A teoria do direito penal do inimigo e sua influência na legislação brasileira

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6) POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO DIREITO PENAL DO INIMIGO NA ATUALIDADE.

Os tópicos previamente abordados nos levam à seguinte questão: É possível a aplicação da Teoria do Direito Penal do Inimigo na sociedade em que vivemos? A resposta é simples: Não.

A Teoria do Direito Penal do Inimigo, como foi criada por Günther Jakobs se utilizava de uma definição ampla e inexata de inimigo, o qual gerava grande insegurança jurídica, incompatível com um Estado de Direito.

Além disso, em sua teoria, ao tratar o indivíduo que comete um delito como inimigo, seria permitido a contenção plena do mesmo, ou seja, a possibilidade de que o mantenha em prisão indefinidamente, como uma neutralização da ameaça que é. Novamente, esse tipo de prisão perpétua, baseada, inclusive, unicamente na periculosidade do indivíduo, não é compatível com os direitos e garantias essenciais ao estado de direito.

Ainda nesse sentido, em relação ao perigo que o indivíduo representa, não é possível simplesmente suprimir seus direitos e garantias unicamente para se manter a pacificação social, pois tais direitos e garantias são provenientes de uma evolução histórica do direito, não sendo possível que os mesmos sejam suprimidos unicamente para garantir o bem comum, de maneira pura e simples, não delimitada.

Por fim, a aplicação da Teoria do Direito Penal do Inimigo, do modo como foi elaborada, também é incompatível com o princípio constitucional de individualização da pena, pois, para todos aqueles que são considerados inimigos, não há um limite de pena ou modo de individualizar a mesma.

Porém, mesmo diante de tais fatos, não é possível ignorar que muitas disposições da legislação atual tem como fundamentação disposições características da Teoria do Direito Penal do Inimigo, sendo, portanto, compatíveis com o Estado de Direito.

Primeiramente, quanto ao problema da definição de “Inimigo” para Günther Jakobs, percebe-se que, ao se adotar a lei dos crimes hediondos no Brasil, lei essa considerada uma aplicação do Direito Penal do Inimigo, foi estipulado que o tratamento diferenciado previsto na mesma deveria ser aplicado somente para os indivíduos que cometessem os crimes elencados na referida lei. Por mais que tal lei não inclua o conceito de “inimigo”, e nem se baseie, expressamente, na Teoria do Direito Penal do Inimigo, é uma lei que suprime certos direitos penais e processuais penais para indivíduos que cometem crimes mais gravosos, crimes esses elencados em seu artigo 1º. Ou seja, ao invés de estipular um conceito amplo e subjetivo de inimigo, são considerados como tal aqueles que cometem os crimes delimitados em um rol taxativo, previsto na própria lei, sendo, portanto, compatível com o Estado de Direito.

Ainda nesse sentido, a Teoria do Direito Penal do inimigo, conforme idealizada com Jakobs, em face da definição ampla e irrestrita de “inimigos”, deixa com que a classificação do indivíduo como cidadão ou inimigo fica a critério do judiciário, gerando uma grande possibilidade de arbitrariedades do julgador, sendo incompatível com um Estado de Direito. Porém, conforme já mencionado, tal possibilidade estaria superada com a restrição daquele considerado como “inimigo” por lei, através de critérios objetivos, como, por exemplo, o cometimento de crimes considerados mais graves.

Em relação ao debate sobre a conflito entre direitos individuais e pacificação social, conforme foi mencionado, não há como propor uma resposta definitiva sobre o quanto se pode flexibilizar os direitos individuais em face do bem comum. Porém, diante da periculosidade do indivíduo, é necessário, e até mesmo aceito atualmente, tal flexibilização, conforme pode ser visto na lei do abate, que autoriza até mesmo a aplicação de uma pena de morte para indivíduos que estejam em uma aeronave considerada “hostil”, preenchidas determinadas condições, ou a supressão de direitos exercida pela lei dos crimes hediondos, para aqueles que cometem os delitos considerados hediondos.

Esses dispositivos mencionados não preveem, explicitamente, se tratar da relativização de direitos individuais pelo bem coletivo, porém, evidente tal caráter.

Ainda nesse sentido, conforme explica Cesare Beccaria[171], um magistrado não pode, mesmo buscando resguardar o bem público, aumentar a pena de um cidadão sem que haja lei prevendo tal possibilidade, e, portanto, somente o legislador poderia definir as penas de cada delito. Dito isto, é evidente que nada obsta o legislador de estabelecer penas mais rigorosas para certos delitos, além de existir a possibilidade de se estabelecer medidas extraordinárias, buscando a pacificação social.

Quanto à questão da individualização da pena, percebe-se que, muitas vezes, o Direito Penal do Inimigo acaba por aplicar as penas sem o critério da proporcionalidade, não levando em consideração todas as circunstâncias do crime e daquele que o comete. Em sua teoria, Günther Jakobs entendia que o inimigo era um risco para a sociedade, e, portanto, deveria ser contido. Uma interpretação simplista dessas poderia levar até mesmo um indivíduo que comete um crime leve, porém, considerado perigoso por tal conceito subjetivo previsto em sua teoria, a ser considerado como “inimigo”, fazendo com que o mesmo acabe recebendo uma pena maior que outro indivíduo que cometesse algum crime pior.

