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Dos navios no direito internacional: sua nacionalidade e a questão do uso da bandeira de conveniência

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14/05/2019 às 11:50

Resumo:


  • Navios podem ser classificados de acordo com o fim a que se destinam, às águas em que navegam, ao sistema de propulsão e ao tipo de construção; possuem natureza jurídica de bens móveis e requerem individualização por meio de nome, classe, inscrição e registro, que geralmente determina sua nacionalidade.

  • A nacionalidade de um navio acarreta consequências como proteção, aplicação de tratados internacionais, jurisdição, vigilância e favores particulares; pode ser alterada ou perdida, e é adquirida por registros nacionais ou abertos, sendo os últimos conhecidos como bandeiras de conveniência.

  • Bandeiras de conveniência oferecem vantagens econômicas aos armadores, mas podem implicar em desvantagens como riscos ambientais, condições de trabalho precárias para a tripulação, evasão de divisas, concorrência desleal e uso em atividades ilícitas, incluindo pirataria marítima.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

2. DA INDIVIDUALIZAÇÃO DO NAVIO

O navio deve ser individualizado por meio de nome, classe, tonelagem (tamanho do navio), porto de inscrição, registro e arqueação (capacidade do navio) e, conforme se verá nos parágrafos abaixo, deverá possuir uma nacionalidade. Em relação aos primeiros aspectos da individualização, trataremos apenas do nome, classe e inscrição/registro de navios, para depois nos aprofundarmos na questão da nacionalidade.   

Ainda, para alguns autores, como Eliane Maria Octaviano Martins[38], além dos elementos destacados acima, o navio pode ser individualizado considerando-se também deslocamento, velocidade e borda-livre. Contudo, tais elementos não serão objeto do presente estudo por não possuírem desdobramentos no quesito “nacionalidade”, a ser aprofundado adiante.

2.1 Nome

Sabe-se que a cada navio deve ser atribuído um nome para individualizá-lo, de modo que este deverá “ser marcado externamente em três posições do casco: na proa, a bombordo e a boreste, e na popa[39]”, e, no caso do Brasil, inscrito na capitania dos portos ou tribunal marítimo, dependendo da arqueação bruta deste navio.

Inclusive, no caso brasileiro, de acordo com o Artigo 17, inciso III, do Decreto nº 2.596, de 18 de maio de 1998, não marcar o nome do navio conforme as especificações acima constitui infração punível com multa ou suspensão do Certificado de Habilitação por até trinta dias[40].

A escolha de um nome para um navio, contudo, não é totalmente livre ao exclusivo critério de seu proprietário, tampouco desregrada. Existem alguns requisitos balizadores para este elemento de individualização. Como exemplo, podemos citar o item 0221 da NORMAM-01/DPC – Normas da Autoridade Marítima para Embarcações Empregadas na Navegação em Mar Aberto, que determina que a escolha de nome obsceno ou ofensivo, que cause constrangimento às pessoas ou instituições, não é admissível.

Além disso, conforme pontua Eliane Maria Octaviano Martins, o nome deve ser inédito e embarcações que naveguem em alto-mar não podem compartilhar o mesmo nome:

"O nome é escolhido pelo proprietário do navio e deve obedecer ao princípio da novidade. Não é permitido o uso de nomes iguais entre embarcações de mesma bandeira que naveguem em mar aberto [...][41]."

Por fim, cumpre esclarecer que o nome pode ser alterado desde que alguns pressupostos legais sejam atendidos. É o caso de alteração decorrente de mudança de nacionalidade ou de proprietário, ou caso o navio tenha passado por uma significativa transformação em casaco, armação ou máquina que altere as suas características, desde que autorizado pelas autoridades competentes[42].

2.2 Classe

A classe dos navios, de acordo com Eliane Maria Octaviano Martins, é “a categoria do navio estabelecida pelas condições de navegabilidade observadas pelas sociedades classificadoras”[43], ou seja, é o nível de aptidão do navio para enfrentar os riscos de uma viagem marítima[44].

As sociedades classificadoras (Ship Classification Societies), por sua vez, emitem os respectivos certificados de classe atestando que determinado navio está em conformidade com os padrões internacionais de navegabilidade. Estas sociedades são terceiros independentes que atuam no controle, regularização e certificação dos navios no que diz respeito à segurança da navegação. Assim, se um navio não estiver dentro dos padrões estabelecidos, será considerado como um navio substandard.

