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Violação do direito à privacidade pelos bancos de dados informatizados

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23/09/2005 às 00:00
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Este trabalho analisará um tema do chamado novo Direito Civil-Constitucional: a violação do direito à privacidade pelos bancos de dados informatizados, dentro da caracterização como direito da personalidade.

RESUMO

Esta monografia consiste na análise da violação do direito à privacidade pelos bancos de dados informatizados. Para isso, parte da evolução do conceito do direito a estar só e seu conteúdo nas esferas da teoria dos círculos concêntricos. Em uma perspectiva civil-constitucionalista, enquadra esse direito como humano e fundamental, destacando a legislação civil e constitucional aplicável, dentro da caracterização como direito da personalidade. Com o propósito de demonstrar a ameaça que os bancos de dados representam à vida privada, descreve os avanços tecnológicos e o uso nocivo que os cadastros fazem da informação pessoal, ao cruzar dados, cuja classificação é mostrada. Examina um dos problemas nucleares da dogmática constitucional, qual seja, o conflito de direitos fundamentais, notadamente à informação e à privacidade. Pelo encaminhamento dado à pesquisa realizada, diante do crescimento das redes de comunicação, troca de dados e dos meios de armazenamento de informações, aponta o cabimento de atualizar o conceito de privacidade para "o direito de controlar o uso que outros fazem das informações que digam respeito a determinada pessoa". Pela ausência de mecanismos eficazes de controle, busca demonstrar a necessidade de uma tutela legal específica ao assunto, apresentando modelos internacionais e princípios orientadores ao regulamento proposto.

Palavras-chave: privacidade, banco de dados, direitos da personalidade, tecnologia.


INTRODUÇÃO

Este trabalho analisará um tema do chamado novo Direito Civil-Constitucional: a violação do direito à privacidade pelos bancos de dados informatizados.

O impulso inicial motivador para a escolha do assunto foi a inclusão pioneira da matéria - direitos da personalidade - no novo Código Civil, diploma legal que é objeto de estudo do curso de pós-graduação a que essa monografia se destina.

A relevância política-social da pesquisa advém do fato do ser humano ter uma esfera de valores próprios que são postos em sua conduta não apenas em relação ao Estado mas, também, na convivência com as demais pessoas. Alguns desses direitos têm cunho patrimonial, outros são insuscetíveis de aferição econômica. Respeitam-se, por isso mesmo, não somente aqueles direitos que repercutem materialmente, mas, também, os relativos aos seus valores pessoais, que refletem em seus sentimentos. Não é mais possível ignorar esse cenário em uma sociedade que se tornou invasora porque reduziu distâncias, tornando-se pequena e, por isso, poderosa nas trocas que proporciona.

Essa troca de informações opera, dentre outras formas, nos bancos de dados informatizados que, quando usados de forma nociva são ameaças à vida privada, pois sua expansão e desenvolvimento apresentam vantagens de acesso e cruzamento de dados até pouco tempo inexistentes.

Há uma lacuna criada pela rapidez dos progressos tecnológicos em contraste com a lentidão dos processos sociais que acompanham o Direito; em razão disso torna-se fundamental a discussão da problemática.

A investigação do problema justifica-se igualmente pelo cunho teórico-científico: o reconhecimento dos direitos da personalidade como categoria de direito subjetivo é relativamente recente; no âmbito do direito privado seu avanço é lento, embora contemplado constitucionalmente.

Inicialmente, cabe considerar alguns aspectos da privacidade.

Com a publicação do livro "1984", o escritor britânico George Orwell criou um clássico sobre privacidade e autonomia. Ali foi cunhado o termo big brother, tão presente na mídia atual. Na estória, um Estado autoritário usa espiões, captação e controle de imagens, revisionismo histórico e controle sobre os meios de comunicação para manter o seu poder. Os tempos de Estados controladores e monolíticos, entretanto, acabaram. Orwell pensava que o comunismo representava a grande ameaça à liberdade individual.