Porém, tais fatos não significam que não é possível tratar o “inimigo” de modo diferente do “cidadão” sem violar o princípio da individualização da pena. Pelo contrário, tal princípio prevê que a pena deve ser individualizada de acordo com as circunstâncias do delito, não bastando tratar todos da mesma maneira, sendo imprescindível tratar de maneira mais rigorosa os crimes considerados piores ou mais reprováveis. Diante disto, é possível afirmar que a aplicação de um regime de cumprimento de pena diferenciado para os crimes hediondos não viola tal princípio, pois tais circunstâncias implicam em um tratamento desigual diante de circunstâncias desiguais, servindo, pelo contrário, para individualizar a pena.

Como é de amplo conhecimento, no Brasil, a pena não é cumprida de fato. Existe a progressão de regime; a questão do cumprimento de prisão domiciliar ou em regime aberto, por falta de vagas no regime semi-aberto; dentre outras disposições que possibilitam que o individuo, por exemplo, passe de um regime fechado para o aberto ao cumprir apenas 1/6 da pena.

Cabe ressaltar que, com a falta de vagas no regime de cumprimento de pena estabelecido, não é possível o cumprimento de pena em regime mais gravoso, devendo ser cumprida em regime menos gravoso. Nesse sentido, prevê a súmula vinculante 56 do Supremo Tribunal Federal: “A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nessa hipótese, os parâmetros fixados no RE 641.320/RS.”[172]

Levando-se em conta a grande periculosidade do indivíduo que pratica um crime hediondo, justifica-se a aplicação da progressão de regime diferenciada, em 2/5 ou 3/5 (dependendo de ser reincidente ou não) e do regime inicial fechado, pois, caso contrário, um indivíduo que comete um crime hediondo poderia iniciar o cumprimento de pena em regime semiaberto, ou, por falta de vagas, regime aberto. Tais disposições, sem sombra de dúvida, não são o suficiente para intimidar o indivíduo que comete um crime tão gravoso quanto um crime hediondo, deixando uma grande possibilidade de reincidência. Com isso, o Direito Penal torna-se incapaz de cumprir sua função primordial, a pacificação social.

A questão da reincidência foi, inclusive, objeto de pesquisa pelo Conselho Nacional de Justiça, pesquisa essa que chegou à alarmante conclusão de que aproximadamente 25% dos condenados voltam a ser condenados novamente por outro crime no prazo de 5 anos[173]. Cabe ressaltar que, por motivos óbvios, essa estatística não envolve indivíduos que cometeram novos crimes cuja autoria não foi esclarecida, sendo possível crer que tal número possa ser ainda maior.

Diante de tais fatos, evidente que um maior rigor das penas torna-se imprescindível para a intimidação do autor para que o mesmo não volte a cometer crimes. Inclusive, mesmo já sendo razoável defender o enrigecimento das penas para crimes comuns, mais ainda para os crimes hediondos, pois um indivíduo que comete um crime tão grave quanto os elencados na lei dos crimes hediondos demonstra grande periculosidade e possibilidade de reincidência.

Porém, como foi dito anteriormente, o estabelecimento de um regime integralmente fechado para o indivíduo que comete pela primeira vez um crime hediondo, impossibilita que o mesmo venha a ser reabilitado através da progressão de regimes, dificultando que o mesmo volte a fazer parte da sociedade, volte a ser considerado um “cidadão”.

Porém, a partir do momento que tal indivíduo teve tal oportunidade e reincidiu em um crime tão gravoso quanto um crime hediondo, demonstra não ter se intimidado pela aplicação da pena, também demonstra não ter se reabilitado e nem que pretende parar de cometer delitos, devendo, portanto, cumprir sua pena em regime integralmente fechado, como o “inimigo” da sociedade que demonstra ser. 


CONCLUSÃO.

No decorrer deste trabalho foi explicada a Teoria do Direito Penal do Inimigo de Günther Jakobs e demonstrada a grande repercussão que gerou.

Porém, apesar da grande importância da mesma, percebe-se que, como o garantismo penal está em alta, a aplicação de tal teoria, durante todo esse tempo, tem sido duramente criticada pelos doutrinadores e estudiosos do ramo do direito, quase que em sua totalidade.  Porém, importante ressaltar que, apesar disso, ainda existem doutrinadores que são favoráveis à sua teoria, ou, ao menos, favoráveis à certos fundamentos presentes na mesma.

Independente de tais fatos, foi demonstrado que os fundamentos da Teoria do Direito Penal do Inimigo já encontram-se presentes na legislação brasileira atual, apesar do sucessivo abrandamento de tais disposições, além das críticas recorrentes sofridas pela referida teoria e dos dispositivos legais que se fundamentam na mesma.

