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Mariposas que trabalham.

Uma etnografia da prostituição feminina na região central de Belo Horizonte

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08/10/2005 às 00:00

Resumo:


  • A prostituição é vista como uma relação de trabalho, onde o corpo é o instrumento de trabalho e a prática sexual é a relação laboral, podendo ser comparada a qualquer outra atividade profissional.

  • As prostitutas negociam serviços e preços com os clientes, em um ritual que envolve acordos comerciais, como o valor do programa e as práticas sexuais oferecidas, mostrando a complexidade dessa relação de mercado.

  • Apesar de não ser reconhecida como trabalho pela legislação brasileira, a prostituição poderia ser regulamentada para garantir direitos e deveres às pessoas que escolhem essa forma de sobrevivência, equiparando-a a outras atividades laborais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

2 Profissionais do sexo ou trabalhadoras de ocasião?

Em meio à escuridão, luzes de abajur, espelhos estrategicamente colocados, sons musicais em alto volume, encontram-se as mulheres. Deitadas, sentadas, ou de pé, ficam em seus quartos lendo, ouvindo música, assistindo televisão ou mesmo observando de olhos atentos e cansados o vai e vem dos homens brancos, negros, pardos, gordos, magros, jovens e velhos que andam pelo local. Com poucas roupas, nuas ou vestidas de maneira sensual, as prostitutas se esforçam para chamar atenção dos muitos visitantes que passam por aqueles corredores todos os dias.

Elas não têm nome, tampouco identidades definidas. Utilizam "nome de guerra": Lilian, Fernanda, Patrícia, Érica, Carla, Cíntia, Paola, Nicole, Bianca, Bruna, Fátima, Joana, Daniela, Luísa, Lourraine. Algumas arriscam sorrir, outras se entortam para mostrar os belos seios ou os quadris. Não são poucas as mulheres que se "produzem" com perucas, máscaras, fantasias e uma pesada maquiagem sobre o rosto. No intuito de esconder a atividade, praticamente modificam as formas corporais e o perfil facial. Dificilmente um conhecido as identificaria em tais circunstâncias.

Em linhas passadas, afirmei que as mulheres recebem os clientes somente quando fecham as negociações a respeito dos serviços, do preço e do tempo da relação. É um verdadeiro ritual. Portas começam a se fechar, ao mesmo tempo em que outras se abrem para o recebimento de novos e sedentos clientes. Freitas (1985), em um belo trabalho sobre a temática, percebeu com acuidade o desenvolvimento dessa relação:

A relação de mercado se observa quando prostitutas (oferta) e clientes (demanda) negociam, como num ritual, o conteúdo do serviço a ser prestado e seu preço. O ritual de negociação de um "programa" consiste basicamente no seguinte (tomando uma "zona" como exemplo):

Cliente: (abordando a prostituta): Quanto é?

Prostituta: "X"

Cliente: "O que é que tem na cama?".

Prostituta: "Nada" (coito normal), (ou "completo" – coito normal, sexo anal e sexo oral).

Cliente: "Está bem".

Este ritual traz, implícito, todo um conjunto de acordos: a porta será fechada, ambas as partes deverão se despir, o cliente submeterá a um exame (é uma precaução das prostitutas contra doenças venéreas), ele não terá mais do que dez minutos, etc. A negociação de um "programa" é, nesta perspectiva, um acordo comercial como qualquer outro: ela tem, como pano de fundo, um conjunto, já dado de entendimentos tácitos (Freitas, 1985: 45 - Grifos do autor).

As negociações, entretanto, podem avançar. Ao inquirir uma prostituta, ela informou-me o preço e, diferentemente do relatado por Freitas (1985), lançou-me a seguinte asserção: "uma chupadinha bem gostosa, três posições à sua escolha: ou de frente, eu em cima e depois você atrás, vamos?" Não deve causar surpresa o fato das negociações deixarem de lado algumas práticas ou mesmo, depois da porta fechada, se novos acordos ou o desrespeitar de outros forem levados a cabo.

As prostitutas são livres para decidir. Recebem em seus aposentos quantos homens quiser ou precisar. Na verdade, as mulheres, logo no início do trabalho, se esforçam para garantir a diária do hotel. Garantido o pagamento do local, é possível disputar com certa tranqüilidade o mercado, escolhendo os clientes, dispensando os bêbados e mal cheirosos, ou mesmo sair para descansar ou se divertir na cidade.

