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A segurança como princípio fundamental e seus reflexos no sistema punitivo

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10/09/2005 às 00:00
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Será analisado o novo "ideal constitucional de segurança" e seu reflexo na estruturação do sistema punitivo com base no exame de dois tipos ideais de sistemas punitivos que se estruturam a partir de dois valores: liberdade e segurança.

"Dirão que o déspota assegura aos súditos a tranqüilidade civil. Seja, mas qual a vantagem para eles, se as guerras em que são lançados pela ambição do déspota, a sua insaciável avidez, as vexações impostas pelo seu ministério os arruínam mais do que as próprias dissensões? Que ganham com isso, se mesmo essa tranqüilidade é uma de suas misérias? Vive-se tranqüilo também nas masmorras e tanto bastará para que nos sintamos bem nelas? (...) Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem, aos direitos da humanidade, e até aos próprios deveres. Não há recompensa possível para a quem tudo renuncia. Tal renúncia não se compadece com a natureza do Homem, e destituir-se voluntariamente de toda e qualquer liberdade equivale a excluir a moralidade de suas ações". (ROUSSEAU, Jean-Jacques: Do Contrato Social. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 27).


SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. O "ideal constitucional de segurança"; 3. Tipos ideais de sistemas punitivos; 4. Conclusão


RESUMO

:

Partindo da premissa do surgimento de um novo paradigma constitucional – em que os ideais constitucionais da liberdade, igualdade e fraternidade são substituídos por segurança, diversidade e solidariedade – será analisado o novo "ideal constitucional de segurança" e seu reflexo na estruturação do sistema punitivo com base no exame de dois tipos ideais de sistemas punitivos que se estruturam a partir de cada valor (liberdade/segurança). A conclusão é a de não há como se falar em um "direito constitucional de segurança" na medida em que esse "novo paradigma" revela uma concepção antagônica à de Estado de direito e de constituição.


Introdução

Em um texto publicado em 2000, que se tornou alvo de profícua discussão, Erhard Denninger sustenta que a Lei Fundamental alemã de 1949, cujo referencial teórico são os valores de liberdade, igualdade e fraternidade herdados da Revolução Francesa, estaria sofrendo questionamentos (percebidos nos debates sobre a reforma da Lei Fundamental e de alguns Länder alemães) em face de um novo paradigma constitucional, cujos ideais são segurança, diversidade e solidariedade.

Denninger sustenta que esses novos ideais expandem e modificam os conceitos tradicionais, de modo que a fraternidade daria lugar à solidariedade, a igualdade à diversidade e a liberdade à segurança. Essas mudanças seriam reflexo de uma transformação social que levou à eleição de novos "objetivos constitucionais" e impulsionou o movimento de mudança constitucional na Alemanha [01].

O alerta de Denninger sobre as conseqüências dessa transformação é importante porque o debate sobre direitos fundamentais se vê hoje confrontado com uma realidade transformada, sobretudo, pela crescente complexidade das relações político-sociais e pela avalanche de novos princípios ligados ao conceito de sociedade de risco, os quais passam a orientar as políticas legislativas, inclusive constitucionais.

Embora se parta da premissa que a avaliação de Denninger é correta – posição doutrinária ainda polêmica [02] – uma questão se impõe: se a nova tríade "expande" a anterior ou se essa modificação representa justamente a "restrição" dos antigos ideais.

Cumpre registrar, porém, que no presente texto não se tratará da mudança sofrida por cada um dos ideais tradicionais (liberdade, igualdade e fraternidade), que embora tenham raízes comuns nos ideais iluministas do século XVIII, possuem fundamentações políticas e filosóficas distintas. Apenas o conceito de liberdade e, mais especificamente, da liberdade individual ameaçada pelo jus puniendi e jus persequendi estatais é que será examinado.

Feito esse registro, pretende-se demonstrar, no curso desse trabalho, que o processo de tensão entre dos ideais constitucionais de liberdade e segurança é uma realidade em todo o mundo, que já se tinha detectado desde a década de 1970, tendo se tornado, todavia, mais acelerado e mais visível após os ataques sofridos pelos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001, chegando mesmo a revelar a substituição de um pelo outro.

