No dia 30 de março de 2000, o Poder Executivo, na calada da noite, sorrateiramente, fez inserir a seguinte disposição na 17ª. reedição da Medida Provisória n. 1.963:
Art. 5º Nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano.
Parágrafo único. Sempre que necessário ou quando solicitado pelo devedor, a apuração do valor exato da obrigação, ou de seu saldo devedor, será feita pelo credor por meio de planilha de cálculo que evidencie de modo claro, preciso e de fácil entendimento e compreensão, o valor principal da dívida, seus encargos e despesas contratuais, a parcela de juros e os critérios de sua incidência, a parcela correspondente a multas e demais penalidades contratuais.
A justificativa do Planalto, noticiada pela imprensa, é, no mínimo, risível: havia necessidade de legalizar uma prática corrente do mercado.
Ora, ora, ora...
Prática corrente, entretanto, absolutamente ilegal a teor do que dispõem o art. 4° do Decreto n. 22.626/33 (Lei de Usura) e o verbete n. 121 da Súmula/STF.
Essa medida provisória possui implicações importantes, principalmente no que diz respeito aos financiamentos imobiliários promovidos por instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, sem contar os juros do crédito pessoal, do capital de giro das empresas, bem como do cheque especial.
Convém lembrar que o art. 4° do Decreto n. 22.626/33 proíbe a capitalização de juros com periodicidade inferior a anual.
Aliás, mesmo considerando constitucional o art. 5° da indigitada medida provisória n. 1.963-17 e não é -, a norma que veda o anatocismo (cobrança de juros capitalizados de forma composta) continua válida, vigente e eficaz.
A contrario sensu, com muito mais razão, a prática do anatocismo (cobrança de juros capitalizados) resta vedada às outras pessoas, mormente que a medida provisória é clara ao permitir a capitalização somente às instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional.
Não há olvidar que, para integrar o Sistema Financeiro Nacional, a instituição deverá obter, previamente, autorização de funcionamento do Banco Central, além de constituir-se nos moldes de sociedade anônima (Lei n. 4.595/64, arts. 17, 18 e 25).
Entretanto, como veremos, a constitucionalidade da indigitada medida provisória que tenciona instituir o anatocismo às instituições financeiras é duvidosa e discutível.
1. Relevância e urgência
As medidas provisórias, insculpidas no artigo 62 da Constituição Federal de 1988, constituem inovação jurídica. Expedidas pelo Presidente da República, vieram compensar a União pela supressão do decreto-lei da novel Carta Constitucional.
Ao editar medida provisória, o Presidente da República submete seu teor à apreciação do Congresso Nacional.
Entretanto, sua órbita de atuação deveria estar circunscrita aos pressupostos de relevância e urgência.
Nesse sentido, ensina o preclaro Professor Paulo de Barros Carvalho que tais vocábulos são portadores de conteúdo de significação de latitude ampla, sujeitos a critérios axiológicos cambiantes, que lhes dão timbre subjetivo de grande instabilidade. Isto é outro problema, cuja solução demandará esforço construtivo da comunidade jurídica, especialmente do Poder Judiciário. Aquilo que devemos evitar, como singela homenagem à integridade de nossas instituições, é que tais requisitos sejam empregados acriteriosamente, sem vetor de coerência, de modo abusivo e extravagante, como acontecera com o decreto-lei (Paulo de Barros Carvalho. Curso de direito tributário. São Paulo, Saraiva, 1996, p. 50).
A medida provisória que ora examinamos visa permitir a capitalização de juros (anatocismo) às entidades integrantes do Sistema Financeiro.
Ora, já não lhes é suficiente todo o entulho legislativo proveniente da ditadura?
É preciso observar que os bancos já dispõem, por exemplo, do Decreto-lei n. 911/69, sem falar no Decreto-lei n 70/66, além do entendimento segundo o qual a limitação constitucional das taxas de juros não é auto-aplicável (§ 3° do art 192 da Constituição).
Não podemos esquecer o recente e escandaloso socorro às instituições mal-administradas.
Posta assim a questão, que relevância e urgência para a nação pode ter a instituição da usura e do anatocismo no âmbito do Sistema Financeiro Nacional?
Em qualquer lugar civilizado do mundo os bancos sobrevivem e muito bem com taxas médias de 10% ao ano!
Diversamente disso, no Brasil, as taxas de juros no cheque especial atingem o estratosférico patamar de 200% ao ano.
Se isso não bastasse, ainda querem o anatocismo (juros sobre juros), nos moldes da Medida Provisória sub oculis.
Sinceramente, gostaríamos de saber o que se passou na mente do tecnocrata de plantão, responsável por tamanho dislate.
Sim, não há outra explicação embora possa existir para o fato deste imensurável absurdo jurídico. Não queremos crer que tenha partido do próprio Presidente da República.
Em verdade trata-se de inserção de matéria enrustida, sem qualquer preocupação sistemática, em medida provisória que trata da administração dos recursos de caixa do Tesouro Nacional, ou seja, nada tem a ver com a liberação do anatocismo, de único e exclusivo interesse dos bancos.
Aliás o próprio fato de se editar dezessete vezes uma medida provisória já constitui evidente teratologia.
