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A segurança por meio da estruturação da ponderação:

critérios para ponderação em matéria penal

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25/09/2005 às 00:00
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Pretende-se, após uma breve digressão doutrinária para apresentar o conceito de ponderação de normas, estabelecer critérios para orientar a ponderação em matéria penal.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Gênese do conceito de ponderação na teoria do direito; 3 - Critérios para ponderação em matéria penal; Apêndice.


I – INTRODUÇÃO

O Poder Judiciário Brasileiro, ao resolver colisões normativas, tem prescindido do apuro teórico essencial ao controle da atuação jurisdicional, caracterizando um protagonismo judicial que, em matéria penal, tem se revelado um instrumento a serviço da ampliação dos poderes punitivos e persecutórios do Estado, justamente onde se dá a intervenção mais violenta sobre a liberdade individual. Pretende-se nesse texto, após uma breve digressão doutrinária para apresentar o conceito de ponderação de normas, estabelecer critérios para orientar a ponderação em matéria penal.


II – GÊNESE DO CONCEITO DE PONDERAÇÃO NA TEORIA DO DIREITO

O pensamento jurídico na primeira metade do século XX foi marcado pelo predomínio da filosofia positivista (daí o nome "positivismo jurídico") e pretendia incorporar à teoria do direito o mesmo rigor metodológico do raciocínio demonstrativo da ciência matemática. Enquanto nas ciências exatas afastou-se do conhecimento toda a metafísica, no direito a busca por uma pretensa objetividade e neutralidade do teórico resultou na separação radical entre o direito e a moral, dissociando o direito de qualquer juízo de valor (como eqüidade, tolerância e justiça).

Porém, ao afastar-se dos valores que lhe são indissociáveis (afinal, a pretensão do direito não é apenas regular relações públicas e privadas, mas regulá-las com pretensão de realizar justiça) o direito foi incapaz de impedir o surgimento de Estados que reproduziram, em poder e em ações, o absolutismo, o totalitarismo e a obscurantismo que o positivismo jurídico buscara combater.

Afinal, o direito legislado não possui uma capacidade intrínseca de se fazer válido ou legítimo. As teorias pós-positivistas [01] criticam o viés formalista do positivismo normativista que privilegiava a supremacia da regra, colocando o texto literal da lei como superior aos fundamentos que a inspiram, pois o formalismo extremado repercute na atuação jurisdicional, transformando o juiz num aplicador burocrático das leis, amesquinhando seu mister de distribuir justiça. Se, por um lado, a limitação da atividade jurisdicional impedia a transformação do juiz em legislador (combinação de poderes extremamente perigosa para o estado de Direito a democracia e os direitos fundamentais), essa mesma limitação tornou-lhe incapaz de realizar sua função de garante dos direitos do indivíduo quando o Estado se torna tirânico ou iníquo.

Para corrigir essa limitação que o positivismo impôs ao judiciário, as teorias pós-positivistas propugnam que a regra não seja considerada como inquestionável e superior aos valores que a inspiram. Esses valores poderiam ser apreendidos dos princípios gerais do direito que animam o ordenamento jurídico, estejam eles expressamente enunciados ou não.

Essa a reação ao positivismo jurídico foi responsável pelo surgimento e crescimento de um fenômeno sócio-jurídico responsável pela assunção, pelo Poder Judiciário, de responsabilidades do Estado que caberiam aos Poderes Legislativo e Executivo desempenharem [02], consubstanciada numa atuação política com preocupações morais e com a pretensão de distribuir justiça social por meio das decisões judiciais. O movimento de reação ao formalismo jurídico que caracterizava o positivismo normativista é denominado protagonismo judicial [03].

Entretanto, essa atuação jurisdicional mais "engajada" traz consigo riscos e temores de que argumentos morais prevaleçam sobre o direito, numa profusão incontrolável de interpretações subjetivas que ameaçam a segurança jurídica [04].

Nesse diapasão, torna-se imprescindível a elaboração de critérios racionais para a orientação dessa nova modalidade de atuação jusrisdicional. Chain Perelman, por exemplo, sustentava que o esforço metodológico para identificar os meios de se chegar a uma decisão justa (adequada) seria realizado por meio da nova retórica [05].

Essa necessidade é ainda mais premente quando se alardeia a utilização dos chamados princípios jurídicos, positivados ou não, para fundamentar decisões judiciais, o que obrigaria, por exemplo, à definição da sua natureza jurídica, classificação, estrutura normativa, e relação com as normas na hipótese de conflito. Trata-se de discussão por demais extensa para os propósitos desse texto [06], razão pela qual basta apontar, aqui, a existência de dois posicionamentos doutrinários sobre a distinção entre regras e princípios (ressalvando a existência de "sub-divisões", dentro de cada corrente teórica).