Buscar-se-á, nesse propósito, sustentar que o novo "ideal constitucional de segurança" não expande a liberdade, mas a limita em holocausto ao aumento desarrazoado, ineficaz e temerário do poder punitivo do Estado, trazendo, ao final, como conseqüência, a própria desestruturação do Estado democrático de direito. Essa demonstração decorrerá do exame de dois tipos ideais de sistemas punitivos que se estruturam a partir de cada ideal constitucional (liberdade/segurança). A conclusão inafastável é a de não há como se falar em um "direito constitucional de segurança" na medida em que esse "novo paradigma" revela uma concepção antagônica à de Estado de Direito e de constituição.

O "ideal constitucional de segurança".

Falar em "ideal constitucional" significa considerar que um determinado valor seja não só protegido e promovido pelo Estado, mas também que esse valor seja um dos fundamentos que condicionam a atuação e legitimam a própria existência do Estado. Os ideais liberais e iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade são a base valorativa sobre a qual se estruturou um determinado tipo de Estado – Estado democrático de Direito – assim como a própria idéia de constituição e constitucionalismo.

Portanto, afirmar que a segurança substitui a liberdade como ideal constitucional equivale a sustentar uma modificação no fundamento de legitimidade do Estado e no próprio sistema constitucional, operada para realizar o objetivo de segurança e garantir que os cidadãos correspondam à respectiva expectativa de comportamento. Mas o que significa esse novo "ideal constitucional de segurança"? Nas palavras de Denninger:

"Security no longer means first and foremost the certainty of the individual citizen´s liberty, but rather the prospect of unlimited and unending state-sponsored activity for the sake of protecting citzens from social, techinical and environmental dangers, as well as from the dangers of criminality" [03].

Embora em cada uma dessas diferentes situações o novo ideal de segurança represente, de fato, uma modificação na esfera da liberdade individual, é prudente tratar cada hipótese distintamente, já que os bens protegidos não se confundem em absoluto. A segurança em face dos riscos sociais (doença, desemprego, invalidez, velhice) aumenta tanto o espectro dos deveres do Estado como o dos direitos dos indivíduos, que passam a nutrir expectativas de que o Estado os proteja contra essas espécies de dificuldades fortuitas ou naturais. Ao mesmo tempo, incide sobre a liberdade individual porque afeta a propriedade (mediante a criação ou majoração de impostos) e a liberdade de trabalho.

No que tange aos riscos ambientais (colocação no meio ambiente de produtos geneticamente modificados; transporte, armazenamento e utilização de substâncias químicas e nucleares potencialmente perigosas) e tecnológicos (decorrentes da dependência das sociedades de sistemas automáticos para suprimento de luz, comunicação e transporte e também as inovações nas áreas de informática e robótica) a tendência é de limitação de alguns direitos (livre iniciativa, livre mercado) em prol da ampliação de outros (saúde, habitação, alimentação, lazer, acesso a bens culturais), implicando em regulamentações que controlem e orientem o uso de recursos naturais e de processos técnicos e mecânicos e ainda a responsabilização por danos causados.

Por sua vez, a segurança face à questão da criminalidade é radicalmente diferente porque adentra profundamente no menor (e mais importante) núcleo de liberdade do indivíduo. Aqui, a limitação da liberdade significa o aumento radical do controle e do poder do Estado sobre o ser humano, quase sempre traduzido no aumento de condutas puníveis – seja mediante o aumento de criminalização de condutas, seja por meio da abstração e generalidade na construção de tipos penais "genéricos" – e na diminuição de garantias do acusado durante o processo criminal.

