municípios do Sul e Sudeste, é ainda mais grave e preocupante, já que a receita dos municípios nordestinos é composta basicamente do repasse efetuado pelo FPM.
A vertiginosa redução no repasse do FPM, além de repercutir no pagamento dos precatórios, compromete os serviços públicos essenciais, como educação e saúde pública, além do pagamento dos vencimentos dos servidores públicos e outras obrigações dos municípios. Tudo isso termina por penalizar bastante a população local.
Os gestores públicos ficam numa situação delicada: ou atendem as necessidades básicas da população local ou efetuam o pagamento dos precatórios judiciais. Por motivos "administrativos", cuja análise não será objeto do presente estudo, elegem, em regra, a primeira opção, deixando de consignar ao Poder Judiciário os valores destinados na Lei Orçamentária para pagamento dos precatórios.
III. O PODER JUDICIÁRIO E A INADIMPLÊNCIA DOS PRECATÓRIOS:
O ordenamento jurídico brasileiro ainda é falho com relação à forma de pagamento dos débitos da Fazenda Pública oriundos de sentenças judiciais transitadas em julgado. Há, de fato, a previsão (constitucional, registre-se) de "inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento" dos citados débitos. Existe, também, determinação no sentido de que o pagamento deve ser efetuado "até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente". Entretanto, a maneira como "as dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados diretamente ao Poder Judiciário" ainda não foi devidamente disciplinada, ficando a critério do gestor público o repasse de tais verbas.
Em função da crise enfrentada, muitos não destinam qualquer valor para o pagamento dos precatórios, a despeito da "previsão" orçamentária. Optam, como dito, pelo atendimento das necessidades básicas imediatas da sociedade local.
Os credores do poder público, frente à consolidada inadimplência dos precatórios, ficam de mãos atadas. Conforme restou decidido pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI n.º 1662-SP, cuja decisão tem efeito vinculante e eficácia erga omnes, "somente no caso de inobservância da ordem cronológica de apresentação do ofício requisitório é possível a decretação do seqüestro" [03] de recursos públicos. A intervenção, por sua vez, só tem sido admitida pela Excelsa Corte quando configurada a atuação dolosa e deliberada da administração no sentido de retardar ou não realizar o pagamento. Alega-se, para tanto, a "necessidade de garantir eficácia a outras normas constitucionais, como, por exemplo, a continuidade de prestação de serviços públicos" [04]. Complicando ainda mais a situação dos credores do poder público, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que:
"Não-inclusão do débito judicial no orçamento do ente devedor. Hipótese que não se equipara à preterição de ordem, sendo ilegítima a determinação de seqüestro em tais casos. A presunção de existência de recursos financeiros não elide a ausência de previsão orçamentária, não consistindo motivo suficiente para a decretação de bloqueio de verbas públicas" [05].
Contudo, alguns Tribunais, a despeito da orientação jurisprudencial firmada pela Corte Suprema, têm promovido diligências visando a intervenção no ente inadimplente ou determinado o seqüestro de verbas públicas para o pagamento de precatórios vencidos.
A intervenção, como exposto, só tem sido admitida em situações excepcionais. Raramente é decretada, uma vez que a inadimplência decorre da inexistência de recursos públicos suficientes para o pagamento integral das despesas atuais e dos precatórios, optando-se por honrar aquelas. Nessa situação, a intervenção mostra-se, a princípio, inadequada, tendo em vista que não implicará em aumento de recursos financeiros disponíveis. Sendo assim, essa medida não possibilitará o pagamento dos precatórios vencidos.
Segundo o entendimento firmado pelo Colendo Supremo Tribunal Federal,
"A ausência de voluntariedade em não pagar precatórios, consubstanciada na insuficiência de recursos para satisfazer os créditos contra a fazenda estadual no prazo previsto no § 1º do artigo 100 da Constituição da República, não legitima a medida drástica de subtrair temporariamente a autonomia estatal, mormente quando o ente público, apesar da exaustão do erário, vem sendo zeloso, na medida do possível, com suas obrigações derivadas de provimentos judiciais". [06]
O seqüestro de recursos públicos, por sua vez, apesar de contrariar a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADI n.º 1662-SP, possibilita, de fato, o pagamento dos precatórios vencidos, razão pela qual vem sendo utilizada de forma mais freqüente.
IV. O SEQUESTRO DE RECURSOS PÚBLICOS PARA PAGAMENTO DE PRECATÓRIOS JUDICIAIS: POSSIBILIDADE E MEIOS DE DEFESA DA ADMINISTRAÇÃO
Como dito, o seqüestro de recursos do ente público inadimplente apresenta-se ao Poder Judiciário e aos credores como a forma mais viável de efetuar o pagamento de precatórios judiciais não adimplidos no exercício previsto.
