A segurança nacional e as terras indígenas

01/03/2019 às 11:44
Leia nesta página:

O artigo discute recente caso concreto em que se põe os direitos do indigenato e a questão da segurança nacional, dentro de um conflito de princípios.

A SEGURANÇA NACIONAL E AS TERRAS INDÍGENAS

Rogério Tadeu Romano

I – A PET 3388

Em março de 2009, ao concluir o julgamento da PET 3388, a Corte considerou válidos a portaria e o decreto presidencial que homologaram a demarcação da reserva, e listou uma série de condições para a execução da decisão, que seria supervisionada pelo Supremo com apoio do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). Contra a decisão foram apresentados sete embargos de declaração, pedindo esclarecimentos e até mesmo mudanças na decisão.

A Procuradoria Geral da República (PGR) questionou, inicialmente, a validade das condicionantes incorporadas ao acórdão da PET 3388. Para a PGR, não caberia ao STF traçar parâmetros abstratos de conduta, quando esses temas não foram sequer objeto de discussão no processo, e não permitiram direito ao contraditório. Para a Procuradoria, a Corte extrapolou os limites da causa.

O relator do caso, ministro Roberto Barroso, concordou que a incorporação das salvaguardas foi uma decisão atípica, mas observou que, sem elas, seria impraticável pôr fim ao conflito existente na região. As salvaguardas foram uma espécie de regime jurídico a ser seguido para a execução do decidido, explicando o sistema constitucional incidente na matéria.

Ao negar provimento aos embargos da PGR neste ponto, o relator foi acompanhado pela maioria dos ministros presentes à sessão, à exceção dos ministros Marco Aurélio e Joaquim Barbosa, para quem o STF, ao criar as condicionantes, teria extrapolado o objeto da causa, traçando parâmetros abstratos e alheios ao que fora proposto na ação original. Em todo o julgamento, estas foram as únicas divergências quanto ao conteúdo material do julgado.

A decisão do STF sobre a demarcação da Raposa Serra do Sol não vincula juízes e tribunais quando do exame de outros processos relativos a terras indígenas diversas, explicou o ministro Barroso ao analisar outro ponto dos embargos da PGR. A decisão vale apenas para a reserva em questão. Nesse sentido, Barroso lembrou que a Corte já negou reclamações em outros casos, que alegavam desrespeito à decisão tomada nesta Petição.

Contudo, o ministro ressaltou que a ausência de vinculação formal não impede que a jurisprudência construída pelo STF, estabelecendo diretrizes, possa ser seguida pelas demais instâncias. Isso porque, embora não possua efeitos vinculantes, “a decisão ostenta a força intelectual e persuasiva da mais alta Corte do País”, arrematou Barroso.

A PGR também sustentou que a decisão do STF teria dado primazia aos interesses da União, em detrimento dos direitos indígenas. Para o ministro Barroso, contudo, não existiu a alegada primazia, a quem quer que seja. O STF apenas definiu como deveriam ser conciliadas as forças antagônicas presentes no litígio. De acordo com o ministro, não existe direito absoluto: os direitos dos índios são tão importantes quanto o direito à proteção ambiental ou à defesa nacional.
Outro ponto levantado pela PGR dizia respeito à necessidade de edição de lei complementar para a utilização das terras indígenas para fins econômicos, militares ou para a manutenção de serviços públicos. O relator explicou que, se não fosse regulamentado esse ponto, por meio de uma das salvaguardas constantes da decisão do STF, haveria óbice às ações para prestação de serviços públicos – como educação ou saúde, por exemplo –, e ações relativas à soberania e defesa nacional. Esse impedimento, segundo ele, não seria compatível com o conjunto da Constituição.

A partir do dia 27 de julho de 2017, a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a terra indígena Raposa Serra do Sol deve ser seguida em todos os processos de demarcação de terra indígena pelo governo federal. O presidente Michel Temer aprovou parecer da Advocacia-Geral da União que manda a União seguir a decisão do STF.

Por mais que a demarcação seja uma competência do presidente da República, a revisão dela não pode ser feita de forma unilateral porque já houve uma discussão no Judiciário.
As terras indígenas são direitos originários. Eles antecedem a todos os outros direitos e reivindicações, isso é o que a Constituição determinou. O direito (à terra) está lá, precisa ser apenas demarcado. Reconhecer um direito que já existia antes. No momento em que essa demarcação é feita, que ela é questionada judicialmente, que o Supremo confirma a validade da demarcação, isso se transforma em um direito que não pode ser alterado. Não pode haver um novo decreto. Seria um decreto que desafia a Constituição e uma decisão já transitada em julgado. 