2. Invasão de competência exclusiva do Congresso Nacional
A análise da norma constitucional decorrente do parágrafo único do art. 62 permite concluir, com rigor científico, que o exercício de lídimo direito do Poder Legislativo rejeitar medidas provisórias por omissão, está sendo ilegalmente tolhido pelo Poder Executivo.
O próprio tratamento que a Constituição atribui às matérias rejeitadas (art. 60, §5° e art. 67), não permite concluir a possibilidade de medidas provisórias serem reeditadas, mormente que possuem força de lei.
Outro ponto que não pode escapar à análise é o fato de a medida provisória possuir natureza jurídica diversa daquela dimanada dos outros instrumentos contidos no art. 59 da Constituição.
Posta essa premissa, a Constituição, no art. 22, em seus incisos VI e VII, estabelece que é da competência da União legislar sobre o sistema monetário e de medidas e política de crédito.
Prossegue o texto no art. 48, inc. XIII, conferindo exclusivamente ao Congresso Nacional a competência para dispor sobre a matéria financeira, cambial e monetária, instituições financeiras e suas operações.
Finalmente, o § 1º do art. 68, proíbe a delegação de atos de competência exclusiva do Congresso Nacional.
Ora, se a matéria não pode ser delegada, por óbvio que não pode ser objeto de medida provisória, de iniciativa do Presidente da República!
É de clareza meridiana, portanto, que a indigitada medida provisória, ainda mais na sua 17ª. reedição, não poderia, de forma alguma, tratar de matéria exclusiva do Congresso Nacional.
Entendimento contrário seria admitir a medida provisória como fonte de todas as normas do sistema em completa intromissão no Poder Legislativo, constituindo afronta à clássica divisão de Poderes, supedâneo do Estado Democrático de Direito.
Da forma como estamos indo, como vaticina Paulo de Barros Carvalho (ob. cit. p. 57), não tardará, estaremos diante de medidas provisórias que, posteriormente endossadas pelo voto de três quintos do Congresso, em dois turnos, emendem a própria Constituição Federal.
É o começo do fim da compostura!
Portanto, ante a tais razões, entendemos que a medida provisória que liberou a capitalização de juros é absolutamente inconstitucional.
3. Hipótese da validade da medida provisória
Suponhamos que, por absurda hipótese mas não improvável o Poder Judiciário não acolha esses e outros fundamentos da inconstitucionalidade da medida provisória que liberou a capitalização mensal de juros aos bancos.
Nesse caso, todas as pessoas que firmaram contratos ou pagaram juros capitalizados de forma composta aos bancos e demais integrantes do Sistema Financeiro Nacional antes de 30 de março de 2000, possuem, agora, o cristalino direito de pleitear a devolução dos valores pagos indevidamente (repetição do indébito), quiçá em dobro, nos termos do art. 42 do Código de Defesa do Consumidor.
Explica-se: se houve necessidade da medida provisória, os atos e contratos anteriores firmados pelos integrantes do Sistema Financeiro Nacional estavam em desacordo com o art. 4° do Decreto n. 22.626/33 e súmula 121 do STF, que vedam o anatocismo (juros capitalizados de forma composta ou juros sobre juros).
É que, nos termos do art. 5° , XXXVI, da Constituição Federal, o ato jurídico perfeito deve ser preservado até em face de normas cogentes, sob pena de infração ao princípio da irretroatividade das leis.
No caso vertente, ainda que a cobrança de juros capitalizados com periodicidade inferior a um ano seja feita posteriormente à edição da medida provisória, no caso de contratos celebrados antes do início da sua vigência (30 de março de 2000), permanece a ilegalidade decorrente da vedação do anatocismo insculpida no art. 4° do Decreto n. 22.626/33 e Súmula 121 do STF.
É indubitável que o contrato válido entre as partes é ato jurídico perfeito, dele decorrendo, para uma ou para ambas, direitos adquiridos. Se lei posterior cria para terceiro direito sobre o objeto do contrato e oponível a ambas as partes contratantes, não pode ela, sob pena de alcançar o ato jurídico perfeito e o direito adquirido entre as partes, ser aplicada a contratos validamente celebrados antes de sua vigência (STF. Recurso Extraordinário n. 102216).
4. Situação jurídica das demais pessoas, não integrantes do Sistema Financeiro Nacional
Outra questão interessante que exsurge da análise da teratológica norma contida na Medida Provisória n. 1.963-17, diz respeito à situação jurídica das demais pessoas que não sejam integrantes do Sistema Financeiro Nacional.
Convém notar, outrossim, a importância da interpretação a contrario sensu da Medida Provisória n. 1.963-17, na exata medida em que, se a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano é permitida às instituições financeiras, corolário lógico é a vedação a todas as pessoas não integrantes do Sistema Financeiro.
A conclusão, outrora clara, agora é cristalina: continua vedada a capitalização composta de juros (juros sobre juros anatocismo) nos exatos termos do art. 4° do Decreto n. 22.626/33 e Súmula 121 do STF, inclusive pela aplicação do sistema de amortização da tabela price, prática useira e vezeira de construtoras e incorporadoras que se aventuram no financiamento próprio (a esse respeito, vide o nosso: Obrigações abordagem didática, 2ª. ed. São Paulo, Juarez de Oliveira, 2000, pp.180/185 e, também, artigo de nossa autoria: Revista de Direito do Consumidor RT - n. 28, p. 129).