O primeiro grupo propõe que existem "distinções fracas" entre regras e princípios, ou seja, que eles se diferenciam com base no grau de abstração da sua redação. O grupo oposto sustenta que regras e princípios se distinguem porque são normas de qualidades diferentes e que, portanto, existem "distinções fortes", propugnando um novo modelo jurídico não nega a validade do positivismo, mas pretende de superar suas limitações.

O conceito de ponderação foi desenvolvido a partir da diferença qualitativa entre normas e princípios, destacando-se a contribuição de Robert Alexy na afirmativa de que a ponderação resulta do reconhecimento necessário da proporcionalidade [07]. Segundo Alexy, aceitar a proporcionalidade é aceitar que princípios são mandatos de otimização, ou seja, que determinadas normas poderão ser cumpridas em maior ou menor grau dependendo das possibilidades jurídicas e das possibilidades fáticas, devendo ser objeto de uma ponderação quando colidirem com outros princípios. O conceito de princípio, portanto, não decorre da abstração, generalidade ou mesmo da fundamentalidade [08] da norma, mas da sua forma de aplicação, que é oposta àquela das regras.

As colisões entre princípios são superadas mediante a restrição parcial de um ou de ambos os princípios envolvidos, servindo a ponderação como um procedimento racional para resolver a colisão, fixando critérios para estabelecer a prevalência de um princípio em detrimento de outro naquelas determinadas circunstâncias verificadas no caso concreto. A preocupação é preservar a segurança jurídica a partir do estabelecimento de um procedimento para a realização da ponderação [09].

O modelo de ponderação proposto por Alexy sofreu inúmeras críticas, interessando examinar, no que tange ao risco à segurança jurídica que a ponderação representaria, aquela formulada por Jürgen Habermas, de que a ponderação não seria realizada de forma racional pois a atribuição de pesos aos direitos e às restrições poderia ocorrer de forma arbitrária e sem a devida reflexão, trazendo, assim, enorme risco à segurança jurídica.

Ao responder tal crítica [10], Alexy afirma que a ponderação é uma tentativa de restabelecer uma conexão entre direito e justiça, reconhecendo valor normativo para todos os princípios e adequando sua aplicação conforme as condições concretas e as possibilidades jurídicas, agindo de forma racional para atingir uma correção na aplicação da lei. Ao contrário de Habermas, Alexy acredita ser possível realizar escolhas racionais sobre importância dos princípios (peso abstrato), intensidade que determinadas condições interferem na realização desses princípios e, por fim, também no relacionamento entre esses fatores. Para demonstrar essa racionalidade Alexy recorre a casos concretos analisados pelo Tribunal Constitucional Alemão, nos quais há um detalhamento de cada uma dessas etapas. Embora Alexy reconheça não haver possibilidade de que sejam atribuídas notas numa escala numérica a fim de que a resolução da ponderação se transforme num cálculo matemático, essas limitações não impedem que se estabeleça uma ordenação de princípios de caráter maleável. Ademais, a racionalidade se faria presente, sobretudo, por meio da estruturação de uma metodologia para realização da ponderação o que afastaria o risco à segurança jurídica.

Em outras palavras, a racionalidade da ponderação decorre da possibilidade de fazer uma fundamentação racional das condições para a preferência de um princípio sobre outro [11], o que é possível ao vincular a ponderação à teoria da argumentação jurídica [12].

O uso da ponderação como método de atividade jurisdicional, por sua preocupação com o controle do protagonismo judicial, tem sido incorporado inclusive pelos teóricos que discordam dos critérios de diferenciação das normas calcados em sua formulação condicional, modo de aplicação ou forma de resolução de conflito.

Em que pese ter sido desenvolvida a partir de uma distinção qualitativa que definiria e diferenciaria regras e princípios, acredita-se que não há óbice em utilizar ponderação mesmo quando não se comunga dessa diferenciação qualitativa.

