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A Advocacia-Geral da União como função essencial à Justiça

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Allan Carlos Moreira Magalhães
Luziânia Carla Pinheiro Braga
Luziânia Carla Pinheiro Braga
09/09/2005 às 00:00
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4 A Advocacia-Geral da União enquanto Função Essencial à Justiça

Conforme exaustivamente sustentado, a defesa da legalidade no Estado Democrático de Direito abrange inequívoco conteúdo constitucional, frutificando em Justiça. É imperioso, portanto, que se forneça às instituições responsáveis por tais deveres a independência e a autonomia para o desempenho isento de seus misteres.

O exercício de funções públicas demanda garantias específicas. In casu, voltando-se para o núcleo da presente discussão, observa-se que a Advocacia-Geral da União carece, em muito, de prerrogativas institucionais.

A atuação do Poder Público evoluiu consideravelmente em face das relações "indivíduo – Estado", tendo obtido aquele uma gama considerável de direitos assegurados constitucionalmente (direitos e garantias fundamentais), com direito de ação em relação aos arbítrios do Estado, que pode manifestar-se oprimindo os indivíduos descumprindo as normas que impôs a si próprio e àqueles.

O estabelecimento do campo de atuação do Advogado do Estado é fundamental para a compreensão da relação que deve ser travada entre este e o ente público, na pauta do interesse público. Não pode ser outro o entendimento, vez que a atuação do Advogado do Estado é essencial à justiça e à consecução do interesse público. Estamos diante do exercício constitucional de uma atividade de caráter indispensável.

A necessidade de prerrogativas é uma constatação óbvia. Uma das principais garantias é a da não interferência de nenhum dos "poderes" do Estado no exercício das funções institucionais do Advogado do Estado. Portanto, é necessário que a instituição tenha reconhecida a sua independência. Somente se pode falar em independência real, fornecendo-se uma autonomia administrativa e financeira.

A contrário senso, observa-se uma "quase total" subordinação da Advocacia-Geral da União ao poder executivo. A atividade dos advogados públicos integrantes da Advocacia Geral da União acaba por desviar-se da defesa do interesse público (interesse primário) para a defesa dos interesses de uma Administração (interesses secundários).

Sobre a Advocacia-Geral da União, o artigo 131 da CF/88 enuncia:

Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

A Advocacia-Geral da União atua no flanco judicial e extrajudicial, como também, na seara da consultoria e do assessoramento da Administração Federal.

No federalismo brasileiro, cada ente político (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) é dotados de autonomia de auto-organização, de autogoverno e de auto-administração. Em razão desta autonomia, a lei atribui à União, aos Estados, aos Municípios, ao Distrito Federal e aos Territórios, a capacidade normativa para disciplinar o exercício das funções que lhe são inerentes, respeitadas as competências constitucionais. Para exemplificar: cabe a cada uma das esferas administrativas legislar sobre o estatuto jurídico de seus servidores públicos.

A Lei Complementar nº 73/1993 - Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União - é comezinha em termos de prerrogativas para o múnus constitucional da advocacia pública federal, limitando-se a tratar quase que exclusivamente da sua estrutura organizacional (forma), atribuindo obrigações aos seus membros e estabelecendo uma franca interferência do poder executivo no desempenho de suas atividades.

Assim, os integrantes das carreiras efetivas da Advocacia Geral da União encontram-se submetidos, basicamente, aos ditames da Lei nº 8.112/90 (Estatuto dos Servidores Públicos Federais) e da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia). Essa mixórdia legislativa leva ao disparate de deixar o membro da Advocacia-Geral da União sem a consciência das prerrogativas que lhe assistem.

Ora, a atividade exercida pelos integrantes efetivos da Advocacia-Geral da União, por suas peculiaridades e relevância para a consecução do interesse público, não é condizente com a submissão a qualquer dos poderes da tripartição clássica. A interferência do poder executivo no exercício das atividades da Advocacia-Geral da União encontra-se expressa em vários artigos da referida Lei Complementar (vide os arts. 3º e 28, da Lei nº 73/93, por exemplo). Garantias básicas como inamovibilidade, independência funcional e inviolabilidade sequer são mencionadas. Verifica-se uma verticalização exacerbada na estrutura organizacional em relação ao Poder Executivo.

Não possui o Advogado do Estado legislação especial como a essencialidade da função pública que desempenha exige. Os seus direitos encontram-se estabelecidos na Lei nº 8.112/90 que trata do regime jurídico dos servidores públicos federais, o que se mostra insuficiente, vez que é uma lei geral e não atende aos reclamos da especificidade das atividades desempenhadas por esses profissionais.

O Estatuto da OAB (Lei nº 8.906/94) também não traz disposições específicas acerca das garantias da Advocacia de Estado. Esta lei trata da advocacia em geral (advocacia comum) que difere bastante daquela, principalmente pela disponibilidade que o titular possui do interesse acautelado pelo advogado comum.

Todas estas leis são insuficientes para regular a matéria atinente ao exercício da Advocacia de Estado no âmbito federal. No entanto, por serem normas gerais, são aplicadas aos membros da Advocacia-Geral da União. O problema que se coloca é justamente que a grande maioria das disposições normativas é no sentido de atribuir deveres e obrigações. Fica o Advogado do Estado submetido a, no mínimo, três estatutos legais, os quais não lhe asseguram direitos condizentes com os princípios norteadores da Advocacia de Estado: independência funcional, autonomia administrativa, inviolabilidade etc.

O interesse público reclama a modificação desta situação, não podendo o Advogado do Estado ser mero instrumento chancelador das atividades do Executivo que muitas vezes faz prevalecer os interesses de uma Administração em detrimento do interesse público. A Advocacia de Estado tem que receber tratamento equiparável à função essencial que exerce sob pena de prejuízos irreparáveis à coletividade.

