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A atual teoria geral dos contratos

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Sumário:1 [01] – A relação do direito dos contratos com outros ramos do direito e sua topologia no Direito Civil. 2 – Breve evolução histórica do direito dos contratos. 3 – Definição de contrato e seus elementos constitutivos: a relação jurídica obrigacional decorrente do contrato. 4 – Princípios do direito dos contratos. 5 – Relação entre contrato e responsabilidade civil, em especial: responsabilidade pré-contratual, responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual [02]. 6 – A interferência de terceiros na relação contratual. 7 – Formação dos contratos. 8 – Classificação dos contratos. 9 – Interpretação e integração dos contratos. 10 – Vícios redibitórios. 11 – Evicção. 12 – Extinção do contrato.


1 – A relação do direito dos contratos com outros ramos do direito e sua topologia no Direito Civil

            Inicialmente, precisamos localizar a teoria geral dos contratos na sistemática do Direito Civil e na sistemática do Direito Privado.

            No Direito Civil, a teoria geral dos contratos (e os contratos em espécie) faz (fazem) parte do Direito das Obrigações [03]. O que se chama de direito contratual é, na verdade, direito obrigacional. Não há, na topologia do Código Civil, tanto no de 1916 como no de 2002, um livro próprio para a teoria geral dos contratos, nem para os contratos em espécie. O que há, na Parte Especial, é o Livro das Obrigações (Livro I), o primeiro livro da Parte Especial. Este ramo do direito civil contém as normas sobre a teoria geral das obrigações, a teoria geral dos contratos, os contratos em espécie, os atos unilaterais e a responsabilidade civil. Pode-se entender, ainda, que, com a inclusão do tratamento dos títulos de crédito e do Direito de Empresa, estes também se encontram no Direito das Obrigações que, com o Código Civil de 2002 foi unificado (esta unificação é contestada por alguns).

            O direito dos contratos, portanto, trata de uma das fontes das obrigações: o contrato. (além do contrato, consideram-se fontes de obrigações os atos unilaterais e os atos ilícitos.)

            Além da relação de pertinência para com o Direito das Obrigações, há uma proximidade com a Parte Geral do Código Civil. Por influência padectista, sobretudo a partir do BGB, o Código Civil alemão, o texto do nosso Código Civil (tanto de 1916 como o de 2002) apresenta, no seu início, uma teoria geral, com conceitos básicos genéricos e altamente abstratos sobre os elementos da relação jurídica, quais sejam: as pessoas, os bens e os fatos. Na disciplina dos fatos jurídicos encontra-se a teoria geral do negócio jurídico, cuja maior expressão é o contrato.

            Desta forma, o estudo dos contratos se inicia já na Parte Geral do Código Civil, com a teoria geral do negócio jurídico (que, no Código Civil de 1916, recebia a denominação de ato jurídico).

            Relaciona-se o direito dos contratos também com o direito das coisas, pois podemos considerar que o contrato é instrumento essencial para a circulação de riquezas e transmissão da propriedade. (Embora a propriedade se transfira através de tradição ou de transcrição, estas são precedidas por contratos.)

            Mesmo com o Direito de Família o direito dos contratos tem relação, sobretudo se pensarmos nos pactos antenupciais e nos contratos de convivência. (Quanto ao casamento, sua natureza contratual é contestada, não sendo, inclusive, admitida por nós.)

            No direito das sucessões, embora o testamento não seja contrato, mas ato unilateral, importa o estudo dos contratos, por exemplo, para verificar doações inoficiosas, feitas pelo autor da herança, ultrapassando a legítima. Importa também lembrar a transferência das posições contratuais do "de cujus" para seus herdeiros, fazendo com que os créditos e débitos daquele componham a herança, salvo se as obrigações forem personalíssimas ou se o contrato previr como causa de extinção a morte de uma das partes (cessação).

            Quanto aos demais ramos do Direito Privado, é necessário fazer um paralelo entre o Direito Trabalho e a teoria geral dos contratos presente no Código Civil, e outra comparação com o Direito do Consumidor, sendo despiciendo, atualmente, analisar a teoria geral dos contratos com o Direito Comercial, diante da unificação do direito privado ou unificação das obrigações civis e comerciais no Código Civil de 2002.