O futuro que se aproxima não tem um grande irmão que observa e "protege" a todos. Ao invés disso, tem centenas de pequenos irmãos, diminutos intrusos do dia-a-dia, que nos vigiam e monitoram. As novas ameaças à privacidade não têm suas raízes no comunismo, mas no capitalismo, com sua economia liberal de mercado, tecnologia avançada e troca eletrônica de informações [01].

É necessário, de antemão, afastar-se do senso comum, que entende a palavra privacidade como aquilo que deve ser escondido, o que é secreto; aquilo que os demais não podem saber. Privacidade, pelo contrário, é um dos mais importantes direitos civis; demonstra nossa autonomia, integridade e liberdade. Não se trata, portanto, de fechar a porta das casas para ali dentro vender drogas ou cometer outras ilicitudes, mas sim no direito que as pessoas têm de controlar quais detalhes de suas vidas devem ficar dentro de suas moradas e quais devem ser levados para fora delas.

Privacidade engloba diferentes aspectos: há a privacidade nas informações, que envolve o estabelecimento de regras para a circulação de dados; a corporal, que diz respeito à proteção física dos corpos contra técnicas invasivas como testes genéticos e de novos medicamentos; nas comunicações, abrangendo a intimidade nas cartas, telefonemas e outros meios e a territorial, que limita a intrusão no ambiente doméstico ou de trabalho [02]. O presente estudo limitar-se-á à primeira, também conhecida como "privacidade na proteção de dados".

O que fazer ao descobrir que alguém, em uma página pessoal na Internet, publicou assuntos particulares de outra pessoa? Ou que alguém enviou um email com fotos embaraçosas de uma outra pessoa com seus amigos? Ou que, ao pesquisar em sites de busca como o Google um nome próprio qualquer, de uma pessoa desconhecida, vários dados seus estão disponíveis ao alcance de um clique? Esses cenários são hoje mais realidade do que ficção e representam uma pequena amostra dos desafios à manutenção da privacidade no início do século XXI. Além da promessa de crescimento econômico e tecnologia de ponta, os cidadãos dessa geração igualmente trazem consigo preocupações com sua privacidade.

Ao mesmo tempo em que a informática e suas inovações são um verdadeiro milagre para a troca de informações, por outro lado são pesadelos para a privacidade individual. As novas tecnologias mudaram valores e sepultaram a linha entre vida pública e privada; nos trouxeram inúmeros benefícios, mas pagamos um preço tendo nossos hábitos, gostos e atividades vigiados e arquivados.

Alguns dizem que esse é o preço a se pagar e sustentam que se alguém deseja gozar dos confortos da modernidade, deve abdicar em algum grau de sua privacidade. Assim, por exemplo, se quer pagar a conta do restaurante com o cartão de crédito, deve aceitar o fato de que seus hábitos de consumo alimentar estão sendo monitorados e arquivados em um banco de dados sobre o qual não se tem acesso ou controle. Será esse um fundamento legítimo?

A monografia é divida em três capítulos: primeiramente analisa a privacidade, sua evolução histórica, conceitos, conteúdo e seu enquadramento como direito humano e fundamental, dentro do enfoque civil-constitucionalista. No segundo capítulo os objetos são os bancos de dados e as informações: avanços tecnológicos, classificação e uso das informações e, dentro do marco do Direito Constitucional, a colisão dos direitos fundamentais à privacidade e à liberdade de informação. A terceira parte apresenta o controle da circulação de informações pessoais, apontando a necessidade dessa tutela e apresentando princípios e paradigmas legislativos nacionais e internacionais.

Ao termo da exposição, espera-se ter contribuído para a pesquisa e a reflexão científica deste atual e relevante tema.


1 DIREITO À PRIVACIDADE

1.1 Evolução

A privacidade é uma preocupação que faz parte da História. A Bíblia faz-lhe várias referências. Havia a ela uma consistente proteção nos primórdios das culturas hebraica e grega e na China antiga. Essa proteção, quase sempre, era focalizada no "direito a estar só". [03]

Os antigos tinham uma menor ou quase nula necessidade de proteger sua intimidade, pois sua vida transcorria em espaços públicos. [04] No Império Romano, a vida privada era delimitada de forma "negativa", ou seja, era um resíduo daquilo que uma pessoa poderia fazer sem atentar contra seus deveres e funções públicas. Até o fim da Idade Média não havia uma clara noção de indivíduo e as atitudes e relações tinham caráter coletivista.

