Capa da publicação Licenciamento ambiental: crítica à proposta de flexibilização do governo
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Convite para um ecocídio

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23/04/2019 às 14:35
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IV. Considerações Finais 

É impossível fechar os olhos para o gravíssimo retrocesso ambiental que sub-repticiamente se concretiza no Brasil. A Constituição, a legislação ambiental e os órgãos de proteção ambiental estão sofrendo ataques diários com a clara intenção de promover um completo desmonte da ordem constitucional ambiental implantada a partir de 1988. Esse quadro que já se anunciava como uma forte tendência nos últimos anos, agravou-se sobremaneira com a ascensão ao poder no início do ano de 2019 do governo de extrema-direita. A imposição de pautas irracionais e irresponsáveis na regulamentação da exploração dos recursos ambientais no País revelam um completo descompromisso com a fórmula do Estado democrático de direito assim como com a sua outra faceta, isto é, a de Estado socioambiental.

As conquistas sociais e ambientais obtidas ao longo das últimas décadas no Brasil estão sendo vilipendiadas. Isso fica ainda mais evidente frente a maneira do governo de lidar com as tragédias e crimes ambientais que se sucederam no país nos últimos meses. É muito difícil aceitar e compreender, por exemplo, que após tragédias ambientais de grandes dimensões como as de Mariana e Brumadinho, o Estado brasileiro se posicione justamente no sentido de afrouxar a sua legislação de proteção ao meio ambiente mediante a descaracterização e o esvaziamento de um dos seus mais importantes instrumentos, isto é, o licenciamento ambiental. É difícil aceitar e compreender, também, que esses ataques sejam desferidos por representantes do povo por meio de propostas e projetos de lei que se utilizam de uma falsa retórica e de rótulos falaciosos tais como os de “flexibilização” e de “agilização” do processo do licenciamento ambiental. O processo do licenciamento ambiental está previsto implicitamente no art. 225 da CF/88 e carece de proteção especial. Afinal, poucos instrumentos se mostram tão efetivos na proteção do meio ambiente contra os efeitos da exploração econômica dos recursos ambientais como o licenciamento ambiental.

A tentativa de eliminação ou a descaracterização do instrumento consiste em uma violação constitucional gravíssima ao direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, assim também como uma violação aos princípios da ordem econômica que regem o Estado brasileiro pautados também pelos ideais de defesa do meio ambiente como aspecto limitador da livre iniciativa. Ao posicionar-se na contramão do ordenamento jurídico pátrio, da ética e mesmo da razão para beneficiar determinados setores econômicos da sociedade brasileira, o atual governo sujeita-se a ser responsabilizado pelas suas ações. A legitimidade democrática obtida pelo atual governo nas urnas não conferiu a esse legitimidade para conduzir o país rumo ao ecocídio e ao holocausto ambiental.


Bibliografia

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SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de Direito Ambiental. 13a ed. São Paulo: Saraiva, 2015.


Notas

1 Farias, Licenciamento Ambiental: aspectos teóricos e práticos, p. 21.

2 Farias, Licenciamento Ambiental: aspectos teóricos e práticos, p. 34; Sobre isso ver também Amado, Direito Ambiental, p. 40.

3 Sarlet/Fensterseifer, Direito Constitucional Ambiental, p. 25s.

4 Fiorillo/Morita/Ferreira, Licenciamento Ambiental, p. 27.

5 É importante destacar que o mecanismo do licenciamento já era previsto infraconstitucionalmente desde o início da década de 70 em algumas leis esparsas do ordenamento jurídico brasileiro. O Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, trazia previsão no Decreto-Lei n° 134/75 referente a figura do licenciamento ambiental, enquanto São Paulo trouxe previsão relativa ao licenciamento ambiental na Lei n° 997/76. O fato é que somente com a promulgação da Constituição de 1988 e sobretudo ao longo da década de 90 que o licenciamento ambiental passou a ser adotado de forma mais rigorosa. Sobre isso interessante a leitura de Farias, Licenciamento Ambiental, p. 32s.