Segundo Castro Rangel [04], Denninger privilegiaria a questão dos riscos tecnológicosambientais e ligados à seguridade social, quando seria desejável que se ampliasse a escala do conceito de segurança para aplicá-lo "sem complexos" sobre toda forma de liberdade individual (inclusive integridade física e liberdade de locomoção). Entretanto, Denninger em momento algum releva, ignora ou subestima o reflexo da transformação do ideal constitucional na liberdade individual. Ao contrário, Denninger reforça a concepção de que não há nenhum ganho a compensar o aumento brutal do poder punitivo do estado sobre o cidadão.

"This direct aim of assuring legal goods [Rechtsgueterschultz] entails its own dangers for legal security as a guarantee of liberty. Although the ‘basic right to security’ has been invoked in this context, a closer inverstigation reveals instead a blanket authorization to engage in any conceivable intervention into the sphere of individual liberty and hardly a ‘genuine’ basic right" [05].

O fortalecimento do aparato estatal e a expansão do direito penal surgem como meios de dar uma (aparente) solução ao problema da criminalidade e à necessidade de segurança. Embora seja legítima e verdadeira, a demanda social de proteção não pode justificar a submissão dos cidadãos ao controle absoluto do Estado, já que a transformação – operada pela mídia e pelo aparelho governamental – do "desejo de segurança" em "desejo de punição" atua somente no campo simbólico, não se traduzindo em efetiva diminuição da criminalidade.

A própria evolução tecnológica que caracteriza a sociedade de risco retira do mercado de trabalho e conduz à informalidade e, portanto, à marginalidade (quando não à criminalidade) grande parcela da população, sobretudo nas economias periféricas. Esse indivíduos "são imediatamente percebidos pelos demais como fonte de riscos pessoais e patrimoniais" [06].

Por outro lado, a incerteza característica dessa nova percepção da realidade social também se projeta na criminalização de condutas que não estejam ligadas diretamente a um resultado, bastando a criação de um risco ou perigo, mesmo que abstrato. Trata-se do princípio da prevenção, também chamado de princípio da precaução, que orienta para a punição de condutas tenham elas causado, ou não, dano a um bem jurídico protegido. O objeto de proteção deixa, pois de ser um bem jurídico (vida, propriedade, integridade física, patrimônio etc.) para ser a própria norma.

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Embora o aumento do controle do Estado sobre os cidadãos não se inicie com os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 [07], ele ganha maior visibilidade e se agudiza a partir daquele momento.

Já há alguns anos imperam os discursos de terrorismo estatal e super-criminalização que, se por um lado não se prestam a resolver as tensões sociais do mundo contemporâneo, por outro, agravam ainda mais o sentimento de insegurança em que já se vive. O movimento político-social associado aos discursos de aumento do poder estatal e diminuição de garantias individuais é chamado de "Campanhas de Lei e Ordem" [08] e está associado a uma legislação de exceção e a uma interpretação constitucional sensível à adoção de medidas extraordinárias, voltadas para uma suposta necessidade de resposta a fenômenos emergenciais (propalado aumento descontrolado de criminalidade).

Sobretudo nos Estados Unidos, cuja constituição está firmemente ancorada nos princípios liberais e na figura do Estado gendarme, a mudança do paradigma dos ideais constitucionais é assustadora. O "USA Patriot Act", concebido, votado e aprovado em menos de dois meses após o ataque terrorista – expressando perfeitamente o conceito de legislação de emergência [09] –, trouxe uma completa modificação no sistema penal e processual penal estadunidense.

Os exemplos são os mais variados possíveis e vão desde a banalização da prisão como método de investigação [10], passando por uma definição extremamente vaga e aberta do crime de terrorismo até a possibilidade de que o Estado promova buscas em residências sem qualquer comunicação ao investigado (nem mesmo depois de terminada a investigação) e chegando aos extremos de proibição de que presos tenham acesso privado aos seus advogados e pela criação de tribunais militares secretos especialmente para julgar indivíduos suspeitos de participarem de atividades terroristas (neste último caso, retirando os cidadãos estadunidenses da "jurisdição" do tribunal).