O fim dos Estados absolutistas gerou um espaço a ser preenchido por novos agentes sociais, causando um aumento na distinção entre a área de influência estatal e a área de atuação dos indivíduos que vivenciavam o emergente liberalismo. Ressurge assim o antigo dualismo romano entre direito público e privado. [05]

As características do que conhecemos como sociedade civil surgiram com o Estado Moderno. O indivíduo passa a ser um cidadão frente ao Estado e os aspectos de sua personalidade adquirem novo valor. Dentre eles, a privacidade torna-se elemento importante na nascente sociedade industrial moderna.

1.2 Privacidade

Os primeiros contornos jurídicos sobre o assunto ocorreram com a positivação do princípio da inviolabilidade do domicílio, na Inglaterra do século XVII, onde surgiu o princípio man’s house is his castle, delimitando o espaço físico privado do cidadão frente ao Estado. [06] Assim, ainda na Idade Média, a habitação das pessoas era reconhecida como lugar de sossego e recato.

Entretanto, foi o surgimento da burguesia e sua necessidade de garantir a propriedade privada que trouxe o tema de volta ao lume jurídico. O aparecimento das classes sociais e dos novos castelos – a casa do burguês – exigia respeito no que tange as ingerências alheias e aos interesses pessoais. Havia agora o desejo do isolamento.

Não por acaso, certos aspectos enrubescedores da festa de casamento de sua filha, divulgados nos jornais de Boston da época, levaram o advogado Samuel Warren [07] a escrever um novo e fundamental capítulo à matéria. Juntamente com Louis Brandeis [08], os dois causídicos sustentaram, em 1890, na Harvard Law Review, que a privacidade estava sendo atacada por inovações recentes e métodos do comércio. Segundo eles, as pressões da sociedade moderna deveriam levar a um "right to privacy" (direito à privacidade) que protegeria o que eles chamaram de "direito de estar só" (right to be alone). Os autores se recusaram a acreditar que a privacidade deveria morrer para que a tecnologia florescesse. Essa sua formulação doutrinária transcendeu o tempo e ainda hoje esse artigo é considerado uma das mais influentes contribuições científicas legais já publicadas. [09]

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O marco internacional da legislação moderna é a Declaração de Direitos Humanos da ONU [10], de 1948, que reconhece a privacidade como um direito fundamental. Prescreve em seu artigo 12 que ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, família, domicílio ou correspondência, nem ataques a sua honra e reputação, tendo contra tais intromissões ou ataques direito à proteção da lei.

1.3 Conceituação e conteúdo

Dentre os direitos humanos, o direito à privacidade é um dos de mais difícil definição conceitual e abrangência. "Direito a estar só", "direito a ser deixado em paz", "direito de escolher o que é exposto aos outros", várias foram as tentativas de conceituá-lo.

Celso Lafer o define como

[...] o direito do indivíduo de estar só e a possibilidade que deve ter toda pessoa de excluir do conhecimento de terceiros aquilo que a ela só se refere, e que diz respeito ao se modo de ser no âmbito da vida privada. [11]

Já Bastos o tem como

[...] a faculdade que tem cada indivíduo de obstar a intromissão de estranhos em sua vida privada e familiar, assim como de impedir-lhes o acesso a informações sobre a privacidade de cada um, e também impedir que sejam divulgadas informações sobre esta área da manifestação existencial do ser humano. [12]

O indivíduo tem, perante todos os demais e também perante o Estado, a prerrogativa de ser mantido em paz no seu recanto. É o mecanismo de defesa da personalidade humana contra ingerências ou injunções alheias ilegítimas [13], preservando partes dessa personalidade que deseja estarem excluídas do conhecimento dos outros. O dinamismo da vida moderna, contudo, torna difícil a tarefa de limitar física e psicologicamente a privacidade, que varia de acordo com o contexto.