6 Texto disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/bolsonaro-encomenda-a-equipe-plano-de-licenciamento-ambiental-unificado. Acesso em 12 fev. 2019; Ainda sobre o tema da proposta feita pelo atual governo de um licenciamento ambiental unificado: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-encomenda-a-equipe-plano-de-licenciamento-ambiental-unificado,70002702928. Acesso em 12 fev. 2019; Mais sobre o tema acessar o texto disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/meio-ambiente/flexibilizar-nao-e-afrouxar-diz-ministro-sobre-licenciamentos. Acesso em 5 mar. 2019; Ainda sobre o tema ler o texto disponível em: https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2019/01/25/governos-insistem-em-afrouxar-licenciamento-a-melhor-vacina-contra-desastres-ambientais. Acesso em 7 mar. 2019.

7 Uma referência evidente ao conhecido romance policial „Convite para um homicídio“ da escritora inglesa Agatha Christie. Em substituição ao termo “homicídio”, utiliza-se aqui o vocábulo “ecocídio”. Evidentemente, ao fazer uso da expressão, a verdadeira intenção é chamar atenção do leitor para os grandes riscos e perigos ambientais aos quais o Brasil se sujeito a partir do momento que opta pelo desmonte de sua legislação ambiental. A intenção do autor no presente artigo não é, porém, abordar o debate sobre a introdução do crime de ecocídio como um crime contra a humanidade. Apesar disso, é importante deixar clara a existência desse debate sobremaneira relevante. Daí a referência ao termo no título do presente texto.  Sobre a origem da expressão “ecocídio” é interessante tecer apenas alguns breves comentários superficiais. Ela surge no início da década de 70 do século passado. O primeiro registro que se tem dela remete as palavras proferidas pelo Professor Arthur W. Galston na Conferência sobre Guerra e Responsabilidade Nacional, ocorrida em Washington nesse mesmo período. No ano de 1972, por ocasião da Conferência sobre Desenvolvimento Humano, ocorrida em Estocolmo, o termo “ecocídio” é utilizado explicitamente pelo Primeiro Ministro da Suécia, Olof Palme, ao tratar da Guerra do Vietnã. O termo ecocídio foi especialmente popularizado no século XXI pela advogada e ativista Polly Higgins, cuja bandeira maior de seu trabalho é a inclusão dos crimes de natureza ambiental no rol de crimes contra a humanidade. A espécie criminal de ecocídio se utiliza basicamente das lições obtidas a partir de crimes contra a humanidade, como o genocídio (genos do grego que significa raça ou tribo associado ao vocábulo latino cidio que deriva de cidere) para se referir a destruição extensiva de ecossistemas perpetrada pelos homens que ameçam de forma tão evidente a existência da vida no planeta. Gauger/Rabatel-Fernel/Kulbicki/Short/Higgins, The ecocide Project, p. 5s.

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8 Farias, Licenciamento Ambiental: aspectos teóricos e práticos, p. 34-35.

9 Sobre a referida crise ecológica mencionada é interessante reproduzir as palavras de Michael Löwy em seu livro paradigmático “O que é o ecossocialismo?”: “A crise ecológica, ao ameaçar o equilíbrio natural do meio ambiente, põe em perigo não apenas a fauna e a flora, mas também, e sobretudo, a saúde, as condições de vida, a própria sobrevivência da nossa espécie”. Löwy, O que é o ecossocialismo?, p. 66; Ainda sobre o tema da questão ambiental é interessante a leitura de Cunha/Guerra (org.), A Questão Ambiental, p. 17s.

10 Sobre o termo é sempre interessante revisitar a paradigmática obra “Sociedade de Risco” de Beck e também o seu desdobramento posterior Weltrisikogesellschaft.

