4. Câmaras Municipais e os órgãos públicos despersonalizados
No Direito Público, como não poderia deixar de ser, também se fez necessário o enquadramento jurídico das situações em que, havendo um sujeito de direitos, não se poderia apontar um ser personalizado correspondente. É o caso dos órgãos públicos, dentre os quais, a título de exemplo, destacam-se as Câmaras Municipais (semelhantes, quanto a este aspecto, às Assembléias Estaduais e ao Legislativo Federal).
Seguindo o disposto no caput do art. 18 da Constituição Federal [36], o art. 41 [37] da Lei 10406/02, ao enumerar em seus incisos as pessoas jurídicas de direito público interno, não se refere às Câmaras Municipais, assim como não o fazem os incisos do art. 12 do Código de Processo Civil (Lei n° 5.869/73).
No mesmo sentido a doutrina, que já estabeleceu a paz quanto ao fato de não serem dotadas as Câmaras Municipais de personalidade jurídica própria. O mais interessante, contudo, é notar que, ainda que reconhecendo a legitimidade das Câmaras para o exercício de certas prerrogativas concernentes à sua natureza, a doutrina relaciona essa aptidão à idéia de personalidade, ao referir-se à personalidade judiciária dos órgãos referidos. Por todos, o tradicional Hely Lopes:
"A capacidade processual da Câmara para a defesa de suas prerrogativas funcionais é hoje pacificamente reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência. Certo é que a Câmara não tem personalidade jurídica, mas tem personalidade judiciária. Pessoa jurídica é o Município. Mas nem por isso se há de negar capacidade processual, ativa e passiva, á Edilidade, para ingressar em juízo quando tenha prerrogativas ou direitos a defender."
Como se percebe, não se identifica nas Câmaras qualquer traço de personalidade. Mas tendo em vista a sua natureza e suas funções, torna-se inevitável o reconhecimento, em favor destes órgãos, de certas prerrogativas e, igualmente, certos deveres.
O correto enquadramento desta realidade jurídica deve partir do reconhecimento da existência de entes não personificados (no caso as Câmaras Municipais), ainda assim passíveis de direitos, deveres, prerrogativas, etc. É assim, ao nosso ver, que melhor se poderiam explicar as soluções que, nos casos concretos, a jurisprudência acertadamente tem dado aos problemas envolvendo as edilidades municipais.
A legitimidade processual das Câmaras já é devidamente reconhecida, assim como também o é o que se tem chamado "personalidade judiciária". Vejamos estes exemplos da abundante jurisprudência a respeito:
"As edilidades, embora disponham de capacidade processual, ativa e passiva, para defesa de suas prerrogativas institucionais, como órgãos autônomos da administração, não possuem personalidade jurídica, mas, apenas, a judiciária." (REsp 23926/SP;DJ 18.04.1994 p.08475; relator Ministro Antônio de Pádua Ribeiro; segunda turma)
"Processual civil. Execução contra Câmara Municipal. 1. Em nossa organização jurídica, as Câmaras Municipais não tem personalidade jurídica. 2. A capacidade processual e limitada a defender interesses institucionais próprios e vinculados a sua independência e funcionamento.3. Executivo fiscal promovido contra Câmara Municipal não tem condições de prosseguir, pela absoluta ilegitimidade do ente passivo de mandado." (REsp 88856/SP; DJ 19.08.1996 p.28440; relator Ministro José Delgado; primeira turma)
E mesmo no que se refere às Assembléias Estaduais:
"Ao impetrar o "mandamus" em face da decisão da 15ª Câmara Civil Do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo - que, na realidade, é o próprio Poder Legislativo - agiu em nome próprio, nos termos do art. 9º da Constituição Estadual, posto que o ato judicial combatido não afeta Tão-somente os direitos dos Srs. Deputados Estaduais, Individualmente considerados, mas uma prerrogativa institucional assegurada constitucionalmente ao Poder Legislativo e de fundamental importância para o efetivo exercício de sua atividade-fim. Ressalte-se que o ato impugnado configura, em última análise, Inconstitucional ingerência do Poder Judiciário no Poder Legislativo, pois afronta o princípio da independência dos três Poderes.
