Pode-se afirmar, sem contradita plausível, que a principal virtude dos clássicos era a propriedade com que empregavam os vocábulos e as construções vernáculas.
“Adaptar e apropriar sempre as palavras e o estilo à natureza das ideias e dos pensamentos enunciados”[1], esta a pedra de toque por onde se conheciam e encomendavam à estima pública.
Que se trata de mais que árduo ofício, bem se infere destas palavras do insigne Rui a propósito de Flaubert: “(...) na escola dos grandes escritores de outros tempos se matava em escavar le mot propre, vocábulo consubstancial à ideia, carne do pensamento, específico e insubstituível na sua função de o revestir”[2].
Este, unicamente, é o modo por que um escritor logra altear-se além da craveira mediana e comunicar durabilidade às produções de seu espírito.
Nisso de propriedade no falar e no escrever, cai a talho a sentença de Carlos Lacerda, notável tribuno e infatigável lidador da palavra: “Saber o nome de cada coisa, e não chamá-la coisa, chamá-la exatamente pelo nome, eis o que é saber um idioma”[3].
Ao advogado, importa-lhe muito conhecer, a uma com os termos e palavras de sua língua, os do estilo jurídico ou do foro. Vocábulos que na linguagem vulgar podem ter cabida, são de todo o ponto insofríveis na locução jurídica. Não é muito, assim, que o comum dos escritores empregue, inconsideradamente, roubo por furto e crime por contravenção, uma vez que esses vocábulos, a maioria dos léxicos portugueses registra como sinônimos.
Ao advogado, contudo, por amor da propriedade (ou precisão) a que deve atender a linguagem jurídica escrita, será defeso fazê-lo. Para ele, cada uma dessas palavras haverá de constituir termo próprio. Outro tanto, com as vozes interrogar e inquirir, citar e intimar, etc. Usá-las, indiferentemente, sem olhar por sua acepção restritiva, seria infringir de rosto um dos mais importantes cânones do estilo do foro: a propriedade. São os outros: a expressão lógica, a brevidade e a clareza. Este conjunto de atributos é que dá à linguagem do Direito, na frase cunhada por Jhering, a “elegantia juris”, ou estética jurídica[4].
Foi a preocupação da propriedade terminológica e certo gosto, que os temas relacionados com a Advocacia Criminal soem infundir no espírito dos que a professam com todas as veras, o que nos moveu a pôr em questão a seguinte matéria: a forma, qual seria mais correta, advogado criminal ou advogado criminalista?
A usança do pretório depara-nos, com efeito, ambas as expressões. Os que fazem profissão da vida forense, por outra parte, empregam-nas indistintamente. Uma só, porém, cuidamos que satisfaz do mesmo passo ao requisito da precisão da linguagem e ao rigor da lógica.
À mingua de documentos jurídico-literários que nos pudessem desatar a dúvida, lembrou-nos confiá-lo àquele que, em pontos de boa linguagem era, por unânime consenso dos doutos, árbitro competentíssimo: o Prof. Napoleão Mendes de Almeida (v. Anexo I). Rogamos a Sua Excelência a especial mercê de escrever-nos se convinha ao gênio da língua, se dizia com os preceitos da lógica e preservava a exação da gramática a locução advogados criminais, elementar e distintiva da associação que, no Estado de São Paulo, congrega os profissionais que atuam nas instâncias da Justiça Criminal.
Com igual solicitude que sabedoria, respondeu-nos o provecto e abalizado mestre da boa linguagem, firme em Caldas Aulete e Laudelino Freire (que houve pelos maiores dicionaristas), que “é criminal o que concerne ao julgamento dos crimes, e não ao advogado. É criminalista o advogado ou jurisconsulto que trata especialmente de assuntos criminais”. Advogado criminalista, ou simplesmente criminalista, é, pois, como se deve chamar ao “que trata especialmente de assuntos criminais”. A não ser assim, houvéramos de designar também por advogado comercial, constitucional ou tributário quem milita nestas áreas do Direito, o que seria, sobre incurial, insólito. Por força do sufixo ista — que inculca a ideia de atividade, profissão, partido, dedicação, etc. —, forjou a língua viva extenso rol de locuções substantivas. “Exempli gratia”: médico legista, cirurgião dentista, filósofo tomista, partido trabalhista, estado militarista, teoria finalista da ação, etc.