Quanto ao conteúdo, o limite entre o público e o privado é conferido pelo campo do compartilhado e do não-compartilhado. Certos aspectos da vida são mostrados ao conhecimento alheio, enquanto outros requerem resguardo. Cabe ao indivíduo, e somente a ele, decidir aquilo que será compartilhado com todos, com quem bem entender, ou, em sua esfera mais íntima, com nenhuma outra pessoa.

A doutrina elaborou então a teoria dos círculos concêntricos [14], que estabelece três esferas. O círculo mais externo, de maior diâmetro, representa a esfera da vida privada, com as matérias relacionadas às notícias e atitudes que o sujeito deseja excluir do conhecimento alheio, e.g imagem física, hábitos, costumes e manias.

Dentro desta esfera está outro círculo, o denominado confidencial, onde a confiança é o elemento que leva o individuo a dividir seu conteúdo com outra pessoa, excluindo terceiros em geral e aqueles pertencentes ao ciclo da vida privada e familiar, e. g. situação financeira, vida conjugal, etc.

A última e mais interna esfera é a do secreto, onde se encontra a reserva, o sigilo, as manifestações da pessoa que não devem chegar ao conhecimento alheio, haja vista a sua intimidade no sentido mais restrito.

Sobre todas as três esferas, todavia, o indivíduo quer manter um controle exclusivo e essa tutela se dá pelo que se chama de direito à privacidade.

Privacidade não significa solidão ou isolamento, e esse é o conteúdo predominante da doutrina de Brandeis e Warrren, assim como do seu tempo. O rigth to be alone – direito a estar só – é o direito de isolar-se, afastar-se dos demais e afastá-los, representando o necessário isolamento mental para a paz de espírito. Ainda que seja um elemento de saúde mental, o isolamento é apenas uma das facetas da vida privada, assim como a reserva, o recato e o segredo, entre outras.

A psique seria o círculo ainda mais concêntrico de proteção à intimidade. Nesse círculo não se pode penetrar, pois ele é o campo próprio da inviolabilidade e o Direito protege esses bens impedindo a tortura psicológica e física, a "lavagem mental" e a confissão forçada. [15]

Parte da doutrina sustenta que há uma distinção entre privacidade (ou vida privada) e intimidade, sendo esta uma esfera mais reservada daquela. O tratamento legal das duas, contudo, é o mesmo, recebendo a mesma proteção, razão pela qual tal separação parece desprovida de propósito jurídico.

1.4.Enquadramento legislativo da matéria na perspectiva civil-constitucionalista

O novo Código Civil (lei nº 10.406, de 10-01-2002) inovou ao disciplinar a privacidade no diploma privado. Contudo, a matéria não se esgota nessa esfera jurídica, pois constitui igualmente um direito humano e fundamental, protegido pela Constituição, assim como faz parte dos direitos da personalidade. Ademais, a legislação penal e administrativa tem dispositivos sobre o assunto.

1.4.1.Direito humano e fundamental e as disposições constitucionais

Conforme mencionado, a privacidade consta no rol da Declaração dos Direitos Humanos da ONU. Tais direitos são hoje entendidos como a concreção histórica do princípio da dignidade humana.

Ao assegurar um mínimo de respeito ao homem só pelo fato de ser homem, o princípio coadunou-se com a valorização da pessoa humana, portadora de valores éticos insuprimíveis, tais como a dignidade, a autonomia e a liberdade. A pessoa é uma categoria histórica, ou seja, sua valorização, como ser humano, independente da comunidade, grupo ou classe social a que pertença e é fruto do desenvolvimento da civilização humana. [16]