Ninguém pode olvidar o clima de histeria que se abateu sobre uma nação que é, efetivamente, a mais poderosa do planeta em termos militares ao se ver atingida por um ataque de tamanha magnitude [11]. Não obstante, é absolutamente pertinente a observação de Ronald Dworkin de que o governo não pode guiar-se pela emoção, pois o que se perde é um bem de difícil recuperação [12].

A mesma preocupação se evidencia em texto recente, publicado em abril de 2004, por Bruce Ackerman [13]. Ackerman revela que nem as leis de guerra e menos ainda as leis criminais são apropriadas para lidar com a ameaça terrorista e afirma, sobretudo, que a legislação de emergência tem como finalidade a reafirmação da soberania estatal (reassurance function) e a tranqüilização da população, justamente a razão pela qual não pode esse tipo de legislação perpetuar-se, sob pena de haver uma naturalização da opressão [14]. Tais medidas legislativas representam uma exceção ao Estado de Direito que, uma vez naturalizadas, dão lugar a um estado de exceção [15].

A assunção do novo paradigma de segurança pelos Estados Unidos da América afeta todo o mundo, seja porque na condição de Estado mais poderoso em termos militares os EUA submetem outros países às suas novas exigências (inclusive declarando guerras expressamente desautorizadas pela ONU), seja porque influenciam culturalmente e economicamente no sentido de um emparelhamento ideológico (ações militares conjuntas, lobby para aprovação de legislações antiterrorismo, retaliações econômicas, embargos e toda espécie de constrangimento destinados a submeter os indivíduos à paranóia do controle total).

A transformação anunciada por Denninger, de substituição da liberdade pela segurança como ideal constitucional, representa a passagem de um Estado com postura reativa para um Estado de postura proativa, no qual a finalidade essencial deixa de ser a defesa da sociedade contra determinados perigos ou ameaças causados pelos indivíduos (mediante a investigação e punição de tais indivíduos) e passa a ser o controle para prevenir riscos potenciais, indefinidos e desconhecidos, interferindo diretamente na liberdade de todos aqueles que possam representar causas potenciais desses riscos ("indivíduos suspeitos").

Mais uma vez é pertinente diferenciar a atuação governamental antecipada em matéria de direito ambiental (exigindo estudos de impacto ambiental antes de autorizar uma obra e proibindo o plantio de grãos geneticamente modificados), de direito previdenciário (regulamentando o funcionamento das instituições financeiras e criando estruturas, custeadas pela sociedade, de assistência social), de direito civil (criando limitações ao uso das tecnologias), campos em que a proteção à sociedade tem uma nítida relação de necessidade, adequação e proporcionalidade com a respectiva supressão da liberdade.

Já no campo do direito penal e processual penal, a mudança passa pela substituição completa do paradigma anterior, jogando por terra três séculos de árduas conquistas para limitar o arbítrio do Estado sobre os indivíduos. Se no paradigma de liberdade o Estado somente está autorizado a utilizar violência contra aqueles que efetivamente lesionaram bens jurídicos relevantes (ou estavam na iminência de fazê-lo), deixando ilesos os demais cidadãos, o paradigma de segurança permite que o exercício da violência estatal seja feito de forma aleatória sobre toda a coletividade (inocentes e culpados, todos passam à condição de suspeitos).


Tipos ideais de sistemas punitivos.

Já se afirmou acima que os ideais constitucionais correspondem ao fundamento de legitimidade do poder estatal. Ao eleger a tensão entre liberdade e segurança como objeto de estudo, deve-se buscar o sistema penal como principal alvo de reflexão, pois é no exercício do ius puniendi e no ius persequendi que o poder estatal atua com mais violência sobre a liberdade individual.

A escolha do ideal de liberdade como fundamento do poder do Estado estrutura um sistema punitivo no qual a justificação da intervenção penal do Estado na liberdade individual está submetida a critérios de racionalidade e civilidade. O objetivo do Estado reside na criação e efetivação de normas de proteção dos direitos fundamentais do ser humano frente a qualquer forma de exercício arbitrário do poder.

