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Prisão decorrente de condenação criminal recorrível:

breves considerações

13/09/2005 às 00:00
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Ao direito processual penal é muito caro o estudo da prisão, como instrumento destinado à manutenção do império da lei e do próprio Estado de Direito. Neste artigo, analisar-se-ão apenas a prisão decorrente da sentença penal condenatória apelável e os seus matizes constitucionais. Antes, todavia, é preciso defini-la e agrupá-la de acordo com as suas diversas categorias, propiciando – ligeiramente, embora – uma tomada panorâmica do tema.

Prisão "é a privação da liberdade de locomoção determinada por ordem escrita da autoridade competente ou em caso de flagrante delito"1 e divide-se – di-lo JÚLIO FABBRINI MIRABETE2 – em duas grandes espécies: a) prisão pena e b) prisão sem pena. A primeira possui evidentes contornos repressivos e surge como conseqüência natural da condenação criminal passada em julgado. Dela cuidam a Lei das Execuções Penais e o Código Penal. A segunda, conceituada por exclusão, reparte-se em (1) prisão civil, (2) militar, (3) administrativa3 e (4) processual penal e esta, em (i) decorrente da decisão de pronúncia, (ii) preventiva, (iii) em flagrante, (iv) provisória e (v) decorrente da sentença criminal passível de apelação.

A prisão processual penal, espécie do gênero prisão sem pena, é aquela para cujo disciplinamento o legislador dispensou todo o Título Nono do CPP. Isso não quer dizer que o código tenha esgotado todas as suas variantes. Não. Os tipos de prisão dispostos neste diploma é que são, todos, processuais. Parece óbvio. A conclusão que disso se extrai não o é, porém. O fundamento constitucional desse instituto reclama-lhe um exame bem mais acurado.

A Carta Política vigente introduziu no direito processual brasileiro o princípio da inocência4, 5 e 6 (art. 5.º, LVII). Mais até. Assegurou aos acusados o direito fundamental ao estado inocência7, de sorte que ninguém será responsabilizado criminalmente enquanto não lhe sobrevier condenação penal transitada em julgado, com todos os seus desdobramentos (dentre eles a prisão). Ora, se essa é a regra, qualquer limitação à liberdade individual antes desse momento é uma excepcionalidade do sistema, só justificável em situações extremadas, para as quais a resposta jurisdicional do Estado-juiz tenha de ser prestada incontinênti. Vale dizer, com nítida feição cautelar. E aí repousa a pedra de toque desse arrazoado: a cautelaridade8 das prisões processuais penais e, em última análise, da própria prisão decorrente da condenação criminal recorrível.

Bem por isso, a prisão estará condicionada à presença do fumus boni juris (fumus comissi delicti) e do periculum in mora (periculum libertatis). Respeitadas as peculiaridades que identificam o processo penal, esse estudo em muito se assemelha ao desenvolvido pela literatura processual civil (principalmente por CALAMANDREI) sobre jurisdição e processo cautelares – como o tertium genus da tutela jurisdicional do Estado, no dizer de ALFREDO BUZAID9.

A fumaça do bom direito assenta-se nas fundadas suspeitas de autoria/participação do réu em fato delituoso, além da comprovada existência material do crime. Aqui, a efetiva plausibilidade do pedido acusatório é a "tônica", a revelar a preocupação do ordenamento processual com a tutela da aparência ou com aquilo que se convencionou chamar de juízo de verossimilhança; o perigo da demora escora-se no binômio necessidade-urgência, de modo que a inflição da medida deve mostrar-se como expediente absolutamente inadiável (urgente) e indispensável à preservação da ordem jurídica (necessário). Em síntese, a prisão processual só será materialmente constitucional, se for necessária e urgente para a garantia da paz social e fundada num mínimo de prova sobre a autoria de crime. Do contrário, ela não será admissível em nenhuma das suas formas, razão por que, se decretada, deverá ser prontamente relaxada pelo juiz (art. 5º, LXV).

Como compatibilizar, então, essa concepção teórica com o disposto nos arts. 393 e 594 do CPP, se eles estabelecem como efeito imediato da decisão condenatória o recolhimento do sentenciado? Eis o ponto nevrálgico dessa discussão. Esclareça-se, de início, que as prisões cautelares não violam o dogma constitucional há pouco mencionado, de maneira que foram recepcionadas pela Lei Maior de 1988, segundo firme orientação do Supremo Tribunal Federal.