Na situação examinada não se trata de se enquadrar o fenômeno processual em debate no círculo da substituição processual ou da legitimidade extraordinária. O que há de se investigar é se a Assembléia Legislativa está a defender interesses institucionais próprios e vinculados ao exercício de sua independência e funcionamento, como de fato, "in casu", está. A ciência processual, em face dos fenômenos contemporâneos que a cercam, tem evoluído a fim de considerar como legitimados para estar em juízo, portanto, com capacidade de ser parte, entes sem personalidade jurídica, quer dizer, possuidores, apenas, de personalidade judiciária.
No rol de tais entidades estão, além do condomínio de apartamentos, da massa falida, do espólio, da herança jacente ou vacante e das sociedades sem personalidade própria e legal, todos por disposição de lei, hão de ser incluídos a massa insolvente, o grupo, classe ou categoria de pessoas titulares de direitos coletivos, o PROCON ou órgão oficial do consumidor, o consórcio de automóveis, as Câmaras Municipais, as Assembléias Legislativas, a Câmara dos Deputados, o Poder Judiciário, quando defenderem, exclusivamente, os direitos relativos ao seu funcionamento e prerrogativas. (ROMS 8967 / SP; DJ 22.03.1999 P.00054; relator Ministro Humberto Gomes de Barros; primeira turma)
Como se pode ver, a jurisprudência, mais do que a doutrina (e em meio a esta, principalmente a do direito privado) tem buscado dar solução aos problemas decorrentes da existência de órgãos públicos (assim como de entes particulares) não personalizados. E no cumprimento desta tarefa, tem conseguido dar tratamento condizente a estas figuras, pelo simples fato de reconhecer-lhes certas prerrogativas e deveres, ou seja, a qualidade de sujeito de direitos.
Todavia, mesmo na área em que a ciência jurídica mais tem avançado quanto a este tema, que é o campo do direito processual e público, ainda assim se percebe a tendência de se relacionar a aptidão para o exercício de certas prerrogativas à idéia de personalidade. É a demonstração de que a "teoria da equiparação" se encontra enraizada não no direito privado ou no direito público, mas em todos os ramos, através de sua inserção na própria teoria geral dos sujeitos de direito.
5. Aspectos de uma Teoria dos Entes Despersonalizados
Pelo que já expusemos, acreditamos ter demonstrado que a elaboração de uma teoria sistemática acerca dos entes despersonalizados não é tarefa desprovida de utilidade. Passaremos, então, desde este ponto, a levantar determinados aspectos em torno dos quais, segundo entendemos, possa ser erigida a teoria dos entes despersonalizados.
5.1. Os Entes Despersonalizados e sua definição (gênero próximo e diferença específica)
O primeiro destes aspectos, como não poderia deixar de ser, reside na conceituação desta figura que se situa no centro da teoria que propomos. Para que não restassem dúvidas, descartamos, desde o início, e reiteradamente nas linhas precedentes, a preponderante opinião segundo a qual sujeitos de direitos sejam unicamente as pessoas. Sujeito de direito, com Fábio Ulhoa Coelho, "é o centro de imputação de direitos e obrigações referido em normas jurídicas, com a finalidade de orientar a superação de conflitos de interesses que envolvem, direta ou indiretamente, homens e mulheres". [39] Em outras palavras, há de ser tido como sujeito de direito todo e qualquer ente a que o ordenamento atribua a aptidão para direitos, deveres ou obrigações.
Neste sentido, é preciso reforçar que a atribuição da referida aptidão a seres não humanos (como as pessoas jurídicas ou uma massa falida) não tem o efeito de alçá-los à mesma dignidade valorativa e ética que recai sobre a pessoa humana ou sobre o ente despersonalizado humano (nascituro). Da mesma forma, a inserção do nascituro na mesma categoria a que pertencem os animais irracionais (entes despersonalizados) não lhe retira a principal de suas características, qual seja, o fato de ser humano. Em suma, entendemos que o ser humano, pelo próprio valor que o ordenamento positivo lhe atribui, não se há de confundir com outros sujeitos de direitos quaisquer.
Da afirmação de que o ser humano pode ser um ente despersonalizado, portanto, não decorre nenhuma diminuição de sua humanidade (pelo contrário), assim como do fato de se classificar o ser humano como um animal também não decorre o não reconhecimento de sua racionalidade, e dos demais atributos que o distinguem dos outros animais.