            Fazendo-se uma grande generalização e voltando-se ao Direito Romano, podemos dizer que o Direito, naquela época, dividia-se em dois: o público e o privado, a chamada "summa divisio". Com o passar dos séculos, na Idade Moderna, destaca-se do Direito Civil (que coincidia com o próprio Direito Privado) o Direito Comercial, em atendimento à necessidade de se regulamentarem as práticas comerciais crescentes entre os negociantes da classe burguesa emergente. Há a separação do direito das obrigações em civis e comerciais.

            Outros séculos depois, já na Idade Contemporânea, no conturbado e riquíssimo século XX, assistimos ao surgimento de outros dois importantíssimos ramos do direito privado: o Direito do Trabalho e o Direito do Consumidor (também chamado de Direito das Relações de Consumo).

            Quanto ao Direito do Trabalho, seu surgimento causou a subtração, do âmbito da teoria geral dos contratos civis, de um tipo específico de contrato de prestação de serviços (chamado de locação de serviços), que passou a ser tratado como contrato de trabalho. Os princípios deste novo ramo do direito são tão diferentes dos que regem a teoria geral dos contratos, que sequer podemos afirmar a aplicação subsidiária deste àquele.

            Também no século XX, vimos nova subtração ser feita à teoria geral dos contratos do Código Civil, com o surgimento do Direito do Consumidor. Não é um novo contrato que surge, mas, sim, uma nova forma de reger contratos cujas fattispecie estão previstas no Código Civil. Uma nova principiologia surge, embora permita a aplicação subsidiária da teoria geral dos contratos civis (ou paritários).

            Ultrapassando a esfera do direito privado, é necessário, também, mencionar a relação entre o direito dos contratos e o direito público. Com o Direito Administrativo, a teoria geral dos contratos civis inspira a regulamentação dos contratos administrativos. Com o Direito Constitucional, principalmente a partir da Constituição Federal de 1988, revela-se a posição de subordinação do direito dos contratos frente ao texto constitucional.


2 – Breve evolução histórica do direito dos contratos

            A análise destas relações do direito dos contratos com outros ramos do direito nos leva a percorrer um interessante histórico do direito dos contratos, imprescindível para compreender o significado e conteúdo atuais da teoria geral dos contratos estudada no Direito Civil.

            Para encurtar nossa resposta, vamos voltar apenas 200 anos, remetendo nossa memória histórica ao ano de 1804, ano da publicação do famoso Code Napoléon, que aniversaria nesta época.

            Os acontecimentos históricos ocorridos previamente ao Código Civil francês deram causa a um dos maiores marcos da nossa teoria geral dos contratos.

            Dentre as causas deste marco, encontramos concepções políticas e questionamentos sobre a relação entre Estado e Sociedade. O paradigma liberal sobre a relação entre Sociedade e Estado justifica-se como reação ao paradigma absolutista, modelo de um Estado sem limites no direito, autor de abusivas intervenções no setor privado. Ao lado desse modelo, a estrutura de classes (nobreza, clero, plebe) fornecia os elementos para a violenta reação que foi a Revolução Francesa, ou Revolução Burguesa, ainda no final do século XVIII.

            É nesta transição entre o absolutismo e o liberalismo que se encontram as raízes de uma das mais fortes ideologias jurídicas do Direito Civil: o liberalismo econômico, o individualismo, o voluntarismo.

            A classe burguesa, classe econômica emergente, encontrava suas atividades negociais limitadas a institutos de origem feudal, com dificuldade para a livre circulação de riquezas e o livre acesso à aquisição de bens, além de outras questões políticas que, infelizmente, não podemos abordar nesta resposta.

            Para que esta classe expandisse suas atividades e, conseqüentemente, seu poder, era necessária uma nova forma de regramento das relações privadas.