Na Antiguidade, a categorização filosófica da pessoa não permitia essa axiologia. Em Roma, as leis das XII Tábuas e o Corpus Iuris Civilis já faziam menção à noção de pessoa, porém de forma institucionalizada. Com o advento do Cristianismo, contudo, a situação se alterou. As premissas cristãs de amar ao próximo e fazer o bem a todos alteraram o panorama mundial como nunca visto antes. O ser humano deixou de ser considerado apenas uma porção de matéria, sendo alçado ao vértice dos valores normativos. A mudança dessa perspectiva permitiu ao homem agir de forma autônoma nas relações com seu semelhante e ao mesmo tempo partir em direção ao aprofundamento e conhecimento de sua própria subjetividade. [17] Assim, o homem passa a ser a imagem e semelhança de Deus, sujeito dotado de valores intrínsecos a sua própria humanidade. A idéia de fraternidade universal incorpora-se à História e, na Idade Média, a noção de pessoa ganha unicidade e individualidade. Mas foi no Renascimento que o pensamento crítico desvinculou-se de Deus e centrou-se na racionalidade humana. O ser humano passa a ser o centro de todo o saber e também a sua fonte. [18] O Existencialismo e o Socialismo, compreendendo a pessoa não como um objeto, mas como um ser que está e que se afirma no mundo, firmaram a noção atual de personalismo.

Em sua gênese, os direitos humanos foram concebidos como liberdades individuais oponíveis ao Estado (direitos de defesa). Num segundo momento, com o crescente aumento do conceito de cidadania e da participação dos indivíduos nas decisões políticas do Estado, surgem novos direitos (os direitos sociais), exigindo uma ação positiva do Estado. Hodiernamente, indivíduos e empresas privadas, em decorrência do poder econômico que eventualmente possuem, muitas vezes violam os direitos humanos, fazendo com que esses direitos sejam oponíveis àquelas pessoas. [19] Procura-se proporcionar a cada homem legitimidade para a defesa de seus próprios direitos essenciais contra qualquer arbitrariedade, um conjunto mínimo de prerrogativas perante o Estado e prover-lhe condições para uma vida digna.

Peres Luño define os direitos humanos como

[...] um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos a nível nacional e internacional. [20]

Vale dizer, portanto, que esses direitos são variáveis no tempo e relativos, pois alguns inclusive colidem entre si. Tamanha é a sua aceitação universal, contudo, que a Declaração Universal dos Direitos do Homem foi promulgada pela ONU em 1948 sem nenhum voto contrário, explicitando dessa forma que sua abrangência independe de ideologias ou credos.

Ao deixarem de ser apenas reivindicações políticas para se transformarem em normas jurídicas, os direitos humanos passam pela "constitucionalização", tornando-se, então, direitos fundamentais. [21]

A Constituição Brasileira dedica a totalidade do "Título II" aos direitos e garantias fundamentais, do artigo 5º ao 17º.

Edilsom Farias leciona que

[...] o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana cumpre um relevante papel na arquitetura constitucional: ele constitui a fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais. Aquele princípio é o valor que dá unidade e coerência ao conjunto dos direitos fundamentais. [22]

Com efeito, a Constituição Federal de 1988 acompanhou a tendência internacional de incluir na relação dos direitos fundamentais a proteção à intimidade e à vida privada. Anteriormente a ela não havia disposição constitucional no Brasil acerca da matéria, mencionada apenas de modo implícito. O seu reconhecimento existia apenas em documentos internacionais, como na já mencionada Declaração dos Direitos Humanos.

Consta no artigo 5º, inciso X da Carta Magna: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação."

Percebe-se, de imediato, que a Constituição procedeu a uma diferenciação entre intimidade e vida privada. Pode-se presumir que o constituinte utilizou a expressão vida privada em sentido estrito, ou seja, como uma das esferas da intimidade. Tércio Sampaio Ferraz Júnior considera a intimidade como um âmbito mais exclusivo da vida privada. [23]

Vários outros dispositivos constitucionais tratam separadamente de aspectos que, filosófica ou sociologicamente, estariam situados no âmbito da privacidade como, por exemplo: a proibição de penas cruéis ou invasivas do corpo e da dignidade (inc. III e XLIII); a proteção da imagem (inc. V); a liberdade de pensamento, de consciência e de crença (inc. IV e VI); a inviolabilidade da casa (inc. XI); o sigilo das correspondências e das comunicações (inc. XII); o direito de autor (inc. XXVII); o respeito à integridade física e moral do preso (inc. XLIX); o direito de conhecer e retificar informações pessoais (inc. XXXIII e LXXII); a escusa de consciência (inc. VIII).