11 Sobre isso ver Sarlet/Fensterseifer, Direito Constitucional Ambiental, p. 35s.

12 Sirvinskas, Manual de Direito Ambiental, p. 155s.

13 Antunes, Direito Ambiental, p. 45s.

14 Antunes, Direito Ambiental, p. 48.

15 Sirvinskas, Manual de Direito Ambiental, p. 158.

16 Sirvinskas, Manual de Direito Ambiental, p. 159.

17 Fiorillo/Morita/Ferreira, Licenciamento Ambiental, p. 28.

18 Antunes, Direito Ambiental, p. 49.

19 Antunes, Direito Ambiental, p. 49.

20 Sirvinskas, Manual de Direito Ambiental, p. 155s.

21 Fiorillo/Morita/Ferreira, Licenciamento Ambiental, p. 29.

22 Fiorillo/Morita/Ferreira, Licenciamento Ambiental, p. 29.

23 Sirvinskas, Manual de Direito Ambiental, p. 155s.

24 Sirvinskas, Manual de Direito Ambiental, p. 155s.

25 Amado, Direito Ambiental, p. 40.

26 Farias, Licenciamento Ambiental, p. 35.

27 Farias, Licenciamento Ambiental, p. 35.

28 Farias, Licenciamento Ambiental, p. 35.

29 Farias, Licenciamento Ambiental, p. 35.

30 Farias, Licenciamento Ambiental, p. 35.

31 A consciência ambiental alemã é de tal forma arraigda que mesmo durante o fascismo ela prosperou como aponta Giddens: “‘Ecologism’ in Germany has its origins in a similar sort of natural mysticism to that which inspired Emerson and Thoureau. The Nazi ‘ecologists’ promoted conservation and organic farming, and practised vegetarianism. The Reich Nature Protection Law, passed in 1935, together with other legislation, had aim of preventing damage to the environment in undeveloped areas, protecting forests and animals and reducing air pollution”. Giddens, The Politics of Climate Change, p. 51-52.

32 Para informações mais detalhadas sobre o controvertido processo de desligamento do programa de energia nuclear alemão ocorrido após a catástrofe de Fukushima é interessante consultar Marques, Der Rechtsstaat der Risikovorsorge, p. 143s.

33 Marques, Der Rechtsstaat der Risikovorsorge, p. 158s.

34 Texto disponível em: https://www.oeco.org.br/noticias/bolsonaro-confirma-promessa-ministerio-do-meio-ambiente-deixara-de-existir. Acesso em 4 mar. 2019.

35 Texto disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2018/12/19/justica-de-sp-condena-futuro-ministro-do-meio-ambiente-por-improbidade-administrativa.ghtml. Acesso em 4 mar. 2019; Sobre a manifestação do ministro Ricardo Salles sobre Chico Mendes consultar texto disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/que-diferenca-faz-quem-e-chico-mendes-diz-ricardo-salles-no-roda-viva/. Acesso em 4 mar. 2019.

36 Antunes, Direito Ambiental, p. 160.

37 Antunes, Direito Ambiental, p. 160.

38 Texto disponível em: http://www2.mma.gov.br/port/conama/res/res97/res23797.html. Acesso em 2 fev. 2019.

39 Farias, Licenciamento ambiental, p. 28.

40 Farias, Licenciamento ambiental, p. 28.

41 Texto disponível em: https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2019/01/25/governos-insistem-em-afrouxar-licenciamento-a-melhor-vacina-contra-desastres-ambientais. Acesso em 5 mar. 2019.

42 Texto disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil/2016/05/160509_gurgacz_emenda_rs. Acesso em 5 mar. 2019.

43 Texto disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7715983&ts=1549374328709&disposition=inline. Acesso em 5 mar. 2019.

44 Texto disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3735400&ts=1550683789954&disposition=inline. Acesso em 5 mar. 2019.

45 O PL se ecnontra disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=225810&filename=PL+3729/2004. Acesso em 12 mar. 2019.

46 Texto disponível em: https://ambiencia.blogfolha.uol.com.br/2019/01/25/governos-insistem-em-afrouxar-licenciamento-a-melhor-vacina-contra-desastres-ambientais. Acesso em 12 mar. 2019.

47 Para mais informações sobre o assunto e sobre a proposta da Confederação Nacional da Indústria (CNI) é interessante consultar a matéria publicada na Folha de São Paulo disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/04/industria-pressiona-por-regras-mais-brandas-para-licenca-ambiental.shtml. Acesso em 14 mar. 2019.

48 Sarlet/Fensterseifer, Direito Constitucional Ambiental, p. 57s.

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Sobre o autor
Antonio Silveira Marques

Doutor em Direito Público pela Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU), mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Antonio Silveira. Convite para um ecocídio . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5774, 23 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73403. Acesso em: 25 abr. 2024.

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