            Os belos ideais da Revolução Francesa, principalmente a igualdade e a fraternidade [04], foram incorporados ao discurso jurídico e fundamentaram dois importantíssimos princípios da teoria clássica dos contratos: a igualdade formal das partes contratantes e a liberdade de contratar (incluindo aí a liberdade contratual).

            As reivindicações de que todos fossem iguais perante a lei e que todos fossem livres, atendiam às necessidades da burguesia no que tange ao acesso a qualquer forma de bens, inclusive aos que, historicamente, eram reservados à nobreza e ao clero.

            Naquele contexto, o discurso era de que se todos fossem iguais perante a lei e livres entre si e perante o Estado, poderiam estabelecer relações jurídicas contratuais livremente, e o que fosse pactuado seria justo. Na expressão francesa: "qui dit contractuel dit juste". A decorrência natural é o "pacta sunt servanda". Se o contratado era justo (justiça decorrente da liberdade e da igualdade das partes), o pacto deveria ter força obrigatória. Contratado desta forma, com base na autonomia da vontade, nem ao Estado era permitido intervir no conteúdo da relação contratual, salvo raras exceções de ordem pública e contrariedade aos bons costumes.

            Foi este discurso o cristalizado no Código Civil francês de 1804.

            São notórios os efeitos práticos da junção destes ingredientes. Com a liberdade de contratar e a igualdade formal, o contrato acabou, muitas vezes, sendo um instrumento de exploração do ser humano, com a chancela do direito.

            Para adiantarmos a resposta, vamos considerar que foram tantos abusos, que tanto liberalismo acabou gerando, também, uma reação. Aquele Estado mínimo liberal recebia demandas crescentes de intervenção nas relações privadas, com o objetivo de equilibrar as relações contratuais, estabelecer condições mínimas de igualdade entre as partes e proteger os que se obrigassem em condições de vulnerabilidade.

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            Surge, assim, o Estado Intervencionista, ou Estado do Bem-Estar Social, com funções de promoção impensáveis para o modelo liberal. Com a revolução industrial, a urbanização, a economia de massa e as guerras européias, a intervenção do Estado nas relações contratuais era inevitável.

            Esta intervenção pública nos contratos provocou forte reação dos civilistas clássicos, que denunciaram a publicização do direito civil, além da crise da autonomia da vontade e da crise do contrato.

            Foi com este intervencionismo que novos ramos do Direito se destacaram do Direito Civil, como o D. do Trabalho e o D. do consumidor. Além disso, leis esparsas foram surgindo para regulamentar contratos de fortes efeitos sociais, com [05] as leis do inquilinato.

            A descentralização do direito civil causou certo esvaziamento da teoria geral dos contratos, pois leis extravagantes traziam novas regras que excepcionavam o Direito Civil, formando-se micro-sistemas cujos fundamentos divergiam da doutrina liberal clássica.

            Deixando de lado vários outros acontecimentos, vamos à II Guerra Mundial para ressaltar outro momento histórico que também refletiu na teoria geral dos contratos. Foi aí que, por causa dos abusos e dos atentados contra a dignidade da pessoa humana, um novo farol acendeu-se para a teoria geral dos contratos. As constituições da época inseriram nos seus textos cláusulas gerais de proteção da dignidade da pessoa humana, com reflexo no direito dos contratos, falando-se de uma despatrimonialização e de uma repersonalização do Direito Civil. A preocupação era a valorização da pessoa humana, em sua dignidade existencial, devendo este aspecto preponderar sobre as questões de ordem patrimonial.

            No Brasil, a Constituição Federal de 1988 representou, ao mesmo tempo, o intervencionismo público, a "socialização", a "publicização", a "despatrimonialização" e a "repersonalização" do direito civil. Ou, com certa licença poética, a Constituição Federal de 1988 lançou as bases para a "civilização" do direito civil.


3 – Definição de contrato e seus elementos constitutivos: a relação jurídica obrigacional decorrente do contrato

            Feitas estas considerações iniciais, indispensáveis para uma compreensão atual do tema, passemos a uma análise conceitual dos contratos.

            Os contratos, pactos ou convenções têm diversas raízes etimológicas. De "conventio" apreendemos o sentido de "vir com". De "contratus" apreendemos a noção de contrair, unir. São, de forma genérica, os sentidos atuais de uma relação obrigacional que surge dos contratos.