Apesar de a doutrina não reconhecer expressamente, há duas correntes que disputam a preferência dos autores e dos tribunais, na tentativa de solucionar esse impasse. Ambas com argumentos sedutores e contundentes, capazes de acender ainda mais a controvérsia que cerca a questão.

A corrente "um" diz que estão em pleno vigor os arts. 393, I e 594 da lei processual, não havendo quaisquer restrições interpretativas. Como a redação deste foi posterior à daquele – o primeiro vige com o seu texto original, ao passo que o segundo, com as modificações feitas pela Lei nº 5.941/73 – o rigorismo do art. 393 foi amenizado, donde surgirem as seguintes possibilidades para o réu10 e 11: a) ele é primário e de bons antecedentes e a infração é afiançável; b) ele é primário e de bons antecedentes, mas a infração é inafiançável; c) ele é reincidente (e, claro, de maus antecedentes) e é afiançável o crime e d) ele é reincidente e o crime é inafiançável.

Na letra "a", o sentenciado poderá recorrer sem enclausurar-se, por força do permissivo do art. 594 do CPP. Afinal, quem é tecnicamente primário e portador de bons antecedentes faz jus a essa prerrogativa, independentemente do pagamento de fiança. E explica-se: se, na letra "b", o réu poderá apelar em liberdade sem pagá-la – mesmo porque o crime é inafiançável – por que exigi-la aqui, para um ilícito bem menos grave? Seria uma contradictio in terminis. Um absurdo. Prestada a fiança, ele também será posto em liberdade para interpor seu recurso, se a hipótese for a da letra "c". Na "d", por outro lado, ao réu só será dado apelar, se recolher-se ao cárcere (estando solto) ou nele for mantido (se preso)12. É o único caso.

Sem embargo, a corrente "dois" explora o viés da cautelaridade das prisões processuais para justificá-las, harmonizando-a com a disposição constitucional ora em apreço. Não há mais falar, destarte, em prisão antes do trânsito em julgado da condenação, a menos que concorram os pressupostos que ensejem a tutela cautelar. Noutros termos: na ordem constitucional vigente, a prisão não mais existe como reflexo automático da sentença ou como mera condição de admissibilidade recursal, sendo tolerada apenas se estiverem presentes os motivos que imponham a prisão preventiva (arts. 311 e 312 do CPP).

A preventiva, portanto, assume papel determinante nesse tema. Ela é o epicentro gravitacional desse estudo, já que é a prisão cautelar por excelência, na forma esquadrinhada pela lei. De fato, se ela for cabível, deverá ser decretada até no corpo da própria sentença! Em contrapartida, se assim não for, o acusado terá direito a recorrer em liberdade, ainda que ele seja reincidente e inafiançável o delito.

A tese primeira é engenhosa, mas não se pode acolher-lhe o alvitre. O sistema das prisões cautelares é a projeção dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos no campo do processo penal. Logo, não se pode impingir a alguém a custódia cautelar, se ausentes os seus requisitos, sob pena de diluir-se a força normativa do direito fundamental ao estado de inocência, segundo o qual a prisão antes do julgamento definitivo deva ser tida como uma autêntica exceptio às liberdades constitucionais.

Ademais, a construção dogmática inicial apresenta uma grande incongruência, qual seja a manifesta desproporcionalidade com a Súmula 393 do STF13. Ei-la: "para requerer a revisão criminal o condenado não é obrigado a recolher-se à prisão". Atente-se que não são feitas ressalvas nem distinções, podendo-se concluir que a regra incide em todos os casos14. Deveras, se não há necessidade de aprisionar-se o réu para a propositura da revisão criminal, ação impugnativa autônoma que pressupõe justamente o trânsito em julgado da condenação, por que prendê-lo com base unicamente em uma decisão de primeiro grau, sujeita a uma miríade de recursos? Seria um total contra-senso. Pensar diferente feriria, a talho de foice, o princípio constitucional (implícito) da razoabilidade.

Nem se diga que a prisão preventiva não serviria de parâmetro para esse estudo, pelo fato de só poder ser decretada até o fim da "instrução criminal" (art. 311 do CPP), isto é, antes da sentença. A insipidez dessa alegação já denuncia a sua completa artificialidade. A teoria constitucional dominante – a enxergar o processo como um grande postulado fundamental, o do due process of law – permite essa leitura, vencendo a rigidez semântica da expressão empregada pelo codex. A lei é que se ajusta ao texto constitucional e não o inverso.