Observa-se que a inviolabilidade prevista no inciso X exclui os aspectos que têm tratamento específico no texto constitucional. Aplicando-se a regra da especialidade, os assuntos relativos à privacidade que são expressamente regulados ficam excluídos do âmbito do inciso X, que permanece como um repositório geral e subsidiário. Portanto, são os aspectos da privacidade que não estão expressamente regulados que se submetem à inviolabilidade prevista no inciso X. [24]

Explicitamente prescrito na Constituição como direito fundamental, os direitos à intimidade e à vida privada passam a gozar de regime jurídico especial, tendo a garantia de "cláusulas pétreas" (CF, art. 60, par. 4º, IV); aplicação imediata (CF, art. 5º, par. 1º) e a proibição de violar o núcleo essencial.

1.4.2 Caracterização como direito da personalidade

O direito à privacidade possui duplo caráter: além de ser um direito fundamental (com sua especial proteção pelo ordenamento jurídico), é, ao mesmo tempo, um dos direito da personalidade.

A summa divisio do Direito, surgida ainda em Roma, divide essa ciência entre direito público e privado. Edilsom Farias leciona que:

[...] verificaremos que os direitos da personalidade se encontram subsumidos ao âmbito do direito privado. A divisão mencionada põe claramente de manifesto que, embora a categoria dos direitos fundamentais mantenha uma estreita relação com a categoria dos direitos da personalidade, ambas pertencem a planos distintos do direito. É dizer: os direitos da personalidade reportam-se ao âmbito específico do direito civil, "que implica tensão entre particulares. Sua esfera de operatividade se estende tão só às relações ‘inter privatos’". Só quando esses direitos da personalidade são recepcionados pela Lex Superior, como direitos fundamentais, é que "a primeira conseqüência de sua constitucionalização como direitos fundamentais radica, pois, em sua exigibilidade frente aos poderes públicos". [25]

Os direitos personalíssimos são componentes indissociáveis da personalidade, sem os quais a pessoa não existiria em sua plenitude. Trata-se de defender bens inerentes à própria existência, elementos constitutivos da personalidade do sujeito. São direitos subjetivos excludendi alios, ou seja, a pessoa defende sua personalidade, e não seu patrimônio, exigindo um comportamento negativo dos demais.

Esse direitos são indisponíveis (insuscetíveis de alienação), via de regra, pois essa sua característica é relativa. São igualmente inatos (originários da pessoa e dela não podem ser retirados, sem eles não se configura a personalidade), absolutos (oponíveis erga omnes, eficazes contra todos), extrapatrimoniais (não avaliáveis economicamente), intransmissíveis (não podem ser transferidos a esfera jurídica de outrem), imprescritíveis (não se extinguem pelo uso, nem pela inércia), impenhoráveis, vitalícios (terminam com óbito do autor, pois são indispensáveis enquanto ele viver), irrenunciáveis e ilimitados (pois não se pode imaginar um número fechado de direitos inerentes à pessoa).

Maria Helena Diniz reconhece nesses direitos

[...] uma dupla dimensão: a axiológica, pela qual se materializam os valores fundamentais da pessoa, individual ou socialmente considerada, e a objetiva, pela qual consistem em direitos assegurados legal e constitucionalmente, vindo a restringir a atividade dos três poderes, que deverão protegê-los contra quaisquer abusos, solucionando problemas graves que possam advir com o progresso tecnológico, p. ex., conciliando a liberdade individual com a social. [26]

Na classificação doutrinária dos direitos da personalidade, na qual se considera o aspecto fundamental da personalidade que é objeto de tutela jurídica, a privacidade, juntamente com a liberdade civil, política e religiosa, a honra, o recato e outros, enquadra-se na defesa da integridade moral. A integridade física abrange, por sua vez, a vida, o próprio corpo vivo ou morto, as partes separadas do corpo, etc. Por derradeiro, estão incluídas na defesa da integridade intelectual a liberdade de pensamento, a autoria científica, artística e literária, entre outros.