            No Direito Romano (ou numa fase dele, pois o Direito Romano foi formado por fases diferentes entre si), havia o "pacto" e o "contractus". Através dos "pacta", o vínculo criava apenas obrigações naturais. As obrigações jurídicas decorriam do "contratus". Assim também o é no nosso direito atual: há convenções e pactos que não geram obrigações jurídicas. Estas decorrem dos contratos, que são vínculos que merecem proteção jurídica, por sua importância social e por estarem atendidos os requisitos legais que lhe conferem validade.

            Portanto, no nosso direito, os contratos são acordos feitos com base na vontade das partes e na autorização jurídica, capazes de criar, regular, modificar ou extinguir relações jurídicas de conteúdo patrimonial. Esta é a definição de contrato.

            Se os contratos merecem proteção jurídica é porque são válidos. Não basta existir o pacto, o consenso ou a convenção para que o direito reconheça eficácia jurídica. Além dos elementos de existência do acordo, estes elementos devem apresenta certos predicados para que estejamos diante de um contrato.

            Assim, não basta que estejam presentes as partes, o objeto e o consenso, como exteriorização da vontade das partes. É preciso que os sujeitos sejam capazes e legitimados; que o objeto seja lícito, possível, determinável e econômico; e que a forma de exteriorização das vontades seja a prescrita ou alguma não proibida. São os requisitos de validade de todo negócio jurídico (art. 104 e seguintes).

            Dizer que as partes sejam capazes significa exigir que elas não se enquadrem nas hipóteses previstas nos arts. 3o. e 4o. do CC2002. Esta é a capacidade genérica. A capacidade específica, ou legitimação (importando-se a expressão do direito processual civil) decorrer da ausência de impedimento específico de realizar certo contrato com certa pessoa. Como exemplo, João é maior, capaz, mas não pode doar uma casa para sua concubina, se for casado. Embora João tenha capacidade genérica para praticar atos da vida civil em geral, ele não pode realizar aquele contrato com aquela mulher.

            Quanto ao objeto do contrato, este deve, inicialmente, ser lícito. Os requisitos da licitude é amplo, não se restringindo à idéia de legalidade. Não basta não contraria a lei, não deve contrariar moral, ordem pública e bons costumes. O objeto do contrato deve ser também possível, física e juridicamente. Se a impossibilidade for absoluta e inicial, o contrato é nulo, embora a impossibilidade relativa inicial e a absoluta superveniente não afetem sua validade. O objeto do contrato deve também ser determinado ou, no mínimo, determinável, se indicado pelo gênero, quantidade e qualidade. As partes precisam saber a respeito do quê estão se obrigando. Admite-se, porém, a validade de contrato cujo objeto ainda não exista, desde que haja potencialidade de vir a existir, como nos contratos sobre coisa futura, na forma condicional ou aleatória. E, por fim, como o contrato regulamenta relações jurídicas patrimoniais, seu objeto deve ser um bem ou uma prestação patrimonial. (Fala-se também de idoneidade do objeto, ou seja, sua adequação ao contrato escolhido, sendo inidôneo, por exemplo, um bem consumível ser objeto de comodato.)

            Vale ressaltar, antes de passar à análise da forma, que conteúdo do contrato e objeto do contrato podem ser vistos de forma distinta. O conteúdo diz respeito aos direitos e obrigações objeto de regulamentação pelas partes (e/ou pela lei), ou objeto imediato. Como objeto mediato ou objeto propriamente dito, falamos dos bens e das prestações.

            Quanto à forma, esta é a maneira pela qual a vontade se exterioriza. O princípio é o da liberdade da forma, ou princípio do consensualismo, em oposição ao princípio romano do formalismo. Sendo a forma prescrita por lei, se esta não for obedecida, o contrato padece de nulidade. Não havendo forma prescrita, o contrato pode ser feito por qualquer forma lícita. Na antiga distinção, se a forma for "ad solemnitatem", ela é requisito de validade. Se a forma for "ad probationem", as partes podem optar por qualquer meio de exteriorização da vontade, devendo cuidar para garantir a prova de que o vínculo foi contraído.