Nesse sentido, tem se como exemplos de legislação que se fundamenta nos princípios do Direito Penal do Inimigo, a Lei dos Crimes hediondos, a Lei do Abate, a previsão constitucional de inafiançabilidade e imprescritibilidade de certos crimes (mesmo não hediondos), a previsão de Regime Disciplinar Diferenciado, dentre outras. Percebe-se que, nesses casos citados, o indivíduo que comete um crime sofre uma supressão de garantias penais e processuais penais em crimes considerados mais graves pelo legislador, com grande semelhança à Teoria do Direito Penal do Inimigo.

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Conforme foi explicado previamente nesse trabalho, a Lei dos Crimes Hediondos traz uma série de supressões de garantias processuais penais em face da periculosidade dos crimes cometidos, que são considerados hediondos, evidenciando que os indivíduos que cometem tais crimes devem ser tratados como inimigos que devem ser contidos, através da prioridade em seu encarceramento, seja pelo regime inicial ou integralmente fechado, seja pelo maior demora na progressão de regime.

A mesma coisa acontece na aplicação do regime disciplinar diferenciado ao apenado, que é aplicado quando o indivíduo demonstra apresentar risco para a ordem e segurança do estabelecimento prisional, tendo, com isso, seu direito a visita e saída da cela limitados.

Ainda nesse sentido, importante mencionar também a Lei do Abate, no qual uma aeronave considerada “hostil”, que apresente “ameaça a segurança pública”, pode até mesmo ser abatida, em uma clara demonstração de direito penal do inimigo, no qual se permite até mesmo o abate de uma aeronave quando a mesma for considerada um risco que precisa ser contido.   

Diante disto, fica demonstrado a importância da aplicação dos fundamentos de tal teoria, pois auxilia na garantia da eficiência do direito penal e manutenção da pacificação social. Percebe-se que, apesar da importância que tem a garantia dos direitos e garantias individuais, não se pode, simplesmente, sacrificar totalmente a pacificação social para a garantia dos mesmos.

Na atualidade, é fato conhecido que a pena não é cumprida de maneira adequada no Brasil, sendo que a rápida progressão de regimes, falta de vagas no regime semiaberto, dentre tantos outros fatores, fazem com que a “aplicação” da pena não seja o suficiente para intimidar o autor para que não mais cometa delitos, gerando o índice de reincidência absurdo que beira os 25%[174], o que culmina, também, na sensação de insegurança generalizada presente na sociedade brasileira.

Nesse sentido, conclui-se que é importante a aplicação de tais disposições legais. Primeiramente, quanto à lei dos crimes hediondos, verifica-se que a mesma previa um regime integralmente/inicialmente fechado em face da periculosidade de um indivíduo que comete um crime mais gravoso, sendo uma disposição importante em face da função de Prevenção Especial Negativa da pena, na qual o indivíduo, através de seu encarceramento, deixa de cometer crimes em função de sua reclusão.

Além disso, importante também a aplicação de tais fundamentos presentes na lei do abate, pois, a não aplicação dos mesmos, tornaria impossível a contenção de aeronave em território nacional considerada hostil, o que colocaria até mesmo a segurança nacional em risco.

Por fim, também é de importância a aplicação de tais fundamentos na questão do regime disciplinar diferenciado, pois, caso não fossem feitas tais limitações às garantias do preso considerado perigoso, todo o estabelecimento prisional estaria em risco.

Diante do que foi exposto previamente, também existe o questionamento sobre a possibilidade de aplicação da Teoria do Direito Penal do Inimigo em um Estado de Direito. Conforme ensinam inúmeros doutrinadores, o Direito Penal do Inimigo é algo típico de um estado totalitário, o que é fato, pois Günther Jakobs, em sua teoria, permitia a supressão de direitos do indivíduo sem limitações e com um conceito altamente subjetivo de inimigo. Diante disto, evidente que tal teoria, do modo como foi elaborada originalmente, não pode ser aplicada em um Estado de Direito.

Porém, percebe-se que existem disposições fundamentadas no Direito penal do Inimigo na legislação brasileira atual, e as mesmas convivem, sem dificuldades, com um Estado de Direito. Ao se levar em consideração, por exemplo, a Lei dos Crimes hediondos, tal supressão de garantias se dá somente para os indivíduos que cometerem os crimes elencados em tal lei, sendo um conceito objetivo e que traz segurança jurídica.

Ante tais fatos, resta comprovada a importância da aplicação dos fundamentos da Teoria do Direito penal do inimigo na legislação atual, tanto nos moldes que foram expostos nesse trabalho quanto nos quais já presentes na lei, devendo sua presença ser resguardada, evitando o abrandamento que tem sofrido cada vez mais, sob pena de gerar uma ineficácia, ainda maior, do direito penal.

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Monografia apresentada à Banca Examinadora da Faculdade de Direito da Universidade Metodista de Piracicaba, para obtenção do título de Bacharel em Direito.Orientador: Prof. Eduardo Alberto Pinca

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