Esse modelo de sistema punitivo é construído tem em sua base um conjunto de princípios cujo objetivo é assegurar "o máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo e, portanto, de limitação do poder punitivo e de tutela da pessoa contra a arbitrariedade" [16], princípios esses que por sua vez são resultado de dois elementos constitutivos: o convencionalismo penal e o cognitivismo processual.

Por convencionalismo penal entende-se a reserva absoluta de lei, representando a vinculação do legislador à taxatividade e à precisão empírica na formulação de regras que prescreverão as condutas puníveis. Trata-se, a bem da verdade, de um princípio que informa a técnica legislativa.

Essas exigências visam afastar a tipificação de condutas penais que não estejam relacionadas a fatos, mas a pessoas [17] garantindo, outrossim, que os tipos penais descrevam taxativamente as ações que podem ser imputadas ao acusado. Oposto a isso está o "direito penal do autor", característico dos movimentos nazista e fascista, mas também presentes na "guerra contra o terror", uma vez que as suspeitas recaem sempre sobre membros de determinados grupos raciais, religiosos e étnicos, denotando seu caráter preconceituoso e soterrando as garantias mínimas necessárias para limitar afã punitivo do poder público, representadas pelos direito humanos, outrora centrais na legitimação do Estado e do direito [18].

A construção do tipo penal prescinde de qualquer componente extralegal, isto é, o crime não decorre de uma convenção moral, mas jurídica. A garantia de que a relevância penal não é determinada pela natureza, pela moral ou por qualquer outra espécie de autoridade que não a lei é uma das principais conquistas do direito penal durante a modernidade.

Em oposição ao convencionalismo penal está o substancialismo penal, representado pela "desvalorização do papel da lei como critério exclusivo e exaustivo de definição dos fatos desviados" [19] e significa a previsão de condutas puníveis de modo indeterminado e valorativo, associando direito e moral e permitindo discriminações fundadas nas características pessoais e esvaziando o princípio da estrita legalidade. Nesse modelo, os elementos relativos à definição das condutas puníveis e à comprovação judicial dessas condutas são inquisitivos ou autoritários.

Como conseqüência dessa mudança de foco, não se pune o agente conforme sua culpabilidade, mas pela periculosidade. Logo, não há que se falar em proporcionalidade entre o dano causado e a resposta penal, sendo o direito penal "de segurança" orientado pelo princípio da "excessividade": "The principle of a preventive state which focuses one-sidely on security, in contrast, is excessiveness in the dual sense of ‘lacking in standarts’ and of achieving ‘more and more’ and ‘better and better’ results" [20]. O substancialismo penal, nesse ponto, se assemelha ao "Direito Penal do Inimigo" [21]:

"Características do Direito penal do inimigo: a) o inimigo não pode ser punido com pena, sim, com medida de segurança; b) não deve ser punido de acordo com sua culpabilidade, senão consoante sua periculosidade; c) as medidas contra o inimigo não olham prioritariamente o passado (o que ele fez), sim, o futuro (o que ele representa de perigo futuro); d) não é um Direito penal retrospectivo, sim, prospectivo; e) o inimigo não é um sujeito de direito, sim, objeto de coação; f) o cidadão, mesmo depois de delinqüir, continua com o status de pessoa; já o inimigo perde esse status (importante só sua periculosidade); g) o Direito penal do cidadão mantém a vigência da norma; o Direito penal do inimigo combate preponderantemente perigos; h) o Direito penal do inimigo deve adiantar o âmbito de proteção da norma (antecipação da tutela penal), para alcançar os atos preparatórios; i) mesmo que a pena seja intensa (e desproporcional), ainda assim, justifica-se a antecipação da proteção penal; j) quanto ao cidadão (autor de um homicídio ocasional), espera-se que ele exteriorize um fato para que incida a reação (que vem confirmar a vigência da norma); em relação ao inimigo (terrorista, por exemplo), deve ser interceptado prontamente, no estágio prévio, em razão de sua periculosidade" [22].