Nisto, portanto, já não há que debater: “Napoleo locutus, causa finita”!
A dicção advogado criminalista, aliás, já recebera de Teófilo Braga, em 1923, foros de cidade na língua portuguesa[5].
Fora, entretanto, imprudência, não só injustiça, calar os nomes dos que, pela haverem correta e vernácula de lei, não se desdenharam de empregar a forma advogado criminal. E, o que é mais: à conta de sua muita autoridade, não parecera bastante escrever-lhes os nomes neste papel; era mister gravá-los com letras de ouro, que são estas as que convêm aos varões de grande esfera, como Eliézer Rosa[6], Romeiro Neto[7] e Alfredo Tranjan[8].
E, pois, estamos falando do advogado criminalista, leve em paciência o pio leitor, traslademos aqui este lanço primoroso de quem, por mais de um predicamento louvável, como tal merece havido: Paulo José da Costa Jr. Ser criminalista, ao parecer desse eminente cultor da Ciência Penal, “ser criminalista, enfim, é dar tudo de si. Dedicação, sacrifício. Sem temor e sem nenhuma esperança de gratidão ou de recompensa. A grande recompensa é a paz interior. A tranquilidade serena de consciência. A sensação confortadora do dever cumprido”[9].
Notas
[1] Ernesto Carneiro Ribeiro, Páginas de Língua e de Educação, 1939, p. 68.
[2] Réplica, nº 475.
[3] Uma Rosa é uma Rosa, é uma Rosa, 2a. ed., p. 77.
[4] Cf. Edmundo Dantès Nascimento, Linguagem Forense, 1980, p. 222.
[5] Cf. Magalhães Lima, Episódios da Minha Vida, 2a. ed., p. 17; Livraria Universal; Lisboa.
[6] “Há no semblante austero dos grandes advogados criminais uma discreta sombra que atesta a convivência diuturna com a angústia alheia” (Romeiro Neto, o Último Romântico da Advocacia Criminal, 1984, p. 21).
[7] “Eis a missão do advogado criminal em três palavras: humanizar a Justiça” (Fora do Júri, p. 101).
[8] “Tratou do tema, em famosa carta escrita aos filhos, o maior dos advogados criminais que o Brasil produziu: Evaristo de Moraes” (A Beca Surrada, 1a. ed., p. 90).
[9] In Folha de S.Paulo, 6.3.77.
Anexo I
1. Transcrição da carta-consulta, com estabelecimento do texto:
São Paulo, 8 de setembro de 1992
Ao Excelentíssimo Senhor
Doutor Napoleão Mendes de Almeida
Rua Senador Paulo Egídio, 72
Nesta
Querido e abalizado Mestre:
Vimos hoje desempenhar-nos, bem que serodiamente, de grave e natural obrigação, em que os criminalistas de São Paulo estamos para com Vossa Excelência, (“omissis”).
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Estimado Professor, antes de concluir esta missiva gratulatória, tomáramos nos declarasse tormentosa dúvida, e é: convém ao gênio da língua, orna com os cânones da lógica e preserva a boa exação da gramática a locução advogados criminais, elementar e distintiva da associação dos que professamos a advocacia criminal (Associação dos Advogados Criminais do Estado de São Paulo)? Não lhe seria, acaso, preferível a denominação advogados criminalistas ou criminalistas simplesmente? Associação Paranaense dos Advogados Criminalistas, de feito, é o nome por que se conhece, no vizinho estado das araucárias, a entidade nossa coirmã…
Árbitro competentíssimo em pontos de linguagem, far-nos-á Vossa Excelência particular mercê, desatando-nos esta controvérsia.
Com a mais viva afeição e profundo respeito, subscrevemo-nos cordialmente.
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Carlos Biasotti
Presidente
2. Carta-resposta (no lugar que interessa à consulta):