4 – Princípios do direito dos contratos

            Feita a definição de contrato e tendo sido expostos seus elementos e requisitos de validade, passemos aos princípios do direito dos contratos.

            Segundo o princípio da relatividade, o contrato produz efeitos relativos, ou seja, apenas entre as partes que dele participaram. O "contrato faz lei entre as partes" e apenas entre as partes, não podendo atingir terceiros. Esse princípio é próprio do direito das obrigações (onde os contratos se inserem), em oposição aos direitos reais, que são oponíveis "erga omnes". Este princípio, contudo, encontra exceções e relativizações. Citemos duas exceções: a transmissão das obrigações (e créditos) pela sucessão e a estipulação em favor de terceiro. A relativização é fruto da função social dos contratos. Já escrevemos que as obrigações, desde que fungíveis e salvo estipulação em contrário, transferem-se aos herdeiros na abertura da sucessão. Quanto aos débitos, contudo, estes não obrigam os herdeiros no que ultrapassar as forças da herança.

            A estipulação em favor de terceiro vincula pessoa que não foi parte no momento da formação do contrato, mas apenas em seu benefício, ou seja, este terceiro pode adquirir vantagens, não obrigações. Este terceiro, a favor de quem se estipulou a obrigação, tem direito de exigir seu adimplemento. Exemplo desta estipulação em favor de terceiro é o seguro de vida, em que os efeitos ocorrem ultra-partes. Por outro lado, um terceiro não pode ser obrigado por contrato do qual não participou. Se alguém, ao contratar, promete fato de terceiro, este contrato não tem a eficácia de obrigar quem dele não participou. Se o terceiro não executar a promessa realizada por João num contrato com Maria, a responsabilidade é de João, não havendo nenhuma relação jurídica entre João e o terceiro ou entre Maria e o terceiro.

            Tanto a estipulação em favor de terceiro como a promessa de fato de terceiro estão disciplinadas na teoria geral dos contratos, nos artigos 436 e 438 a 440 do Código Civil.

            O princípio da relatividade dos contratos vem sendo relativizado, atualmente, pelo princípio da função social dos contratos. Enquanto que, segundo o princípio da relatividade, o contrato só produz efeitos entre as partes, o princípio da função social do contrato realça os efeitos que o contrato produz além da esfera jurídica das partes.

            O princípio da função social dos contratos, previsto no Código Civil de 2002 no art. 421, integra nova doutrina contratual, ou o novo direito dos contratos, marcando a superação do paradigma liberal clássico na teoria geral dos contratos. O princípio da função social dos contratos tem a mesma função que, no direito das coisas, tem a função social da propriedade. Quando se dá a passagem do paradigma liberal para o social (ou intervencionista), alguns institutos do direito privado, sobretudo a propriedade e o contrato, sofrem uma mudança no que se refere à sua relação com o contexto social. A propriedade deixa de ser vista como um direito que serve exclusivamente os interesses do titular e passa a ser considerada vinculada a certo contexto sócio-econômico. Do Código Civil napoleônico, onde a propriedade era o direito de usar, gozar e dispor da coisa da forma mais absoluta, passamos ao modelo alemão (e mexicano), no qual a propriedade obriga. Em tempos de Estado do Bem-Estar Social, a propriedade tem uma função que vai além da individual. Seu uso produz reflexos na sociedade. A titularidade do direito recebe proteção na medida em que o exercício do direito for útil à sociedade, não bastando atender aos interesses exclusivos do proprietário.

            O mesmo ocorre com os contratos. Na nossa sociedade atual, um contrato pode afetar um grupo de pessoas e toda uma cidade, ou até um país, com reflexos negativos na sociedade, o que se busca regulamentar, por exemplo, na esfera do Direito Econômico, para permitir a livre-concorrência. Sob este princípio, o contrato importa também para a sociedade, não apenas para as partes contratantes, e servirá como limite da atuação destas.