"Suas principais bandeiras são: a) flexibilização do princípio da legalidade (descrição vaga dos crimes e das penas); b) inobservância de princípios básicos como o da ofensividade, da exteriorização do fato, da imputação objetiva etc.; c) aumento desproporcional de penas; d) criação artificial de novos delitos (delitos sem bens jurídicos definidos); e) endurecimento sem causa da execução penal; f) exagerada antecipação da tutela penal; g) corte de direitos e garantias processuais fundamentais; h) concessão de prêmios ao inimigo que se mostra fiel ao direito (delação premiada, colaboração premiada etc.); i) flexibilização da prisão em flagrante (ação controlada); j) infiltração de agentes policiais; l) uso e abuso de medidas preventivas ou cautelares (interceptação telefônica sem justa causa, quebra de sigilos não fundamentados ou contra a lei); m) medidas penais dirigidas contra quem exerce atividade lícita (bancos, advogados, joalheiros, leiloeiros etc.)" [23].

Em matéria processual penal, o sistema punitivo construído a partir do ideal de liberdade está representado pelo cognitivismo processual, ou seja, um princípio que determina que a hipótese acusatória deve ser passível de verificação e de exposição à refutação para que seja convalidada se, e apenas se, for apoiada em provas.

Somente pode haver imposição de pena em virtude de um fato determinado, descrito e reconhecido pela lei como delituoso, fato esse capaz de ser concretamente submetido à comprovação, permitindo a produção de provas e contra-provas. Assim, ao contrário dos juízos valorativos, os juízos penais devem ser predominantemente cognitivos e estarem baseados em elementos que afirmem ou neguem fatos ou direitos.

O contraponto ao cognitivismo processual é o decisionismo processual, representado pela subjetividade do juízo, em que há "ausência de referências fáticas determinadas com exatidão [e a decisão judicial] resulta mais de valorações, diagnósticos e suspeitas subjetivas do que de provas de fato" [24]. O decisionismo processual perverte o processo penal para transformá-lo numa análise da personalidade do agente, ao invés de ser um conjunto de procedimentos para buscar a comprovação de fatos objetivos.

Já o "direito processual penal do inimigo" é justamente a ausência de "direito". O criminoso que for considerado inimigo (autor de infrações tachadas como perigosas) deixa de merecer a proteção do Estado ficando em "guerra" com esse Estado; logo, afasta-se o devido processo legal e o controle judicial da atuação do estado sobre a liberdade em favor de um procedimento de guerra [25].

Um dos focos dessa divergência entre o sistema punitivo calcado na liberdade e aquele baseado na segurança está na diferença no tipo de "verdade jurídica" que se pretende alcançar: enquanto o primeiro afirma que somente se pode pretender estabelecer uma verdade formal o segundo busca a verdade substancial, ou seja, alcançar, em matéria penal, uma verdade "absoluta", "unívoca", "objetiva", cuja busca, por suas próprias características, admite a utilização de quaisquer meios aptos para que seja alcançada, ultrapassando os limites das regras procedimentais, fazendo com que os fins justifiquem os meios [26].

Por sua vez, um sistema punitivo estruturado num Estado cujo ideal constitucional é a liberdade somente admite uma condenação que tenha por base a verdade processual, construída a partir da observância de regras determinadas e referentes aos fatos que tenham relevância penal. A função do Poder Judiciário é assegurar que a decisão que restringe a liberdade individual esteja baseada somente na verdade processual, excluindo da sua motivação qualquer espécie de valoração baseada em outra modalidade de conhecimento, limitando o arbítrio punitivo, assegurando a racionalidade do juízo e destituindo-o, o mais possível, de juízos valorativos e subjetivos.

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Sobre o autor
Thiago Bottino do Amaral

advogado criminalista no Rio de Janeiro (RJ), mestre e doutorando em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC/RJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARAL, Thiago Bottino. A segurança como princípio fundamental e seus reflexos no sistema punitivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 799, 10 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7269. Acesso em: 18 abr. 2024.

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