Para teóricos como Riccardo Guastini, as normas não são o texto legal nem seu conjunto, mas o sentido que se constrói da sua interpretação, sendo que os dispositivos legais são o objeto da interpretação e a norma seu resultado. Nesse passo, a própria noção de princípios e regras passa por um questionamento já que a construção da norma é um processo que depende da da participação do intérprete. Assim, mesmo os dispositivos formulados pelo legislador para atuarem como regras podem ser reconstruídos como princípios pelo intérprete, que é quem "tem a função de medir e especificar a intensidade da relação entre o dispositivo e os fins e valores que lhe são, potencial e axiologicamente, sobrejacentes" e "fazer a interpretação jurídica de um dispositivo hipoteticamente formulado como regras ou princípio" [13]. Aqui, o critério para a distinção de regras e princípios é a carga argumentativa exigida para a sua superação, o que é compatível com a aplicação da estrutura da ponderação (enfrentamento dos exames de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, assim como a realização de uma fundamentação calcada nas regras de argumentação jurídica do discurso prático racional no estabelecimento de graus de intensidade de realização e interferência de direitos).


3 - CRITÉRIOS PARA PONDERAÇÃO EM MATÉRIA PENAL

A atuação jurisdicional dos tribunais consistente na aplicação direta de princípios ou na superação de regras sem que se desenvolva ou respeite uma metodologia de interpretação e aplicação da lei racionalmente estruturada no campo do direito penal e processual penal é extremamente preocupante já que é no exercício do jus puniendi e do jus persequendi que o poder estatal atua com mais violência sobre a liberdade individual, sendo ainda o ramo do direito em que a segurança jurídica melhor revela sua natureza de garantia fundamental.

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Com efeito, embora essa nova postura do Poder Judiciário surja ligada à defesa dos direitos fundamentais e à valorização dos direitos humanos, sua aplicação em matéria de direito penal e processual penal não tem se orientado pela proteção da liberdade dos indivíduos. Ao contrário, tem se revelado um instrumento a serviço da ampliação dos poderes punitivos e persecutórios do Estado [14].

Portanto, é imperioso o estabelecimento de uma reserva de ponderação aplicável exclusivamente em matéria de direito penal e processual penal (que envolvem os conflitos entre os direitos fundamentais e, em especial, as liberdades individuais, e o interesse público repressivo).

A visão política que se coaduna com a reserva de ponderação é denominada de heterojustificação ou heteropoiesis e se opõe à autojustificação ou autopoiesis do Estado (esta última significando que o Estado é um valor em si mesmo, ou possui um valor intrínseco [15]). A teoria garantista funda a legitimidade do Estado a partir da tutela dos direitos fundamentais do cidadão e não sobre uma concepção ética. Logo, os poderes do Estado não são considerados justos em razão de quem (o povo, o monarca etc.) detém esses direitos, mas sim em função de como, quando e por que esses poderes são exercidos.

Segue daí que a organização de um sistema punitivo sob a égide do garantismo obriga ao controle de validade da norma para examinar sua correspondência com o fundamento de legitimidade do Estado. Deve-se exercer a crítica do direito tendo sempre em conta a distinção que há entre vigência, validade e efetividade, diferenças que são essenciais para compreender a estrutura normativa do Estado Democrático de Direito. A distinção entre validade e efetividade se revela a partir da contraposição entre o arcabouço teórico desenhado na Constituição (que incorpora e densifica valores sob a forma de normas jurídicas) e a prática das instituições judiciais e administrativas. Ao examinar a realidade italiana, Ferrajoli demonstra serem divergentes o parâmetro de racionalidade presente na Constituição e aquele que caracteriza a prática da intervenção punitiva, seja na elaboração da legislação infraconstitucional, seja nas atuações jurisdicionais e policialescas.

Ora, o uso da ponderação se prestaria justamente para atuar na redução da divergência entre a validade do modelo constitucional e a efetividade da aplicação concreta do direito. Nesse diapasão, afiguram-se dois caminhos possíveis à redução da divergência entre validade e efetividade: 1) a primeira é a opção regressiva, em que a redução da efetividade é buscada por meio de uma interpretação restritiva das normas de nível superior, para torná-las compatíveis com as de nível inferior; 2) a segunda opção, adequada à perspectiva garantista, é chamada de progressiva e representa, ao contrário, toda interpretação extensiva dos direitos fundamentais. O conceito de reserva de ponderação é compatível com a segunda opção.

Embora possa parecer paradoxal, quanto maior for o esquema de proteções aos direitos e garantias, maior será o risco de alargamento da distância existente entre normatividade e efetividade. Ferrajoli explica que nos Estados absolutos não há esse risco porquanto nesse tipo de Estado não há deveres que vinculem o governo, ao passo que o Estado de direito convive, necessariamente, com essa realidade. Não obstante a antinomia entre validade e efetividade seja um fenômeno estrutural do Estado de direito, há diferentes graus que vão desde a total inefetividade dos direitos fundamentais até a contenção dessa divergência numa margem estreita.

