Com o advento do protagonismo vigente no Judiciário, cujo efeito deletério não se pretende aqui discutir em toda a sua extensão e profundidade, muito tem se dialogado e amplas reflexões tem sido lançadas por expressiva gama de juristas, acerca dos fundamentos das decisões judiciais.
De plano faz-se mister asseverar que referido tema é hoje alvo de intensos conflitos no meio jurídico, a colocar em trincheiras opostas defensores de diversas linhas de pensamento. Por certo não se pretende que esse brevíssimo estudo, que aqui se projeta, possa ousar pacificar tão intrincado problema, mas apenas tem o objetivo de refletir um pouco mais acerca da temática.
O ponto de partida se dá a partir da assertiva de Müller ..... citado por Leonard Ziesemer Schmitz .... , no sentido de que “A norma jurídica é compreendida erroneamente como ordem, como juízo hipotético, como vontade materialmente vazia. Direito e realidade, norma e segmento normatizado da realidade aparecem justapostos ‘em si’ sem se relacionarem; um não carece do outro, ambos só se encontram no caminho da subsunção do suporte fático, de uma aplicação da prescrição”.
E nessa linha, também citado por Schmitz, assesta Gabriel Ivo (.....) “Norma jurídica não se confunde com meros textos normativos. Estes são apenas suportes físicos. Antes do contato do sujeito cognoscente não temos normas, e sim, meros enunciados linguísticos esparramados pelo papel. Enunciados prostrados em silêncio. Em estado de dicionário. Aguardando que alguém lhes de sentido”
Para Müller, fica claro que a construção do sentido não se faz a partir da vontade do legislador, nem a pretensa ‘vontade da norma’, nem mesmo única e exclusivamente a vontade do julgador que dirá o conteúdo do direito, mas a junção desses elementos em constante relação com a realidade.
Assim, o direito e a realidade não aparecem mais como categorias opostas e abstratas. Imaginar esse tipo de dissociação contraria, por certo, o próprio sentido, porquanto, tais fenômenos seriam assim ocorrências estanques, dissociadas e que absurdamente não se correlacionariam.
E Schmitz .....ao analisar a chamada terceira premissa atinente relacionada ao fato da decisão judicial não ser um ato de silogismo-subsunção, de modo a afastar essa dicotomia de que o juiz na formação da sentença deve estabelecer duas premissas, uma relacionada aos fatos e outra relativa ao direito, a conferir a partir dai uma mecanicidade no ato de decidir, logrou apontar as inconsistências dessa dissociação.
Nota-se, por essa linha, que é usualmente admitida como ponto praticamente incontroverso pela doutrina jurídica, que primeiro se interpretaria a lei para que em um segundo momento possa ser aplicado ao caso concreto. Schmitz alerta, com clareza que “é um equívoco imaginar que o intérprete em primeiro lugar vá aos textos legais para só então, com essa informação em mente (sobre determinados dispositivos aplicáveis), debruçar-se sobre os fatos do caso. Não é dessa forma que a compreensão acontece e já desde o início do século XX se sabe não ser esse o processo de aplicação do direito.
Não obstante, a doutrina tenta enxergar como momentos separados a compreensão do texto e dos fatos. Veja-se o seguinte trecho: “É impossível estabelecer os fatos do caso sem levar em consideração a informação da norma. Essa informação molda estruturalmente tudo o que diz respeito a um fato jurídico no caso A informação da norma como um pré-conhecimento do juiz é como uma lente através da qual o tomador de decisões necessariamente deve deliberar as provas”.
E quando a doutrina logra estabelecer estágios de aferição do litígio apresentado a análise, acaba por criar – de forma perigosa, a possibilidade da aplicação invertida do silogismo, ou seja, onde seria possível a análise do caso concreto (situação factual) para em seguida aplicar a lei. Admitir isso seria, portanto, grave risco a segurança jurídica e a certeza do direito e seguramente exagerada invasão da moral no âmbito do direito.
Portanto, etapas analíticas não existem (ou não devem existir), pois admitir tal ordem implicaria em acentuado risco para própria aplicação do direito. O juiz no ato de julgar não vai aos fatos depois de ter interpretado a lei. O ato se dá de fora concomitante, de modo a adequar a solução jurídica ao caso.
Qualquer dissociação do ato de julgar permite que fatores estranhos ou pesos elevados sejam aplicados. Figuras espúrias como o ativismo acabariam ganhando campo quando espaços são abertos, no momento da fundamentação das decisões jurídicas, pelo simples fato de que se enxerga dissociação onde só existe unidade.
E a gravidade de tal ocorrência é facilmente detectada no atual momento pelo qual passa o país, com o Judiciário assumindo papel além de seu desenho. Streck, em sua recente obra Hermenêutica e Jurisdição, quando inquerido sobre ter a juiz uma espécie de missão, algo que inclui uma ideia sobrenatural de escolha ou de unção, assim se posiciona:
“...Eu vi outro dia um menino de 25 anos que foi primeiro lugar no concurso promovido por um dos TRFs. Ele assumiu em Brasília, e ele diz assim “eu agora estou angustiado, sem dormir à noite, pois como eu lidarei com esse ato, com esse ato isolado solitário de decisão?”. Pergunto: que ato solitário de decisão? Quem ele pensa que é nesse sentido? Falo isso no bom sentido, ou seja, quem ele pensa que é no mundo da intersubjetividade. Nós tivemos duas guerras mundiais, nós lutamos, nós temos direitos de terceira e quarta dimensão. Os sentidos são compartilhados, e alguém ainda acha que os sentidos são privados? Wittgenstein deve ser lido e relido. Com ele aprendemos que não há linguagem privada. A segunda fase de Wittgenstein é uma blindagem antissolipsista...”
Destarte, quando a fundamentação das decisões judiciais não segue a sua dinâmica que lhe é inerente, exsurge assim, não apenas no plano teórico, como aponta Schmitz, mas em termos concretos, como alerta Streck, riscos de que o fim a que se destina o direito não seja atendido e que a missão de pacificar as relações seja perdida em meios a argumentação estéril, solipsismo acentuado e ativismo gerador de iniquidades.
E todos esses efeitos indesejáveis, como tudo que não está em harmonia com a ordem constitucional vigente, tem o efeito de transformar a sociedade em um ambiente inóspito, onde desejos, veleidades, egos e vaidades são colocados em primeiro plano em detrimento do interesse social e da obrigação de entregar a tutela jurisdicional mais adequada.
28/02/19