A rapidez da prática sexual, neste sentido, assume grande relevância. É preciso lucrar. O "ganhar mais dinheiro" significa atender ao maior número possível de clientes. Existem prostitutas que chegam, em um só dia de trabalho, a atender cerca de 30 a 50 homens, conseguindo arrecadar, aproximadamente, R$ 50,00 a R$ 100,00 ao dia.

Quanto às práticas laborais, dito de outra forma, às relações sexuais com seus clientes, os programas pouco variam entre as mulheres. Os mais comuns são o sexo vaginal e oral. Interessante, mas as prostituas tendem a iniciar o trabalho com o sexo oral. Não é por acaso que optam por esta prática. Na verdade, trata-se de um mecanismo de proteção. Ao se ajeitar no intuito de iniciar esta prática, as mulheres aproveitam para investigar, examinar, apalpar e perceber a existência de doenças venéreas. Além disso, aproveitam para instruir e colocar o preservativo masculino no cliente. O sexo oral permite, ainda, a rápida excitação do cliente, que passa para as outras práticas já excitado e próximo ao gozo final.


3 Um trabalho como outro qualquer

As relações sexuais que resultam em pagamento, troca de serviços e controle do tempo podem ser entendidas como relação de trabalho. Obviamente, devem ser praticadas por pessoas adultas, homens e mulheres que livremente optaram por esta forma de sobrevivência. [06]

O direito do trabalho brasileiro, delineado na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), não descreve essas práticas como trabalho. Pelo contrário, dentre as leis existentes no país, o mais claro é o Código Penal, no qual é crime facilitar, tirar proveito ou explorar a prática da prostituição [07]. E aqui já demonstro meu terceiro argumento: defendo que a prostituição seja regulamentada e que as pessoas que optarem por esta prática laboral [08] tenham todos os direitos e deveres assegurados aos trabalhadores considerados "normais".

Não é difícil entender a venda do sexo como relação de trabalho. Um pequeno esforço permite delinear a situação laboral. O corpo é o instrumento de trabalho. A prática sexual é a relação de trabalho propriamente dita. É por ela que as mulheres recebem o dinheiro. Podemos chamar essa relação de processo de trabalho, pois é nele que encontramos as formas, regras e maneiras de satisfação do cliente. O quarto, a cama, é o posto de trabalho. A rua, a boate, a zona, ou mesmo um espaço público ou privado - utilizado para este fim -, são os locais de trabalho.

Como qualquer atividade laboral, têm-se o início e o fim da relação. O tempo pode ser melhor pago, desde que acordado, a priori, com o cliente. Este, por sua vez, é a natureza transformada. Como qualquer relação social, o indivíduo não sai da mesma forma como entrou. Com a prostituta teve o que pagou, o prazer sexual.

Em tais circunstâncias, as práticas sexuais fornecidas pelo corpo, manifestam-se como força de trabalho e mercadoria. Vendido e negociado, carregado de fetiche, o sexo é vivenciado como uma relação social, entendida como relação de mercado, resultado de relações mecânicas, impessoais, burocráticas e, evidentemente, carentes de afeto e continuidade. Neste contexto, cumpre apontar para a separação e divisão de valores da mercadoria corporal no ato da prostituição, ou seja, do "ser" que é vendido. Para isso, o corpo é dividido em partes desiguais no que toca ao seu uso e manuseio. Estou me referindo ao preço que a vagina carrega e carregou há tempos. Muitas vezes, é o ânus que é valorizado, e muitos são os homens que não abrem mão em pagar pelo sexo oral e outros serviços que a prostituta pode oferecer. Não é preciso, provavelmente, chamar atenção para o aspecto da coisificação, da reificação do corpo que, compartimentado e desnaturalizado, é utilizado como qualquer mercadoria. Walter Benjamim (1892-1940), em um dos seus aforismos, destacou com contundência esta transformação:

O mundo dos objetos assume cada vez mais descaradamente as feições da mercadoria. Ao mesmo tempo, a propaganda trata de ofuscar o caráter mercantil das coisas. À enganadora transfiguração do mundo das mercadorias contrapõe-se a sua transposição para o alegórico. A mercadoria procura ver a sua própria face. Na prostituta ela celebra a sua antropomorfização (Benjamim, 1985: 135).

Nessa óptica, estamos tratando de corpos-objetos que, mercadorizados, abrem a possibilidade de compra da parte mais íntima dos seres humanos. E, tal como qualquer relação de demanda e oferta, trata-se de relações de troca, que apontam para a desnaturalização do corpo. Da mesma forma, se dá com os objetos transformados na natureza em mercadoria. Nas relações de troca, aparece o dinheiro como a principal ficha simbólica, equivalente universal, impessoal e garantidora das relações de mercado.