Assentado o conceito jurídico de sujeito de direito, passemos ao de ente despersonalizado.
É Fábio Ulhoa Coelho, dentre os autores nacionais, quem tem reiterado, em diversas obras, desde a Desconsideração da Personalidade Jurídica [40], que os sujeitos de direitos podem ser dotados de personalidade ou não. O mesmo entendimento, aliás, que sustenta em seu Curso de Direito Comercial [41] e, de forma mais didática e clara, em seu Curso de Direito Civil [42]. Quanto ao tema, tal autor vem sendo um farol, e é dele que tomamos emprestada, para a devida conceituação do ente despersonalizado, a respectiva diferença específica.
A lógica tradicional, com base em Aristóteles, propõe que a definição resida na indicação do genus proximum e da differentia specifica, sendo aquele, de forma grosseira, o gênero a que há de pertencer o objeto da definição, e esta a característica, o traço identificador, que diferencie o objeto dos demais de outras espécies.
Quanto ao gênero próximo, já deixamos estabelecido: entes despersonalizados são verdadeiros sujeitos de direitos. Ainda que possam ser objeto do direito de propriedade alheio (pessoas jurídicas, animais, etc.), o gênero no qual há de se inserir a espécie ente despersonalizado é o dos sujeitos de direitos.
Mas já que, como entendemos, nem todo sujeito de direito é pessoa, cabe-nos oferecer critério que sirva como de distinção entre os dois tipos de sujeitos de direitos. Eis aí a diferença específica, explicando em que os entes despersonalizados, ainda que sujeitos de direitos, diferem da outra espécie de sujeitos de direitos (a das pessoas).
A diferença está em que, enquanto as pessoas possuem aptidão genérica para direitos, deveres e obrigações, os entes despersonalizados possuem tal aptidão limitada tanto pela legislação quanto por sua própria natureza. Estes, portanto, só podem titularizar direitos ou participar de relações jurídicas que o ordenamento expressamente lhes autorize ou que se refiram diretamente à sua natureza e suas finalidades.
Assim é que o nascituro, desde que concebido, tem todos os direitos (livres de qualquer condição) que lhe decorrem de sua natureza humana. Tem o direito à vida, à saúde, e a todos aqueles que, ainda que não expressos, sejam adequados à sua condição e natureza, o que não impede a existência de certos direitos condicionais de titularidade do nascituro, notadamente de cunho patrimonial. Além disso, levada em conta a natureza do ente como critério delimitador de sua aptidão para direitos, deveres e obrigações, como observou o Prof. Cezar Fiúza, em aula dada no ano de 2002, no curso de pós graduação em Direito da Faculdade de Direito da UFMG, fica mantida a dignidade humana em face de outros entes despersonalizados.
O mesmo com relação a certos órgãos públicos, aos quais, como nos casos das câmaras municipais, legislativos estaduais ou federal e poder judiciário, dentre outros, costuma-se reconhecer a titularidade de certas prerrogativas inerentes à sua natureza e funções institucionais.
Da mesma forma o condomínio, que pode contratar funcionários, realizar obras e as demais atividades referentes à sua natureza e finalidades, sem, contudo, ser dotado de autorização para ir além disso. E o mesmo com o espólio, que existe apenas para dar solução e enquanto durar a pendência das relações jurídicas deixadas pelo de cujus.
Sem mais nos aprofundarmos na demonstração da adequação da definição adotada, podemos deixá-la enunciada, como ponto de partida para a construção de uma teoria dos entes despersonalizados, na qual se há de demonstrar, aí sim, pormenorizadamente, a sua adequação ao ordenamento jurídico pátrio.
Ente despersonalizado, portanto, é o sujeito de direitos dotado de aptidão para contrair direitos, deveres e obrigações, limitada pela legislação e por sua própria natureza.
Por outro lado, pessoa é o sujeito de direitos com aptidão genérica para contrair direitos, deveres e obrigações.
Em ambos os casos, a aptidão é abstrata, mas, desde que haja o centro de imputação jurídica (e isto não pressupõe a imputação concreta), como efetivamente há em relação aos entes despersonalizados, estará presente o sujeito de direitos.