Entretanto, a Excelsa Corte, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI n.º 1.662-SP, proposta pelo Governador do Estado de São Paulo em face da Instrução Normativa n.º 11/97 do Tribunal Superior do Trabalho, decidiu que:
"AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. INSTRUÇÃO NORMATIVA 11/97, APROVADA PELA RESOLUÇÃO 67, DE 10.04.97, DO ÓRGÃO ESPECIAL DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO, QUE UNIFORMIZA PROCEDIMENTOS PARA A EXPEDIÇÃO DE PRECATÓRIOS E OFÍCIOS REQUISITÓRIOS REFERENTES ÀS CONDENAÇÕES DECORRENTES DE DECISÕES TRANSITADAS EM JULGADO.
1. Prejudicialidade da ação em face da superveniência da Emenda Constitucional 30, de 13 de setembro de 2000. Alegação improcedente. A referida Emenda não introduziu nova modalidade de seqüestro de verbas públicas para a satisfação de precatórios concernentes a débitos alimentares, permanecendo inalterada a regra imposta pelo artigo 100, § 2º, da Carta Federal, que o autoriza somente para o caso de preterição do direito de precedência do credor. Preliminar rejeitada.
2. Inconstitucionalidade dos itens III e XII do ato impugnado, que equiparam a não-inclusão no orçamento da verba necessária à satisfação de precatórios judiciais e o pagamento a menor, sem a devida atualização ou fora do prazo legal, à preterição do direito de precedência, dado que somente no caso de inobservância da ordem cronológica de apresentação do ofício requisitório é possível a decretação do seqüestro, após a oitiva do Ministério Público.
3. A autorização contida na alínea b do item VIII da IN 11/97 diz respeito a erros materiais ou inexatidões nos cálculos dos valores dos precatórios, não alcançando, porém, o critério adotado para a sua elaboração nem os índices de correção monetária utilizados na sentença exeqüenda. Declaração de inconstitucionalidade parcial do dispositivo, apenas para lhe dar interpretação conforme precedente julgado pelo Pleno do Tribunal.
4. Créditos de natureza alimentícia, cujo pagamento far-se-á de uma só vez, devidamente atualizados até a data da sua efetivação, na forma do artigo 57, § 3º, da Constituição paulista. Preceito discriminatório de que cuida o item XI da Instrução. Alegação improcedente, visto que esta Corte, ao julgar a ADIMC 446, manteve a eficácia da norma.
5. Declaração de inconstitucionalidade dos itens III, IV e, por arrastamento, da expressão "bem assim a informação da pessoa jurídica de direito público referida no inciso IV desta Resolução", contida na parte final da alínea c do item VIII, e, ainda, do item XII, da IN/TST 11/97, por afronta ao artigo 100, §§ 1º e 2º, da Carta da República.
6. Inconstitucionalidade parcial do item IV, cujo alcance não encerra obrigação para a pessoa jurídica de direito público.
Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente em parte." (destaques acrescidos).
Resta patente, então, que a única causa autorizadora do seqüestro de recursos públicos é aquela prevista no art. 100, §2º, da Constituição Federal de 1988 [07]: preterição na ordem cronológica de precedência. Fora dessa hipótese, o seqüestro não é possível juridicamente, tendo em vista o efeito vinculante e a eficácia erga omnes da citada decisão.
A Constituição Federal de 1988, ao tratar da Ação Declaratória de Constitucionalidade, estabelece que:
"Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente:
a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal;
(...)
§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal."
O §2º transcrito acima foi modificado pela Emenda Constitucional n.° 45. Antes se referia apenas às decisões proferidas nas ações declaratórias de constitucionalidade, mas também era aplicável às ações diretas de inconstitucionalidade por força do art. 28, parágrafo único, da Lei n.º 9.868, de 10 de novembro de 1999, que "dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal". Determina o parágrafo único do art. 28 que:
"A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal." (negrito acrescido).
Portanto, as decisões de mérito proferidas pelo Colendo Supremo Tribunal Federal através do controle concentrado de constitucionalidade têm eficácia contra todos (erga omnes) e vinculam todos os órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo, seja ele federal, estadual ou municipal. E Emenda Constitucional n.° 45, portanto, apenas constitucionalizou algo que já era pacífico no âmbito da legislação ordinária e da jurisprudência.