A coisa julgada é garantia constitucional de forma que traz a qualidade à decisão judicial de sua imutabilidade. 

Portanto, as “salvaguardas institucionais” estabelecidas pelo Supremo para o caso da Raposa Serra do Sol valem para todos os processos de demarcação de terras indígenas. Entre as salvaguardas estão a definição de que só são terras indígenas as ocupadas por índios na data da promulgação da Constituição, a proibição de expandir as áreas demarcadas e a determinação de que os direitos dos povos indígenas não se sobrepõem a questões de segurança nacional.
Na prática, o parecer tem força de lei. O texto, assinado pelo consultor-geral da União substituto André Rufino do Vale, vincula toda a administração pública federal e transforma a decisão do Supremo, tomada num processo subjetivo, em norma de seguimento obrigatório.

O parecer faz parte do grupo de manifestações da AGU descritas no artigo 40 da Lei Complementar 73. O dispositivo diz que, depois de aprovados pelo presidente da República, os órgãos e entidades da administração pública federal “ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento”. É uma das técnicas legislativas do Executivo Federal, ao lado da medida provisória.

Esse tipo de parecer ganhou especial importância depois que o Plenário do STF decidiu que apenas as ações de controle concentrado de constitucionalidade e súmulas vinculantes têm efeitos para além das partes em litígio. As demais aplicam-se apenas aos casos concretos. Nos casos de declaração de inconstitucionalidade de lei em ações de controle concreto, como os recursos com repercussão geral, o Supremo deve oficiar o Senado para que decida se extirpa ou não a lei do ordenamento jurídico.

Em outubro de 2013, Plenário do STF seguiu voto de Barroso e estabeleceu que decisão no caso da Raposa Serra do Sol só se aplica àquele processo.

O parecer sobre a Raposa Serra do Sol se sobrepõe a uma portaria da AGU, de 2012, que mandava os órgãos de assessoria jurídica da União obedecer às diretrizes do Supremo Tribunal Federal. É que em outubro de 2013 a corte decidiu, em embargos de declaração, que, embora a decisão sobre a Raposa Serra do Sol tenha sido um precedente importante, não tem caráter vinculante. Portanto, só se aplica àquele caso específico, e não a todos os casos sobre o mesmo tempo, conforme o voto do ministro Luís Roberto Barroso, seguido à unanimidade.

Cresce o entendimento de que mesmo que a área seja restringida, as reservas continuarão a existir e nelas poderão surgir 226 "nações indígenas", com enormes prejuízos à Soberania Nacional, caso o Congresso aprove, na forma como está prevista na EC 45/2004 (o que já foi agregado à CF/88, em seus §§ 3° e 4°, do artigo 5°), a lesiva e anti-patriótica Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas.

Essa decisão foi tomada no julgamento da reserva indígena Raposa Serra do Sol. O relator, ministro Ayres Brito, hoje aposentado do STF, definiu condições para que a reserva fosse mantida. Mas, preocupado com os interesses nacionais, deixou claro no acórdão que não existem povos indígenas, e sim etnias. Também não existe “território indígena”, uma definição política que não deve ser usada para o usufruto dos indígenas. Ayres Brito insiste também em que não existe “nação indígena”. “Nação, só a brasileira.”

Roraima depende da energia que vem da Venezuela para seu abastecimento, e sofre constantemente de apagões. Quando acontecem, as termelétricas são acionadas, o que transforma a energia de Roraima na mais cara para os brasileiros. Só este ano está previsto um gasto de R$ 600 milhões, que é repartido pelos consumidores de todo o país. Os índios que vivem naquela região consideram que o território em que passará parte do linhão é sagrado, e não se chega a um acordo sobre o tema há oito anos.

II – O INDIGETATO E A SEGURANÇA NACIONAL

Segundo o Serviço de Inteligência, a segurança nacional é uma atribuição fundamental do Estado moderno e sua prerrogativa exclusiva. O conceito é inerente à noção de Estado nacional desde a sua origem, no século XVII. Consiste em assegurar, em todos os lugares, a todo momento e em todas as circunstâncias, a integridade do território, a proteção da população e a preservação dos interesses nacionais contra todo tipo de ameaça e agressão externa ou interna.

O indigenato é tradicional instituição jurídica que deita raízes nos velhos tempos da Colônia quando o Alvará de 1º de abril de 1680, confirmado pela Lei de 6 de junho de 1755, firmara o princípio de que, às terras outorgadas a particulares seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas.