            Ausente do texto do Código Civil de 1916 (pois a inspiração na época era a liberal-individualista), muitos autores o inferem da Constituição Federal de 1988, seja do art. 1o, III - dignidade da pessoa humana, do art. 5o, XXIII – função social da propriedade, art. 182 e 186 - função social da propriedade urbana e rural e art. 170 – princípios da ordem econômica. Num levantamento de jurisprudência, encontramos julgados fundamentados na função social do contrato antes da publicação e da vigência do Código Civil de 2002, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

            Como estamos falando de "novos" princípios do Código Civil de 2002, passemos ao princípio da boa-fé, também chamado de princípio da probidade ou da eticidade dos contratos. É o princípio da boa-fé objetiva, art. 422.

            É necessário, de início, distinguir boa-fé subjetiva de boa-fé objetiva. A boa-fé subjetiva diz respeito a certo estado psicológico do sujeito, no qual desconhece vícios ou impedimentos de determinada situação jurídica na qual está inserido. A boa-fé subjetiva, prevista desde o Código de 1916, tem papel relevante, por exemplo, na posse e na fraude contra credores. Diz respeito à intenção do sujeito, ao conhecimento ou desconhecimento de certos detalhes da relação ou situação jurídica.

            A boa-fé objetiva, contudo, não se liga à subjetividade do agente ou da parte, mas a um padrão genérico de conduta, num determinado lugar e em certo momento. Recorrer à boa-fé objetiva não é fazer uma investigação psicológica para concluir se o possuidor sabia ou não que poderia estar com aquele bem, ou se o adquirente conhecia ou não a insolvência do alienante. Recorrer ao princípio da boa-fé objetiva é buscar, em certo contexto social, qual é o padrão de conduta do homem probo, correto, honesto, leal.

            O princípio da boa-fé objetiva determina que este padrão médio de probidade, de ética, seja o padrão de conduta a reger o comportamento dos contratantes entre si.

            Apontam-se três funções para o princípio da boa-fé, na esteira da doutrina de Judith Martins-Costa. O princípio da boa-fé objetiva é fonte de deveres laterais ou anexos. Como ressalta Fernando Noronha, a relação jurídica obrigacional é uma relação jurídica complexa, sistêmica. Há mais deveres do que os criados expressamente nas cláusulas do contrato. Além da execução da prestação, além da entrega do bem, há inúmeros outros deveres implícitos ao contrato, que decorrem do que legitimamente se espera que sejam as condutas das partes. São inúmeros os deveres que devem ser observados pelas partes, tanto nas tratativas iniciais, como na formação, execução e pós-execução do contrato, embora o art. 422 mencione apenas as fases de conclusão e execução do contrato. São exemplos de deveres laterais ou anexos: dever de não obstruir a consecução e o gozo da finalidade do contrato; dever de informar; dever de informar com clareza; dever de não criar falsas expectativas; dever de garantir a idoneidade do bem e/ou serviço; dever de segredo; dever de guarda etc.

            Utilizando exemplos, podemos afirmar que age contrariamente à boa-fé a empresa montadora/fabricante de automóveis que deixa de oferecer peças de reposição. Esse caso deu origem a discussões jurisprudenciais e doutrinárias no direito europeu. Também viola a boa-fé a parte que divulga segredos ou publica documentos a que teve conhecimento através da relação contratual. Ou podemos questionar se age conforme a boa-fé quem vende empresa e fundo de comércio e instala novo negócio do mesmo ramo ao lado do estabelecimento vendido. Também no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, encontramos julgados que se fundamentam no princípio da boa-fé objetiva antes da vigência do CC2002, como no caso da fabricante de molho de tomates que, anualmente, fornecia sementes de tomate aos agricultores e, posteriormente, adquiria toda a safra. Um ano a fabricante não comprou a safra. Em ação judicial, contestou afirmando que não havia contrato entre si e os agricultores.

            Outras funções do princípio da boa-fé: é limitadora da autonomia privada das partes contratantes e é regra de interpretação e de integração dos contratos. Podemos citar, além do art. 422, também os arts. 112 e 133 da Parte Geral do Código Civil.