Consigne-se que há um grupo de trabalho redigindo uma nova lei orgânica para a Advocacia-Geral da União. Contudo, nada se pode precisar acerca das garantias que serão abordadas no projeto de lei "em construção", sobretudo se considerarmos que a iniciativa dessa lei é do Poder Executivo, cujo mandatário tem a conveniência política do agir.

Na recente Emenda Constitucional nº 45/2004, concedeu-se a autonomia para as Defensorias Públicas estaduais. Vejamos:

Art. 134... . ..............................

§ 1º (antigo parágrafo único)... ............

§ 2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º. (NR) [01]

Por que não se tratou da Defensoria Pública da União? Ontologicamente, o que justificaria essa diferença constitucional de tratamento? Pior ainda: nada se falou sobre a Advocacia-Geral da União, sobre as Procuradorias dos Estados e sobre as Procuradorias dos Municípios.

O Ministério Público, bem o sabemos, goza de tal autonomia desde o texto primevo, em virtude das lutas encampadas na Constituinte de 1988 (cf. art. 127 e parágrafos).

Quando essa realidade fracionária cessará? Ficaremos a depender da "força política" dos membros da Advocacia-Geral da União, das Procuradorias dos Estados, das Procuradorias dos Municípios, da Defensoria Pública da União, para que novas emendas constitucionais aconteçam? Ou perceberemos que o tratamento casuístico da autonomia não pode perseverar por total falta de justificativa? Deve o Texto Constitucional, in casu, ficar retalhado, construindo um mosaico quebradiço das Funções Essenciais à Justiça?


5 Conclusões

Na consecução de seu múnus constitucional, a Advocacia-Geral da União assume o desafio de defender a execução das políticas públicas levadas a efeito pelo Poder Executivo federal, dentro do primados do Estado Democrático de Direito, notabilizando-se como mais um órgão essencial à consecução da Justiça – princípio fundante da República Federativa do Brasil (art.3º, inciso I, da CF/88). A Advocacia-Geral da União contribui para a viabilização das políticas públicas, sob os auspícios da constitucionalidade e legalidade, zelando pela concretização de um Estado Democrático, pautado na defesa do interesse da União, o qual não poderá estar apartado do interesse público. Para o desempenho eficiente de seus misteres constitucionais, a Advocacia-Geral da União há de ser inequivocamente reconhecida como órgão fora do espectro de subordinação do Poder Executivo.

As necessidades complexas da sociedade atual, com o desafio de instituir um Estado Democrático de Direito, pautado no reconhecimento da Ordem Constitucional e nos Direitos Fundamentais, trouxeram a necessidade de criação de novas instituições, inexistentes na concepção clássica de Estado. Nesse desiderato, exsurge a Advocacia-Geral da União como órgão integrante das Funções Essenciais à Justiça, consoante se observa de sua topografia constitucional (Título IV – DAS FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA), sendo forçoso reconhecer-lhe posição de independência e total ausência de subordinação administrativa com relação ao Poder Executivo federal.

Destaque-se, portanto, que a Advocacia-Geral da União representa os interesses da União, pessoa jurídica de direito público interno e externo, no âmbito dos poderes constitucionalmente estabelecidos, a saber: Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário. Não sem razão, o Constituinte inseriu o Ministério Público e a Advocacia-Geral da União no Capítulo IV, do Título IV da Constituição Federal, conferindo-lhes status de FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA, eximindo-as de qualquer vinculação e/ou subordinação ás funções constitucionalmente estabelecidas nos capítulos I (Poder Legislativo), II (Poder Executivo) e III (Poder Judiciário).

Desta feita, o Constituinte procurou estabelecer a independência de atuação e autonomia organizacional das funções essenciais ao Estado Democrático de Direito, com o escopo de possibilitar sua ação intimorata na defesa da sociedade (in casu, o Ministério Público), do interesse e patrimônio públicos (in casu, a Advocacia de Estado), dos direitos dos hipossuficientes (defensorias públicas), sem o risco de sofrer ingerências indevidas de qualquer um dos demais poderes constitucionalmente estabelecidos.

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O perfeito desempenho dos misteres constitucionais da Advocacia-Geral da União passa indeclinavelmente pelo reconhecimento de autonomia financeira e organizacional, da qual não poderá prescindir. Afirma-se com essa medida, a explicitação de uma anatomia e de um espírito afinado aos ideais institucionais constitucionalmente concebidos; a forma mais legítima de se organizar a Advocacia-Geral da União, distante da ingerência de poderes periféricos que desafiem a consecução do interesse público (primário).

A autonomia e independência necessárias às Funções Essenciais à Justiça vêm sendo lentamente reconhecidas, de maneira fracionária, sem uniformidade, com muitas pelejas. Enquanto tal conotação preponderar, fazendo a Advocacia de Estado um apêndice ("inflamado") do poder executivo, podemos afirmar que a matriz teleológica do princípio da separação (e harmonia) de funções no Estado Democrático de Direito brasileiro restará frustrado.


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Nota

01 Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 13 dez. 2004.

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Sobre os autores
Allan Carlos Moreira Magalhães

Mestrando em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas - UEA. Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília – UNB. Professor da Faculdade Martha Falcão - FMF. Advogado da União.

Luziânia Carla Pinheiro Braga

advogada da União, professora de Direito Administrativo da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), mestre em Direito (Ordem Jurídica Constitucional) pela UFC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, Allan Carlos Moreira ; BRAGA, Luziânia Carla Pinheiro. A Advocacia-Geral da União como função essencial à Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 798, 9 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7262. Acesso em: 26 abr. 2024.

Mais informações

Artigo publicado na "Revista de Direito e Política", volume IV, janeiro a março de 2005, pp. 29-42.

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