Por fim, junte-se a tudo isto o fato de que o ordenamento vigente estabelece tal precedência valorativa ao ser humano (que tecnicamente não é o mesmo que pessoa humana), que é preciso enquadrá-lo com as devidas deferência e dignidade, que o diferenciam dos outros sujeitos de direitos, personalizados ou não, e lhe mantêm a unidade, sendo ou não personalizado.
5.2. A Legitimação e a Representação dos Entes Despersonalizados
Uma teoria dos entes despersonalizados não pode deixar de oferecer explicação para a questão da legitimação para o exercício de direitos por parte dos entes despersonalizados, assim como para a questão da representação destes mesmos entes.
No que se refere à legitimação, ou à possibilidade do exercício das situações jurídicas em nome do próprio ente despersonalizado, parece-nos ser suficiente o instrumental técnico de que já dispõe o direito privado.
Assim é que em certas situações o direito será pleiteado pelo próprio ente despersonalizado que lhe detém a titularidade (legitimação ordinária), como no caso em que a massa falida é autora ou ré de alguma das ações previstas na legislação falimentar, ou na hipótese em que o espólio se coloca na condição de devedor ou credor em uma relação obrigacional, ou, ainda, nos casos em que um condomínio possa ser condenado devedor em questão envolvendo sua responsabilidade aquiliana; e, em outras situações, o direito do ente despersonalizado será pleiteado por terceiro, em nome deste (legitimação extraordinária), como nas hipóteses envolvendo o direito dos irracionais.
O aspecto da legitimação, portanto, parece demandar, apenas, uma maior sistematização e organização das hipóteses, sem que sejam necessárias categorias diversas das já disponíveis no direito positivo (legitimação ordinária e extraordinária). O mesmo pode ser dito da questão da representação dos entes despersonalizados, isto é, de quem deve agir em nome do ente despersonalizado nos casos de legitimação ordinária.
Mais uma vez as categorias tradicionais do direito privado são suficientes para o equacionamento da questão. Na maior parte dos casos possíveis, estar-se-á diante de situação semelhante à que se verifica em relação às pessoas jurídicas, ou seja, tudo se resumindo à questão de se saber quem pode agir em nome do sujeito de direito, e a que título. Em outros casos, como em questões concernentes ao nascituro, poder-se-iam utilizar outras categorias, como a da representação necessária, por exemplo.
Não é nosso objetivo proceder, neste ensaio, à efetiva aplicação sistemática destas categorias aos entes despersonalizados. Muito menos que isso, queremos apenas atentar para que, no que tange a estes dois temas fundamentais (legitimação e representação), a teoria geral do direito já oferece o instrumental necessário, tanto para o entendimento quanto para a aplicação prática. O reconhecimento da qualidade de sujeito ao ente despersonalizado não demanda outras categorias.
5.3. Outros Pontos
Não temos, quanto a esta enumeração de pontos tidos como relevantes para a teoria dos entes despersonalizados, nenhuma pretensão quanto à exaustão dos tópicos. Pelo contrário, propomos apenas alguns dentre os inúmeros aspectos de interesse.
Seguindo esta linha, não podemos deixar de ressaltar a necessidade de se diferenciarem e compararem as diversas espécies de entes despersonalizados, na medida em que dentre estes possam ser estabelecidas distinções e classificações úteis para a teoria, e muitas vezes necessárias para o entendimento de algumas situações práticas.
Não se pode desconsiderar que o nascituro, pelo só fato de ser humano, deve estar submetido a princípios e valores diversos dos pertinentes aos demais entes despersonalizados. A natureza humana é elemento que individualiza não só o nascituro, dentre os entes despersonalizados, como o próprio homem, dentre as pessoas. É perceptível, também, a semelhança existente entre certos entes despersonalizados e as pessoas jurídicas, assim como há o ente despersonalizado que não se assemelha nem à pessoa humana nem à jurídica (o ente despersonalizado animal irracional).
Caberá a uma teoria dos entes despersonalizados, portanto, versar sobre as semelhanças e dessemelhanças dos despersonalizados entre si, assim como entre estes e os diversos tipos de pessoas. Tudo no sentido de desenvolver e organizar classificações dotadas de utilidade para a melhor compreensão do referido ente e de suas variações.