            Passemos a outro princípio, o da força obrigatória dos contratos, ou princípio da obrigatoriedade. É revelado ela antiga expressão "pacta sunt servanda", de que já escrevemos na evolução histórica dos contratos.

            Ao lado do princípio da obrigatoriedade, devemos mencionar o princípio da intangibilidade dos contratos, segundo o qual o contrato, uma vez formado, não pode ser alterado unilateralmente.

            Tratemos de ambos os princípios sob o nome do primeiro, para analisarmos a teoria da imprevisão e a teoria da onerosidade excessiva, que o abrandam.

            A teoria da imprevisão não foi tratada no CC de 1916, como era de se esperar, dada sua inspiração liberal. Mas não é uma novidade trazida pelo art. 478 do CC2002, pois surgiu e se desenvolveu no Brasil a partir da jurisprudência. É farto o número de julgados, anteriores ao CC de 2002 que decidem como prevê o art. 478.

            Algumas críticas precisam ser feitas a este artigo 478. Comecemos pelo título dado à Seção IV – Da resolução por onerosidade excessiva. O mais apropriado seria substituir "onerosidade excessiva" por imprevisão. E substituir "resolução" por "revisão". Não é a simples onerosidade excessiva que permite ao juiz revisar – e, não sendo possível, resolver – o contrato. Precisamos somar a isso outras circunstâncias. Esta onerosidade excessiva deve decorrer de fato extraordinário e imprevisível (tomando como base a cautela normal). A simples onerosidade excessiva autoriza a revisão judicial de um contrato de consumo, mas, para haver intervenção judicial num contrato paritário, é preciso que haja a imprevisão. Este fato imprevisível e extraordinário, por modificar a base objetiva do contrato, permite sua revisão, pois desequilibra as prestações das partes contratantes. Neste ponto, o art. 478 merece outra crítica, pois a jurisprudência e a doutrina já tinham entendido que à onerosidade excessiva da obrigação de uma parte, não era necessário, obrigatoriamente, demonstrar o injusto enriquecimento por parte da outra.

            A teoria da onerosidade excessiva, pura e simples, se aplica nas relações de consumo, onde são nulas as cláusulas que criarem excessiva onerosidade para o consumidor, independentemente de esta onerosidade excessiva estar presente desde a formação do contrato ou de surgir supervenientemente.

            Cabe esclarecer, ainda, que a teoria da imprevisão se aplica aos contratos de execução continuada ou diferida, bilaterais. Decorre da cláusula "rebus sic stantibus", imanente a todos os contratos.

            Passemos para outro princípio, o da autonomia privada. Dele decorrem a liberdade de contratar e a liberdade contratual. A primeira diz respeito à liberdade de estipular contratos e a segunda, sobre a liberdade de determinar o conteúdo deste. Com a intervenção pública nas relações contratuais, chamada por alguns de dirigismo contratual público, questionou-se a crise da autonomia privada. Vale ressaltar que autonomia da vontade e autonomia privada não têm conteúdo idêntico. A autonomia da vontade era o princípio do voluntarismo, segundo o qual o fundamento e a força obrigatória dos contratos encontravam-se na livre vontade das partes. Com a mudança de foco para a autonomia privada, compreende-se que a lei é fundamento do contrato, a vontade conforme a lei gera o vínculo jurídico, não a vontade pura. Assim, a lei, a ordem pública, a moral e os bons costumes compõem a autonomia privada, determinam as fronteiras da liberdade contratual, como bem demonstrou Francisco Amaral.

            Há ainda outros princípios, como o do consensualismo, o da atipicidade, mas mudemos de assunto e avancemos na resposta.

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Sobre a autora
Roxana Cardoso Brasileiro Borges

doutora em Direito Civil pela PUC/SP, mestre em Instituições Jurídico-Políticas pela UFSC, coordenadora do Curso de Especialização em Direito Civil da UFBA, professora nos Cursos de Direito da UFBA, UCSal e FTC, advogada em Salvador (BA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. A atual teoria geral dos contratos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 811, 22 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7267. Acesso em: 29 mar. 2024.

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