A doutrina dos direitos da personalidade é moderna e ainda não está estruturada em definitivo. Caberá a ela traçar-lhes contornos mais precisos, aprimorando a construção teórica do tema.

1.4.3.Inclusão da privacidade no Código Civil e a constitucionalização do direito privado

O Código Napoleão não trazia dispositivos específicos aos direitos da personalidade. Foi ele o paradigma para o antigo "Código Beviláqua", de 1916, que fez jus a sua fonte e igualmente não regulava a matéria.

O crescimento da importância doutrinária dos direitos da personalidade (tema típico do direito privado, conforme visto) e a evolução legislativa (estão disciplinados nos Códigos da Itália, Portugal e Peru, entre outros) trouxeram a inovação ao Código Civil de 2002, atualmente em vigor. A disciplina da matéria, entretanto, deu-se de forma tímida, aproveitando, parcialmente, o anteprojeto de 1963 de Orlando Gomes, que a inseriu em dois capítulos do seu trabalho.

Apesar da relevância do assunto, seu desenvolvimento no diploma legal não foi extenso, talvez com a intenção de respeitar os direitos protegidos constitucionalmente e evitar uma listagem taxativa dos direitos da personalidade.

Em sua parte geral, no Título destinado às pessoas naturais, a novel norma civilista trata em seu Capítulo II dos direitos da personalidade, nos artigos 11 a 21. No que tange especificamente à privacidade, o artigo 21 prevê que "A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma".

A nova codificação civil ressalta o caráter de necessidade e essencialidade dos direitos da personalidade, na medida em que não podem faltar à vida humana em sociedade. Por isso, não permite limitações em seu exercício nem mesmo por parte do titular, excetuados os casos em que a própria lei assim o permitir.

Ademais, a dignidade humana é resguardada mediante sanções. A lei prevê mecanismos efetivos de tutela, legitimando o ofendido ou lesado indireto em requerer medida de proteção (através de medidas cautelares que suspendam os atos de desrespeito ou ameaça), permitindo assim sua invocação tanto na prevenção como na cessação de lesão. Dispôs também sobre a reparação dos possíveis danos causados, pela qual deverá ser movida uma ação que declarará ou negará a existência de lesão, podendo ser cumulada com ação de perdas e danos a fim de indenizar, patrimonial e moralmente, o lesado.

Os estreitos limites em que o direito privado operava (direito à propriedade e liberdade de contratar) encontram na doutrina moderna uma redefinição. O individualismo mostrou-se inoperante em muitas situações e as mudanças sociais das últimas décadas sugerem até mesmo uma certa superposição do direito público sobre o privado.

A publicização atinge o direito privado e, ao direito civil cabe, no dizer de Danilo Doneda

[...] desempenhar uma tarefa fundamental nesta nova estrutura, que é a de garantir os direitos do homem quando cotejados em suas relações privadas diante do perigo de inviabilizar sua tutela em todo o universo de atuação de sua realidade jurídica [...]. [27]

A Constituição é a norma substancial e, tendo o sistema a intenção de ser unitário (hierarquicamente sistematizado), os princípios e valores ali expressos devem espraiar-se por todo o tecido jurídico.

É em torno da pessoa, com toda sua dimensão ontológica, que se funda a concepção do novo paradigma, na sua tutela, em si mesma e nas suas relações. A tendência é de repersonalização e priorização dos valores essenciais.

Deve o direito civil assegurar ao homem os seus direitos personalíssimos, prestando, na expressão de Luiz Edson Fachin, o seu "serviço da vida". [28] Os direitos da personalidade, dentre eles a privacidade, são o "terreno de encontro privilegiado entre o direito privado, as liberdades públicas e o direito constitucional". [29]

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Sobre o autor
Rodrigo Zasso Schemkel

analista judiciário da Justiça Federal do Rio Grande do Sul, pós-graduado em Direito Civil pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (Ipejur)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHEMKEL, Rodrigo Zasso. Violação do direito à privacidade pelos bancos de dados informatizados. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 812, 23 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7309. Acesso em: 28 mar. 2024.

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