   Destacamos a elucidação de José Candido Sampaio de Lacerda acerca de referidas sociedades classificadoras:

"O hábito de classificar as embarcações não é recente. Serve para facilitar o valor técnico do navio, facilitando assim e melhor garantindo a realização de contratos que as ele diga respeito. Originou-se na Inglaterra, com a fundação de uma sociedade especialmente destinada a esse fim: o “Lloyd’s Register”.

[...]

Os navios são, pois, inscritos e classificados conforme o estado em que se encontram e o grau de confiança que merecem. O instituto determina as normas a serem observadas na construção de um navio, fiscaliza essa construção, examina os navios por meio de peritos, controlando a vida deles por meio de agentes, mesmo no estrangeiro, fornecendo ao navio um certificado de classificação e, permanentemente, com publicações periódicas, informa acerca de tudo o que a ele diz respeito, ou dando notícias, nesse sentido, a quem quer que esteja interessado em conhecer as condições e o valor técnico de um navio.[45]"

2.3 Inscrição e registro

O porto de registro e inscrição, ao lado do nome, classe e nacionalidade, é uma das características mais importantes no estudo dos elementos de individualização do navio[46].

Importante diferenciarmos inscrição e registro de navio. A inscrição é o cadastro na repartição própria da autoridade marítima, onde são atribuídos (i) nome e (ii) número de inscrição para o navio. Trata-se de local em que o navio será inscrito para fins de residência ou domicílio, sem determinação de sua nacionalidade. Conforme entendimentos de Eliane Maria Octaviano Martins[47], a inscrição consiste em um procedimento administrativo de cadastramento ou matrícula perante a autoridade marítima do porto escolhido (Capitania dos Portos) pelo proprietário do navio. Complementa a autora:

"No Brasil, as embarcações brasileiras, exceto as da Marinha do Brasil, devem efetuar a inscrição nas Capitanias dos Portos ou fluviais, delegacias (DL) e agências (AG) em cuja jurisdição for domiciliado o proprietário ou o armador ou onde for operar a embarcação[48]."

Conforme esclarecido por Rafael Muniz[49], a escolha do porto de inscrição é feita pelo proprietário do navio, mas na maioria das vezes esta é realizada com base na localização da empresa, dos serviços auxiliares do porto e dos impostos estaduais e municipais. Assim como a falta de marcação do nome explicada acima, de acordo com o Artigo 17, inciso III, do Decreto nº 2.596, de 18 de maio de 1998, a não indicação do porto de inscrição no casco do navio consiste em infração punível com multa ou suspensão do Certificado de Habilitação por até trinta dias.

Por outro lado, o registro é um ato administrativo que confere nacionalidade às embarcações e o direito de ostentar a bandeira do Estado de Registro[50]. Porto de registro é o local de efetivo registro do navio, não havendo necessidade que este local seja efetivamente um porto, como bem apontado por Celso D. de Albuquerque Mello[51]. Tal registro, conforme disposto no Artigo 2º da Lei nº 7.652, de 3 de fevereiro de 1988, tem por objetivo estabelecer a nacionalidade, validade, segurança e publicidade da propriedade das embarcações, devendo ser feito perante o Tribunal Marítimo se a embarcação possuir arqueação bruta superior a cem toneladas. Ainda, para que um navio seja registrado no Brasil, o ordenamento pátrio determina a exigência da nacionalidade brasileira ao proprietário ou à empresa brasileira, ao comandante, ao chefe de máquinas e a dois terços da tripulação[52].

Assim como no caso de falta de inscrição, também há penalidades para a falta de registro de navio, conforme indicado por Eliane Maria Octaviano Martins:

"A falta de registro, seja o de propriedade ou o de armador, sujeita o infrator também ao cancelamento da autorização para operar em qualquer classe de navegação, sem prejuízo da suspensão imediata do tráfego da embarcação em situação irregular ou de todas as embarcações do armador, conforme o caso, nos termos da Lei nº 7.652/88, art. 28, §1º.[53]"

Trataremos em maiores detalhes as questões relacionadas à nacionalidade de navios decorrentes de seu registro em item próprio, tendo em vista a complexidade que permeia.

2.4 Nacionalidade

Nos navios mercantes, a atribuição da nacionalidade é decorrência direta de seu registro. Desta forma, aos navios é atribuída a nacionalidade do Estado de Registro, que lhe autoriza o uso de sua bandeira. Eliane Maria Octaviano Matins discorre no mesmo sentido:

"As embarcações adquirem a nacionalidade do Estado de Registro (Flag State), que lhe outorga autorização para ostentar sua bandeira. Efetuado o registro, a embarcação estará habilitada a arvorar o pavilhão/bandeira do Estado de Registro.[54]"

Além de ser consequência do registro, a nacionalidade e o uso da bandeira também são um requisito para a regularidade dos navios, conforme determinação da Convenção das Nações Unidas para o Direito do Mar. Assim, todo navio deve possuir uma nacionalidade e bandeira do seu Estado de Registro sob pena de ser considerado um navio apátrida. Vejamos referida determinação no Artigo 92 da Convenção:

"ARTIGO 92 – Estatuto dos navios

1. Os navios devem navegar sob a bandeira de um só Estado e, salvo nos casos excepcionais previstos expressamente em tratados internacionais ou na presente Convenção, devem submeter-se, no alto-mar, à jurisdição exclusiva desse Estado. Durante uma viagem ou em porto de escala, um navio não pode mudar de bandeira, a não ser no caso de transferência efetiva da propriedade ou de mudança de registro.

2. Um navio que navegue sob a bandeira de dois ou mais Estados, utilizando-as segundo as suas conveniências, não pode reivindicar qualquer dessas nacionalidades perante um terceiro Estado e pode ser considerado como um navio sem nacionalidade.[55]"

Temos, portanto, que a nacionalidade estabelece um vínculo de sujeição do navio com o Estado de Registro, conforme indicado por Rafael Muniz[56]. Para ele, inclusive, a principal finalidade de atribuir nacionalidade ao navio é submetê-lo à jurisdição de algum Estado.

Existem, contudo, autores que afirmam ser incorreto o termo “nacionalidade” de navios, uma vez que, por serem bens, e não sujeitos de direitos, os navios não teriam uma nacionalidade. Theophilo de Azevedo Santos e Luís de Lima Pinheiro compartilham deste (curioso) entendimento que, adianto, não é o majoritário na doutrina:

"Se entendermos por ‘nacionalidade’ o vínculo jurídico-político que une uma pessoa a um Estado, os navios, não sendo sujeitos jurídicos, mas objecto de direitos, não têm uma verdadeira nacionalidade[57]."

"Para os navios, a nacionalidade tem sentido impróprio. Significa dependência a certo regime jurídico. Os navios não são pessoas, são coisas. Sendo assim, inexiste vínculo político entre o Estado e o navio.[58]"

Importante, ainda, ponderar que a doutrina maritimista adota a clássica categorização dos registros em nacionais e abertos. Vejamos, então, referidos critérios de atribuição de nacionalidade em maiores detalhes.

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2.4.1 Critérios de aquisição nacionalidade

A nacionalidade pode ser atribuída aos navios conforme dois regimes distintos: registros nacionais e registros abertos. Isso porque, de acordo com Eliane Maria Octaviano Martins, existe no mundo globalizado uma dificuldade de padronização deste instituto, frente à pluralidade de legislações nacionais a respeito do assunto. Assim, destacamos seus ensinamentos:

"Em se tratando de ato administrativo cuja concessão depende exclusivamente de Estado, constata-se, no plano internacional, efetiva diversidade de critérios e requisitos para registro, situação que tem causado problemáticas de competência desleal por parte de alguns Estados que adotam exigências mínimas de controle e medidas de estímulo ao registro, dando ensejo ao fenômeno das “bandeiras de conveniência”, que é uma das espécies de registro aberto.[59]"

Apesar da dificuldade de padronização, seguimos com os principais conceitos doutrinários de registros nacionais e registros abertos.

Os registros nacionais, de acordo com Eliane Maria Octaviano Martins, são os registros que exigem vínculos entre Estado de Registro e o navio, mantendo efetivo controle sobre os navios registrados para mantê-los sempre vinculados à legislação do Estado de Registro[60]. Analogamente, a Convenção das Nações Unidas para o Direito do Mar estabelece que os requisitos determinados pelos Estados devem se submeter ao princípio da vinculação real consubstanciado no elo substancial entre o Estado do pavilhão e o navio, não podendo tal vinculação ser meramente formal[61].

De acordo com este regime, são três os critérios para a aquisição de nacionalidade pelo navio: a) o da construção, b) o da nacionalidade do proprietário, e c) o da composição da equipagem (tripulação)[62]. O critério do local de construção, como o próprio nome indica, consiste em atribuir a nacionalidade de um estado para um navio que foi ali construído. É o adotado pelos Estados Unidos, por exemplo. O critério da nacionalidade do proprietário é o que estabelece que o navio terá a nacionalidade de seu proprietário (pessoa física ou jurídica), sendo adotado pela Alemanha, Argentina e Inglaterra. O último critério, qual seja, o da composição da equipagem, vincula a atribuição de uma nacionalidade ao navio que possui, pelo menos, uma porcentagem da tripulação de determinada nacionalidade. Este critério é adotado pelo Chile.

Contudo, existe um quarto critério, denominado misto, que consiste na atribuição de nacionalidade vinculada a diversos requisitos, como nacionalidade do proprietário, tripulação e comandante, sendo o critério adotado pelo Brasil e pela França, por exemplo. De acordo com o Artigo 4º da Lei nº 9.432, os requisitos para os navios arvorarem bandeira brasileira são: (a) proprietário residente ou domiciliado no país ou empresa brasileira, (b) comandante e chefe de máquinas brasileiro, e (c) no mínimo dois terços dos tripulantes brasileiros.[63]

Por outro lado, os registros abertos possuem critérios flexíveis de registro e concessão de bandeira aos navios. Por vezes, sequer exigem vínculo entre o Estado de Registro e o navio. Tal regime é dividido em registro de bandeira de conveniência e segundo registro. Estudaremos em capítulo próprio a questão dos navios utilizando bandeiras de conveniência.

2.4.2.Consequências da nacionalidade

De acordo com Rafael Muniz[64], a nacionalidade é a característica mais importante dos navios porque, uma vez atribuída, o navio será impactado em relação a cinco fatores, quais sejam, (a) proteção, (b) aplicação de tratados internacionais, (c) jurisdição, (d) vigilância e (e) favores particulares. Estes cinco elementos são, na verdade, as principais consequências decorrentes da atribuição da nacionalidade ao navio.

Em relação à proteção, o Estado de nacionalidade de um determinado navio deverá protegê-lo, o que significa dizer que o navio poderá contar com representação diplomática ou consular. Quanto à aplicação de tratados, cumpre esclarecer que todas as convenções firmadas pelo Estado nacional de um navio ser-lhe-ão aplicáveis. No que diz respeito à jurisdição, a qualidade da embarcação determinará a lei aplicável. Quanto à vigilância, o navio registrado em determinado Estado será por ele vigiado. Por fim, em relação aos favores particulares, o Estado nacional do navio poderá lhe conceder favores, como a navegação interior, navegação de cabotagem, pesca e reserva de carga[65].

2.4.3 Alteração e perda de nacionalidade

Vimos nos itens acima a aquisição da nacionalidade pelos navios e suas principais consequências. Ocorre que adquirir uma nacionalidade não garante proteção eterna aos navios, de modo que os requisitos legais que motivaram essa aquisição devem perdurar sob pena de ensejar o cancelamento do registro do navio e, consequentemente, a perda de sua nacionalidade.

De acordo com Eliane Maria Octaviano Martins, são vários os motivos que ensejam a perda da nacionalidade dos navios. Além da ocorrência de inavegabilidade do navio, sentença judicial transitada em julgado, extinção do grave que provocou o registro de embarcação isenta ou paradeiro ignorado do navio, a autora pontua:

"[...] o cancelamento do registro e a consequente perda da nacionalidade do navio decorrem, em regra, da inobservância dos requisitos legais para a concessão do direito de arvorar o pavilhão nacional ou ainda que tal inobservância do vínculo substancial do navio com o Estado de Registro decorra das hipóteses de venda a proprietário estrangeiro, presa, confisco, arresto, salvamento, abandono liberatório e sub-rogatório que importem na mudança de propriedade.[66]"

Prossegue a autora:

"No Brasil, haverá cancelamento de registro da propriedade do navio, nos termos do art. 22 da Lei n. 7.652/88 e de seus incisos, se a embarcação:

(i) Deixar de pertencer a qualquer das pessoas mencionadas no art. 6º dessa lei;

(ii) Tiver que ser desmanchada, perecer ou, estando em viagem, dela não houver notícia por mais de seis meses;

(iii) For confiscada ou apresada por governo estrangeiro, no último caso, se considerada boa presa;

(iv) For registrada mediante declaração, documentos ou atos inquinados de dolo, fraude ou simulação[67]."

A alteração de nacionalidade, também chamada de desnacionalização, ocorre quando o navio tem sua nacionalidade modificada. Via de regra, não se admite dupla nacionalidade para os navios, de modo que deve-se optar por apenas uma[68]. No mesmo sentido versa Rafael Muniz, ao afirmar que “Os Estados permitem a mudança de nacionalidade (desnacionalização). Destarte, a aquisição de nova nacionalidade acarreta a perda da anterior”[69]. Assim, a troca de nacionalidade do navio é hipótese admissível sem maiores restrições pelo Direito brasileiro.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA, Nicole Miranda. Dos navios no direito internacional: sua nacionalidade e a questão do uso da bandeira de conveniência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5795, 14 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73414. Acesso em: 22 dez. 2024.

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