No caso de descumprimento ou desrespeito ao que foi decidido pela Corte Suprema, cabe a parte interessada ou ao Ministério Público propor Reclamação Constitucional [08], com base no art. 102, I, "l", da Constituição Federal, que estabelece:
"Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente:
(...)
l) a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões;"
Busca-se, com a reclamação, a garantia da autoridade da decisão proferida na ADI n.º 1.662-SP. Esse é o entendimento da Excelsa Corte [09]. O Eminente Ministro Maurício Corrêa, Relator na Reclamação n.º 1.859-SP, expôs em seu voto que:
"8.Assinalo que esta Corte, no julgamento da ADI 1.662-SP, declarou inconstitucionais os itens III e XII da Instrução Normativa 11/97, sob o entendimento de que a equiparação da não-inclusão no orçamento de verbas públicas destinadas à satisfação de precatórios ou preterimento do direito de precedência cria, na verdade, nova modalidade de seqüestro, além da única prevista na Constituição Federal (parte final do §2º do art. 100), ocorrendo o mesmo com o denominado pagamento inidôneo (a menor, sem a devida atualização ou fora do prazo legal).
9.(...) Nesse julgamento, o Tribunal assentou a impossibilidade de serem criadas, à revelia da dicção constitucional, novas modalidades de saque forçado de recursos públicos." (negrito acrescido).
Desse modo, o seqüestro de recursos financeiros dos entes públicos só se mostra pertinente e legítimo nos casos de preterição da ordem de precedência, sendo ilegais, ilegítimas e arbitrárias todas as demais deliberações que visem o seqüestro ou bloqueio de recursos públicos para fins de pagamento de precatórios judiciais.
Para impugnar a decisão que determinar o seqüestro é possível, também, a impetração de mandado de segurança, haja vista que, por ser de aplicação obrigatória por todo o Poder Judiciário, a inobservância da decisão proferida na ADI n.º 1.662-SP viola direito líquido e certo da administração consistente em só ter seus recursos seqüestrados na hipótese de preterição da ordem cronológica de apresentação dos precatórios.
Ocorre que, como as decisões referentes a precatórios têm natureza administrativa, a competência para processar e julgar o mandado de segurança será do próprio Tribunal que determinou o seqüestro, através de seu pleno, o que pode gerar alguns inconvenientes.
Portanto, ante a inexistência de incompatibilidade entre a reclamação constitucional e o mandado de segurança, pode o ente público fazer uso de ambos os instrumentos processuais. Por ser a primeira apreciada por órgão distinto do que prolatou o ato impugnado, mostra-se mais aconselhável.
1. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE NA RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL:
Dispõe o art. 13 da Lei n.º 8.038, de 28 de maio de 1990, que "Institui normas procedimentais para os processos que específica, perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal":
"Art. 13. Para preservar a competência do Tribunal ou garantir a autoridade das suas decisões, caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público." (destaques acrescidos).
No mesmo sentido é a redação do art. 156 do Regimento Interno do Colendo Supremo Tribunal Federal, in verbis:
"Art. 156. Caberá reclamação do Procurador-Geral da República, ou do interessado na causa para preservar a competência do Tribunal ou garantir a autoridade das suas decisões." (destaques acrescidos).
Contudo, por muito tempo os dispositivos foram interpretados de forma restritiva, não se entendendo como "parte interessada" ou "interessado na causa" os "terceiros pretensamente interessados, cuja alegação seja eventual prejuízo pelo descumprimento da decisão" [10]. Assim, apenas os co-legitimados para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade ou ação declaratória de constitucionalidade, e desde que essas tivessem o mesmo objeto daquela que se quer garantir a autoridade da decisão, estariam legitimados para propor reclamação perante o Colendo Supremo Tribunal Federal.
Recentemente, ao apreciar questão de ordem em agravo regimental interposto contra decisão do Min. Maurício Corrêa, que não conheceu de reclamação ajuizada pelo Município de Turmalina-SP [11] por falta de legitimidade ativa ad causam, a Excelsa Corte firmou o entendimento no sentido de que todos aqueles que forem atingidos por decisões contrárias ao entendimento firmado pelo STF no julgamento de mérito proferido em ação direta de inconstitucionalidade são considerados parte legítima para a propositura de reclamação.
Esse entendimento passou a ser adotado em reiteradas oportunidades [12], sendo, atualmente, pacífico. Portanto, os municípios têm legitimidade para propor reclamação constitucional sob o fundamento de inobservância de decisão declaratória de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, proferidas pelo Colendo Supremo Tribunal Federal através do controle concentrado de constitucionalidade.