Mas algo peculiar merece ser destacado. Ao contrário de outras mercadorias, possuir os serviços sexuais das prostitutas é usufruir um serviço cuja propriedade é temporária. Em pouco tempo, os consumidores possuem o que foram buscar. Ao satisfazer fantasias e necessidades sexuais, entendem que o serviço foi prestado. O próximo passo é o pagamento, o abrir da porta e o esperar de mais desejos e um possível retorno àquele local.

3.1 O trabalhar para satisfazer sonhos e necessidades

A maioria das prostitutas com quem tive algum contato possui filhos. Dizem que já tentaram ganhar a vida de outra maneira, mas não conseguiram receber o mesmo dinheiro que perceberam na prostituição. Na realidade, estão ali por sobrevivência e precisam do dinheiro para a manutenção da vida dos filhos e dependentes. Qual trabalhador não tem a mesma necessidade? Marx e Engels, em uma abordagem sociológica da vida social, chamaram a atenção para as primeiras necessidades humanas. De acordo com os autores, o fundamento ontológico dos seres humanos na natureza é que, antes de mais nada, homens e mulheres são seres de necessidade. Em todas as suas atividades a necessidade, em geral, aparece e reaparece como fundamento:

(...) o primeiro pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de toda a história, é que os homens devem estar em condições de viver para poder fazer história. Mas, para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam a satisfação dessas necessidades (...) (Marx & Engels, 1986: 39).

Ainda na mesma obra:

(...) eles próprios (os seres humanos) começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida, passo este que é condicionado por sua organização corporal. Produzindo seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material (...) (Marx & Engels, 1986: 27).

Para quem tem o interesse de entender, poucas palavras bastam. Do ponto de vista da satisfação das necessidades é possível igualar a prostituição a qualquer atividade laboral que os seres humanos desempenham. A maioria dos seres humanos luta pela sobrevivência, querem se alimentar, vestir, ter habitação e reproduzir. Nenhuma novidade até o momento: o problema é quando a relação de trabalho está imbricada com a moral, a cultura e os costumes dominantes. É neste cenário que a prostituição sai perdendo. Dificilmente regras forjadas há séculos sob alicerces religiosos, morais, políticos e filosóficos cederão espaço à perspectiva da prostituição ser entendida como uma atividade de trabalho como outra qualquer. Creio de suma importância estabelecer políticas públicas que apontem nesse sentido. É vergonhoso saber que, no campo dos direitos, é garantido às mulheres que vendem o sexo apenas o direito de voto. Não se pode falar da existência de direitos civis e sociais. Quanto aos primeiros, sabe-se como é mal visto pelos órgãos garantidores de segurança, qualquer ato voltado à prática prostitucional. Não está longe o tempo em que as prostitutas eram apreendidas pelo simples fato de estarem em tais condições. Sempre foram suspeitas e dificilmente vítimas dos atos que contrariavam as leis. Falar em direito à segurança para esse grupo social é o mesmo que afirmar que muito está por ser feito para modificar primeiro o imaginário social que, neste sentido, não deixa de ser fascista, medíocre e hipócrita.

No campo dos direitos sociais, chega a ser difícil escrever algumas linhas. Praticamente inexiste qualquer direito nesse aspecto. Como não são trabalhadoras, as prostitutas, não tem direito à carteira de trabalho, a previdência, férias, 13º salário e outros direitos associados à questão de gênero. Em tais circunstâncias, pode-se até entender a prostituta como uma profissional liberal, mas caminhar nesse sentido é poder pensar em um caminho contrário, como é o caso das relações de servidão ou de trabalho escravo. O fato é que essas mulheres não podem usufruir as mesmas garantias legais que boa parte dos trabalhadores no mercado de trabalho formal possui. É bem verdade que podem não optar por tais direitos ou apelar para os serviços privados. Contudo, é inegável que se deve, pelo menos, garantir o direito destas pessoas optarem pela melhor maneira de conduzir a vida.

A questão pode parecer fútil, desinteressante ou mesmo insignificante, entretanto, é mais complexo do que parece. De acordo com a pesquisa efetuada pela organização não-governamental Musa (Mulher e Saúde) de Belo Horizonte [09], cerca de 74% das mulheres que se prostituem na zona grande de Belo Horizonte são solteiras, 34,5% têm um filho e 30,6% têm dois filhos. Nesse caso, estou me referindo a um grupo de mulheres que sustentem os próprios dependentes, sem qualquer direito, no campo das relações de trabalho, garantido pelo Estado.