Terras tradicionalmente ocupadas não revela uma relação temporal. Se formos ao Alvará de 1º de abril de 1680 que reconhecia aos índios as terras onde estão tal qual as terras que ocupavam no sertão, ver-se-á que a expressão ocupadas tradicionalmente não significa ocupação imemorial. Não se trata de posse ou de prescrição imemorial. Não quer dizer terras imemorialmente ocupadas, ou seja, terras que eles estariam ocupando desde épocas remotas que já se perderam na memória. Como bem alertou José Afonso da Silva(Curso de Direito Constitucional Positivo, 5º edição, pág. 716) o tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os ´índios ocuparem e utilizarem as terra e ao modo tradicional de produção, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra.

O indigenato não se confunde com a ocupação, portanto, com a posse civil. O indigenato é fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. Essa a lição obtida de João Mendes Júnior é observada por José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, RT, 5ª edição, pág. 717). Esse desenvolvimento é feito sobre a tese de que as terras de índios, congenitamente apropriadas, não podem ser consideradas nem como res de ninguém, nem como res derelictae. Não é uma simples posse, mas um reconhecido direito originário e preliminarmente destinado ao indígena.

Sabe-se que o artigo 231 da Constituição Federal reconhece o direito ao usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras que tradicionalmente ocupam. Tal usufruto é intransferível como lembra Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1, de 1969, t.IV/456 e 457).

Tal a tradição do direito brasileiro, exposto na Lei nº 601/1850, no Decreto Regulamentar nº 1318, de 1854, que fez respeitar o direito originário dos índios às terras de ocupação tradicional.
Não está em jogo, no tema da posse indígena, como revelou o Ministro Victor Nunes Leal (voto proferido nos autos do recurso extraordinário nº 44.585 – MT, julgado a 28.6.61), um conceito de posse, nem de domínio, no sentido civilista dos vocábulos. Trata-se de um habitat de um povo. Assim, a Constituição Federal determina que num verdadeiro parque indígena, com todas as suas características naturais primitivas, possam permanecer os índios vivendo naquele território.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

A posse indígena distingue-se da posse civil. Aquela é mais ampla, mais flexível como conceituado no artigo 23 da Lei nº 6001, de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio).
Nas terras indígenas, a propriedade é da União (Constituição Federal, artigo 20, inciso XI). Dos índios é o usufruto exclusivo abrangendo o aproveitamento das riquezas do solo, dos rios e lagos neles existentes. Tais terras são inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

Mesmo que houver prova do fato do particular portar título de domínio, devidamente registrado em Cartório de Imóveis, prevalece o comando constitucional que declara nulo e sem nenhum efeito jurídico atos que tenham por objetivo o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas por silvícolas.

IIII – O APARENTE CONFLITO DE PRINCIPIOS

Estamos diante de um aparente conflito de princípios e não de regras.

Bem lembrou A. C. de F. Lima(A teoria dos princípios de Robert Alexy):

“Regras e princípios possuem, na visão de Alexy, um diferente caráter prima facie. Enquanto um princípio determina que algo seja realizado nas máximas medidas possíveis, levando em conta as possibilidades fáticas e jurídicas, uma regra válida impõe sua determinação de maneira exata, a não ser que haja uma cláusula de exceção. Os conflitos de princípios, por não serem resolvidos no âmbito da validade, exigem a observação das razões de um e outro princípio, para saber qual será afastado.

O caráter prima facie dos princípios é diferente, pois suas determinações só são definitivas inicialmente, antes que haja o conflito. Configurado o conflito, a resposta sobre sua realização ou não só sairá após a ponderação.

Alexy diferencia seu modelo daquele apresentado por Dworkin, pois a descrição das regras pelo modo de aplicação tudo ou nada não é suficiente. A este caráter Alexy acrescentou a possibilidade de inserção de uma cláusula de exceção. Acontece que as cláusulas de exceção, diferentemente do que sustenta Dworkin, não são teoricamente enumeráveis..

Se um princípio é afastado quando um princípio oposto tem peso maior do que ele, uma regra não é afastada apenas porque o princípio que a sustenta tem peso menor que o princípio oposto. Exige-se argumentação suficiente para justificar também o afastamento dos princípios que exigem o cumprimento das regras. Assim, o caráter prima facie de uma regra é maior quando é maior o peso dos princípios formais que determinam que as regras de um ordenamento devem ser cumpridas. Somente se não tivessem nenhum peso tais princípios formais, haveria equiparação entre o caráter prima facie dos princípios e das regras”.

Não se trata de revogação, pois estamos diante de princípios, o da segurança nacional e o do indigenato. Há uma preponderância, para o caso da segurança nacional, em prol da sociedade, diante do caso que se põe.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos