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Aspectos destacados acerca da comprovação de três anos de atividade jurídica como requisito para o ingresso na magistratura

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06/09/2005 às 00:00
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III – DA INTERPRETAÇÃO AMPLA QUE SE DEVE ATRIBUIR À EXPRESSÃO ATIVIDADE JURÍDICA PARA O EFEITO DE LEVAR EM CONSIDERAÇÃO EMPREENDIMENTOS REALIZADOS ANTERIORMENTE À OBTENÇÃO DO TÍTULO DE BACHAREL EM DIREITO

          25. Como já afirmado, a Emenda Constitucional nº 45 atribuiu nova redação ao inciso I do artigo 93 da Constituição Federal, condicionando o ingresso na magistratura a, no mínimo, três anos de atividade jurídica. Para não pairar dúvidas, transcreve-se novamente o inteiro teor do dispositivo:

          "Artigo 93 – Lei Complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observando os seguintes princípios:

          ..........

          I – ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica e obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação." (grifo acrescido)

          26. Como largamente demonstrado, o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, não é auto-aplicável, quer por força do seu próprio caput, cujo teor exige expressamente Lei Complementar, quer porque o dispositivo não é bastante em si, não reúne densidade normativa suficiente para ser aplicado sem a complementação legislativa que lhe esclareça o sentido e o alcance.

          27. Outrossim, como também fora largamente demonstrado, os tribunais pátrios não são competentes para regulamentar, via ato administrativo, dispositivos constitucionais sem a imprescindível mediação legislativa. Quem agrega competência e legitimidade para disciplinar o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal é o Congresso Nacional, por meio da Lei Complementar referida no seu caput.

          28. Ad argumentantum tantum, ainda que, em equívoco, se considere o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal auto-aplicável, salta aos olhos que aos interessados na carreira da magistratura é permitido computar para efeito de comprovação do interregno mínimo de atividade jurídica os empreendimentos e as realizações jurídicas desenvolvidas por eles antes da obtenção do bacharelado em Direito.

          O inciso I do artigo 93 da Constituição Federal estabelece duas restrições aos interessados na magistratura: a primeira é que eles sejam bacharéis em Direito; a segunda é que eles comprovem, no mínimo, três anos de atividade jurídica. Uma condição não depende da outra. Não há nada no texto constitucional que autorize afirmar com objetividade que as atividades jurídicas devem ser desenvolvidas somente após a obtenção do título.

          O constitucionalista ANDRÉ RAMOS TAVARES já se pronunciou sobre esse tópico, tendo assinalado o seguinte:

          "A redação do dispositivo pode, contudo, gerar controvérsias interpretativas. Exige-se ‘do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica’ (art. 93, I, da CB). Uma leitura menos atenta poderia levar à conclusão apressada de que se exige o mínimo três anos de atividade jurídica comprovada após o bacharelado para poder ingressar na carreira da magistratura.

          Entretanto, atende-se à circunstância de que o dispositivo está a exigir dois requisitos distintos: (i) contar com três anos de atividade reconhecida como jurídica; e (ii) possuir diploma de bacharel. Ambos os requisitos são exigíveis no momento do ingresso da carreira concomitantemente. Mas não há nada que exija a precedência do item (ii) em relação ao (i), ou a concomitância destes no tempo, ou seja, não está dito que é necessário possuir o diploma de bacharel para que se inicie a contagem do prazo mínimo de três anos de experiência.

          Como ficou dito, são requisitos concomitantes no ato que determine o ingresso na carreira, mas independentes entre si (qualquer deles pode realizar-se sem a realização do outro requisito, que se agregará supervenientemente)." (Reforma do Judiciário no Brasil Pós-88. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 68)

          29. Em caso contrário, pelo prazer de argumentar, admitindo-se a tese de que a atividade jurídica deve ser computada somente após a obtenção do bacharelado, o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, seria absolutamente desprovido de razoabilidade, importando em restrição aleatória e despropositada.

          Acontece que, ao exigir atividade jurídica, o Congresso Nacional não criou discrimine baseado na idade dos interessados, o que seria algo aleatório. O discrimine estatuído no texto constitucional adotou como referência a experiência do interessado no universo jurídico, por efeito do que requer a comprovação de atividade jurídica. Quer-se, a todas as luzes, aferir a experiência, não meramente a idade.

          E, há de se convir, a experiência no universo jurídico não se inicia com a obtenção do título de bacharel em Direito. Antes mesmo do título, o interessado na carreira da magistratura pode agregar experiências jurídicas, que, no final das contas, importam na atividade jurídica demandada no inciso I do artigo 93 da Constituição Federal.

          30. De todo modo, em decorrência do preceito isonômico e da norma estatuída no inciso I do artigo 37 da Constituição Federal, todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país tem o direito de acesso aos cargos públicos, tudo de acordo com os requisitos prescritos em lei. Portanto, há uma regra e uma exceção: a regra é que todos tenham acesso aos cargos públicos; a exceção diz respeito às restrições prescritas em lei.

          Sob essa perspectiva, deve-se trazer à colação princípio de hermenêutica segundo o qual a regra deve ser interpretada de modo ampliativo; e a exceção deve ser interpretada como tal, isto é, de modo restritivo. Nos dizeres de CARLOS MAXIMILIANO, "quando as palavras forem suscetíveis de duas interpretações, uma estrita, outra ampla, adotar-se-á aquela que for mais consentânea com o fim transparente da norma positiva." (Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 314)

          Insista-se que a regra é que todos tenham amplo acesso aos cargos públicos, em obséquio ao preceito isonômico e ao inciso I do artigo 37 da Constituição Federal. Então, se determinado enunciado normativo admite duas interpretações, uma que restringe o acesso ao cargo, outra que não restringe, deve-se adotar a segunda interpretação, que é mais compatível com o princípio da isonomia, um dos baluartes da Carta Magna.

          31. O inciso I do artigo 93 da Constituição Federal exige do bacharel em Direito que pretende ingressar na magistratura, no mínimo, três anos de atividade jurídica. Pode-se até admitir que há dúvida a respeito da possibilidade de computar a atividade jurídica anterior à obtenção do título de bacharel em Direito ou não.

          Se assim for, pode-se reconhecer que existem duas possibilidades de interpretação. Uma que amplia o acesso dos interessados à magistratura, permitindo a eles computar as suas realizações jurídicas anteriores à obtenção do título de bacharel para o efeito de comprovação do tempo mínimo de atividade jurídica; outra que restringe o acesso dos interessados à magistratura, pois somente admite as atividades posteriores à obtenção do título de bacharel para o efeito de comprovação do tempo mínimo de atividade jurídica.

          32. Partindo-se do postulado de hermenêutica de que a regra deve ser interpretada de modo amplo e do pressuposto de que a regra é o direito de todos à acessibilidade aos cargos públicos, é imperativo que se interprete o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal no sentido de que é permitido aos interessados na carreira da magistratura comprovarem o interregno mínimo exigido de atividade jurídica através de empreendimentos e realizações qualificadas como jurídicas que sejam anteriores à data da obtenção do título de bacharel em Direito.

          Trata-se de levar a cabo raciocínio lógico-dedutivo, de fundo sistêmico e tópico, tomando os princípios da isonomia e o da ampla acessibilidade aos cargos públicos como referência para desnudar o sentido e o alcance da expressão atividade jurídica tal qual disposta no inciso I do artigo 93 da Constituição Federal. Tomando na devida conta os referidos princípios, conclui-se facilmente que se deve atribuir à expressão atividade jurídica percepção ampla, permitindo, insista-se à exaustão, comprová-la através de empreendimentos e realizações jurídicas anteriores à obtenção do título de bacharel em Direito.

          33. A propósito, até o advento da Emenda Constitucional nº 45 os tribunais pátrios discutiram com profundidade conceito parecido, de prática forense. Ocorre que, até então, se costumava exigir dos candidatos certo período de prática forense e, por via de conseqüência, as discussões aforaram em relação ao alcance do termo, sobremodo se os interessados poderiam comprovar tempo de prática forense antes da obtenção do título de bacharel em Direito ou não.

          Várias decisões foram prolatadas sobre a elasticidade do termo prática forense, especialmente no âmbito do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, que, com estribo no princípio da ampla acessibilidade aos cargos públicos, enfeixado no inciso I do artigo 37 da Constituição Federal, sempre admitiu a comprovação do tempo requerido através de atividades realizadas à época do curso de graduação.

          Confira-se elucidativa ementa de acórdão relatado pelo MINISTRO HAMILTON BUENO DE CARVALHO:

          "Mandado de segurança. Concurso Público. Advocacia-Geral da União. Prática Forense. LC 73/93. Não comprovação no momento da inscrição. Ordem denegada.

          1. É legítima a exigência de prática forense para o ingresso nas carreiras da Advocacia-Geral da União, mas o seu conceito deve ser interpretado de forma ampla, de modo a compreender não apenas o exercício da advocacia e de cargo no Ministério Público, Magistratura ou outro qualquer privativo de bacharel de direito, como também as atividades desenvolvidas perante os Tribunais, os Juízos de primeira instância e até estágios nas faculdades de Direito, doadoras de experiência jurídica." (grifo acrescido. STJ, MS nº 6742/DF)

          Em complemento, leia-se trecho de voto prolatado pelo MINISTRO VICENTE LEAL:

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          "Tenho que o edital em apreço adotou conceito restritivo que não se compadece com o princípio maior da acessibilidade aos cargos públicos (CF, art. 37, I), nem com o conteúdo literal da norma, pois prática forense não significa exercício profissional de advocacia, nem atuação funcional como membro do Ministério Público ou da Magistratura ou em cargo privativo de Bacharel em Direito.

          O conceito de prática forense deve ser concebido de forma mais abrangente, compreendendo outras atividades vinculadas ao manuseio de processos no foro, seja como estudante de direito cumprido estágio regular supervisionado, seja como funcionário prestando serviço junto às Secretarias de Varas ou Turmas ou a gabinetes de magistrados." (grifo acrescido. STJ. MS 6.200/DF)

          34. O conceito de prática forense é muito próximo do de atividade jurídica. Ambos se relacionam com a experiência jurídica dos candidatos a concurso público. Semanticamente prática forense é até mais restritivo do que atividade jurídica. Desse modo, como a jurisprudência sempre conferiu elasticidade ao conceito de prática forense, não há motivos para não fazê-lo em relação à atividade jurídica, até porque, reafirma-se, por trás de ambas as expressões estão os mesmos princípios, da isonomia e da ampla acessibilidade aos cargos públicos. Se as expressões são análogas, se os princípios a serem levados em consideração são os mesmos, a interpretação não pode ser discrepante. Não há motivos para que, de cambulhada, se passe a adotar interpretação restritiva em torno do assunto. A mera transposição da expressão prática forense para atividade jurídica não legitima interpretação restritiva.


IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS

          35. Por tudo e em tudo, colaciona-se, em síntese e de forma objetiva, as seguintes considerações finais:

          Em primeiro lugar, o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, não é auto-aplicável. Como dito, o preceituado no referido inciso I do artigo 93 é dirigido ao Congresso Nacional, quem deve elaborar a Lei Complementar da Magistratura ou adequar a existente, disciplinando o assunto. Se não fosse por isso, o inciso I do artigo 93, mesmo que analisado isoladamente, não reúne densidade normativa suficiente, não é bastante em si mesmo, pelo que requer ser complementado pelo Legislativo, que deve esclarecer o seu sentido e alcance. Desse modo, como o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal não é auto-aplicável e como até agora ele não foi regulamentado por lei, a exigência de 3 (três) anos de atividade jurídica erigida nele cai por terra.

          Em segundo lugar, os tribunais não reúnem legitimidade para, através de mero ato administrativo, regulamentar de modo autônomo e direto, sem a imprescindível intermediação legislativa, o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal. Portanto, qualquer ato administrativo nesse sentido é inconstitucional, pois extravasa os lindes da competência regulamentar, em afronta aberta ao princípio da legalidade, estampado no inciso II do artigo 5º, no caput e nos incisos I e II do artigo 37, todos os dispositivos da Constituição Federal.

Em terceiro lugar, admitindo-se a hipótese de prevalecer entendimento segundo o qual o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal é auto-aplicável, muito embora manifestamente equivocado, é imperativo que os tribunais levem em consideração as atividades jurídicas realizadas pelos candidatos antes da obtenção do bacharelado, o que encontra respaldo no texto do inciso I do artigo 93 da Constituição Federal e nos princípios tópicos que devem iluminar a sua interpretação, mormente o da isonomia (caput do artigo 5º da Constituição Federal) e o da ampla acessibilidade aos cargos públicos (inciso I do artigo 37 da Constituição Federal).

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Sobre o autor
Joel de Menezes Niebuhr

advogado em Florianópolis (SC), doutor em Direito Administrativo pela PUC/SP, mestre em Direito pela UFSC, professor convidado de Direito Administrativo da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, da Escola do Ministério Público de Santa Catarina e de diversos cursos de especialização em Direito Administrativo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NIEBUHR, Joel Menezes. Aspectos destacados acerca da comprovação de três anos de atividade jurídica como requisito para o ingresso na magistratura. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 795, 6 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7253. Acesso em: 23 abr. 2024.

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