Por sua vez, a distinção entre validade e vigência está voltada para os exames formal e substancial da norma. Não basta estar a norma expressa num texto legislativo promulgado com observância da forma e do procedimento legislativo para exigir do juiz sua aplicação, pois pode o magistrado considerá-la inválida se não atender aos requisitos substanciais (adequação da norma ao conteúdo das normas superiores). Logo, para que um fato seja considerado crime, não basta o controle desenhado no nullum crimen sine lege (mera legalidade) mas também que haja um controle da validade realizado a partir do aspecto substancial desenhado pelas normas superiores (legalidade estrita). Todavia, se para realizar o controle formal da validade da norma basta examinar um fato empírico determinável (se tramitou corretamente, se foi aprovada em ambas as casas do Congresso, se foi sancionada ou vetada, se foi publicada no diário oficial etc.), o controle substancial da validade exige uma reflexão de outra natureza. É preciso analisar se determinado conteúdo é compatível com os limites substanciais da norma superior, numa tarefa árdua e passível de constantes reformulações.

O juízo acerca da validade da norma admite, em última análise, um juízo de valor. Mesmo que essa atividade esteja orientada por uma metodologia que tenha pretensão de correção e procure desenvolver uma argumentação racional sobre valores, não há certeza de que a resposta encontrada seja "a solução justa". Com efeito, os procedimentos propostos por Alexy, por exemplo, constituem mecanismos que afastam decisões estapafúrdias ou absurdas e que permitem o controle sobre a atuação do Judiciário a partir da obrigação dos juízes de fundamentarem o caminho lógico-jurídico percorrido até a decisão. Não obstante, sempre haverá uma dose de subjetividade.

Portanto, se o juízo de validade das leis encerra um juízo de valor, permite-se a acumulação de poderes pelo juiz, com enorme potencial de colocar em risco o Estado de direito, a democracia e as liberdades individuais. Por outro lado, esse acréscimo de poderes ao juiz se justifica, em determinadas situações, para corrigir as injustiças do direito positivo ou para dar soluções adequadas às situações não previstas pelo ordenamento.

Especificamente no campo do direito penal e processual penal, o garantismo aciona um "seguro" contra a ameaça de exacerbação da violência estatal que a hipertrofia do Judiciário representa: o juízo de validade da lei, que repercute sobre a segurança jurídica, pode ceder, mas somente se voltada para a maximização da liberdade [16].

Podem ser considerados corolários dessa concepção os critérios do favor rei [17], da analogia in bonam partem [18], do ne reformatio in pejus [19] e da admissão da prova obtida por meios ilícitos em benefício do acusado [20], dentre outros.

Dentre essas técnicas de atuação jurisdicional voltadas à limitação do poder punitivo e ampliação do espectro da liberdade é que se inclui o conceito de reserva de ponderação. Portanto, utilizando os fundamentos teóricos até agora delineados, é possível enunciar critérios suficientemente claros que vinculem a atuação jurisdicional em matéria penal e processual penal:

1) Numa hipótese de ponderação entre regra e princípio, a regra deve ser aplicada de modo estrito e absoluto se estabelecer uma situação mais benéfica ao acusado, não podendo ser ponderada com um princípio que traga ao acusado [21] qualquer espécie de piora na sua situação pessoal ou processual. Por outro lado, é possível que regras que estipulem previsões restritivas de direitos sejam ponderadas com princípios benéficos ao acusado para que estes últimos prevaleçam e aquelas sejam superadas.

2) Numa hipótese de ponderação entre dois ou mais princípios (ou seja, em que não haja regras que normatizem a situação fática e ocorra a incidência direta dos princípios), é preciso, inicialmente, atribuir peso abstrato superior aos princípios que protejam as liberdades individuais em contraposição àqueles que tutelem bens coletivos ou interesses estatais e, ainda, desenvolver argumentos capazes de demonstrar, em cada uma das etapas da ponderação (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) o respeito às finalidades da legislação penal assim entendida a partir da perspectiva garantista. Ademais, somente argumentos de princípios – e nunca argumentos políticos – podem ser utilizados para justificar restrições às liberdades individuais.

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Sobre o autor
Thiago Bottino do Amaral

advogado criminalista no Rio de Janeiro (RJ), mestre e doutorando em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC/RJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARAL, Thiago Bottino. A segurança por meio da estruturação da ponderação:: critérios para ponderação em matéria penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 814, 25 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7274. Acesso em: 19 abr. 2024.

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