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O assunto, enfim, é inacabado e merece atenção especial da ciência do processo. Este pequeno trabalho propõe-se apenas a despertar o interesse pela análise da matéria, sem a menor pretensão de exauri-la ou de pôr termo às indefinições que a acompanham.


NOTAS:

1. CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 6. ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 216.

2. Código de processo penal interpretado. 11. ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 712.

3. A referência feita à prisão administrativa guarda fidelidade com o texto de MIRABETE. Nada obstante, o posicionamento amplamente majoritário na doutrina é no sentido de que ela foi ab-rogada pela CF/88.

4. A terminologia princípio da inocência é adotada por TOURINHO FILHO (Código de processo penal comentado. v. I. 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2003). Entretanto, outras expressões são utilizadas para designá-lo, como o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade.

5. Malgrado a semelhança entre este princípio e o do favor rei, eles não se confundem. O favor rei é mais amplo e compreende o princípio do in dubio pro reu e o próprio princípio da inocência. Trata-se, enfim, de uma relação de gênero e espécie (MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. 4. ed., São Paulo: Atlas, 2004, p. 390).

6. Até a promulgação da atual Carta da República, esse princípio não vinha explicitado entre os direitos fundamentais. Da análise dos outros princípios (garantias) constitucionais, no entanto, já se inferia a sua existência no ordenamento jurídico brasileiro (BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 5. ed., São Paulo: Saraiva, 2003).

7. Esta sutileza deve ser encarecida, já que encerra uma tendência do Direito Constitucional contemporâneo, na lição de FREDIE DIDIER JR (Direito processual civil. v. I. 4. ed., Salvador: Jus Podivm, 2004, p. 3). Reconhecer num princípio os traços de um verdadeiro direito fundamental significa irrogar-lhe todos os seus atributos próprios, maximizando-o em seu alcance e sentido. Assim, ele não mais deverá ser encarado apenas como uma mera regra axiomática, mas como um direito de eficácia plena e aplicabilidade imediata (art. 5º, §1º, CF).

8. Como ensina PAULO RANGEL (Direito processual penal. 8.ed., Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004, p. 581) a tutela cautelar penal recai sobre coisas ou pessoas. Naquela, encontram-se o seqüestro, o arresto e hipoteca legal (arts. 125 a 148 do CPP) e, nesta, as prisões decretadas no curso da ação penal.

9. Exposição de motivos do código de processo civil, item "11".

10. Observar o teor das Súmulas 9 do STJ e 7 do TJ/PB.

11. A condição de primário e de portador de bons antecedentes deve ser expressamente reconhecida pelo julgador na sentença, sob pena de omissão suprível por embargos declaratórios (art. 382 c/c 594 do CPP).

12. A exemplo do que ocorre com a prisão decorrente da decisão de pronúncia (art. 408, § 2º do CPP).

13. Este é o magistério do professor Eugênio Pacelli de Oliveira, exposto neste ensaio (in Curso de processo penal. 3. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2004).

14. É a parêmia latina ubi lex non distinguit nemo potest distinguere: onde a lei não distingue, ao intérprete não caberá fazê-lo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1.BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 5. ed., São Paulo: Saraiva, 2003.

2.CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil. v. I. 2. ed., São Paulo: Bookseller, 2003.

3.CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 6. ed., São Paulo: Saraiva, 2001.

4.DIDIER JR, Fredie. Direito processual civil. v. I. 4. ed., Salvador: Jus Podivm, 2004.

5.MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de processo penal interpretado. 11. ed., São Paulo: Atlas, 2003.

6.________. Processo Penal. 17. ed., São Paulo: Atlas, 2005.

7.MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. 4. ed., São Paulo: Atlas, 2004.

8.OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 3. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

9.RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 8. ed., Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004.

10.TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de processo penal comentado. v. I. 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2003.

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Sobre o autor
Haroldo Serrano de Andrade

advogado em João Pessoa (PB), especialista em Direito pela Escola Superior da Magistratura da Paraíba, pós-graduando em Direito Processual Civil pela UNISUL

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Haroldo Serrano. Prisão decorrente de condenação criminal recorrível:: breves considerações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 802, 13 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7284. Acesso em: 19 abr. 2024.

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