TABELA 1

Distribuição do número de mulheres entrevistadas por estado civil*

Estado civil

Entrevistadas

%

Solteira

126

73,7

Casada / Unida

20

11,7

Separada / Divorciada

20

11,7

Viúva

5

2,9

Total

171

100

Fonte: Musa (Mulher Saúde), 1999. In: Folha de São Paulo (2000).

* Elaboração do autor

TABELA 2

Distribuição do número de mulheres entrevistadas pelo número de filhos*

Número de filhos

Entrevistadas

%

Nenhum

20

11,4

01 (um)

59

34,3

02 (dois)

52

30,6

03 (três)

23

13,6

04 (Quatro) ou mais

17

10,1

Total

171

100

Fonte: Musa (Mulher Saúde), 1999. In: Folha de São Paulo (2000).

* Elaboração do autor

A despeito de 43,3% das entrevistadas afirmarem que mantêm parceiros fixos na vida privada, nada indica que se trata de famílias estruturadas economicamente em torno do trabalho do parceiro. Muitas dessas mulheres foram expulsas de casas, provavelmente após uma gravidez indesejada. Outras não conseguiram trabalho, são oriundas de famílias de baixa renda, foram estupradas por parentes ou pelo próprio pai. Expulsas de casa tornaram-se as únicas responsáveis pelos dependentes. Em tais circunstâncias, o raciocínio sai de foco da prostituição e repousa sobre "chefes de família", responsáveis por filhos que estão por vir ou por dependentes que são obrigadas a sustentar.

TABELA 3

Distribuição do número de mulheres entrevistadas conforme a existência de parceiros*

Parceiro sexual fixo

Entrevistadas

%

SIM

74

43,3

NÃO

97

56,7

Total

171

100

Fonte: Musa (Mulher Saúde), 1999. In: Folha de São Paulo (2000).

* Elaboração do autor

Não deixa de ser preocupante o fato da maioria das prostitutas não terem parceiros fixos. Em primeiro, pode-se argumentar a dificuldade que estas mulheres devem encontrar para tecer relações de compromisso com homens que não aceitam a presente situação. Por outro lado, a troca constante de parceiros deixa a prostituta vulnerável à contaminação por DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis). A maioria das entrevistadas afirmou não utilizar preservativo quando o parceiro é fixo (Tabela 4). É evidente que elas tendem a confiar nos parceiros que amam. Acreditam que estão seguras quanto à não utilização dos preservativos e parecem não temer a contaminação oriunda do parceiro. Quanto aos clientes, a segurança com o corpo é maior. São praticamente unânimes as respostas acerca do uso de preservativos nos atos sexuais com estranhos (Tabela 5). A pesquisa vem corroborar o que estudiosos de saúde pública não cansam de afirmar, que as prostitutas há muito não fazem parte dos grupos de risco responsáveis pela disseminação da AIDS.

TABELA 4

Distribuição do número de mulheres de acordo com o uso de preservativo com o parceiro*

Uso de preservativo

Entrevistadas

%

Sempre

66

30,8

Às vezes

53

39,0

Nunca

52

30,2

Total

171

100

Fonte: Musa (Mulher Saúde), 1999. In: Folha de São Paulo (2000).

* Elaboração do autor

TABELA 5

Distribuição das mulheres entrevistadas conforme o uso de preservativos e prática sexual*

Prática sexual

Entrevistadas

%

Sexo vaginal

171

99,4

Sexo oral

171

100,0

Sexo anal

171

97.6

Fonte: Musa (Mulher Saúde), 1999. In: Folha de São Paulo (2000).

* Elaboração do autor

Creio ser importante tecer algumas linhas a respeito dos problemas enfrentados pelas prostitutas. O senso comum tende a pensar que são muitos. Alguns deles já mencionei: problemas com a polícia (tanto a civil como a militar), com a saúde, com a discriminação, o preconceito e a possibilidade de ser descoberta e "ficar sem dinheiro". Não obstante, algo impressiona nos hotéis. As prostitutas colocam, como forte problema, a luta acirrada pelo mercado de homens. A concorrência entre as meretrizes se dá quando a demanda de homens diminui. De acordo com as informações das próprias prostitutas, muitas mulheres, na obrigação de "fazer a diária" ou "ganhar mais dinheiro", passam a flexibilizar, a permitir práticas sexuais que antes não eram permitidas. Em outras palavras, passam a disputar "desonestamente" a demanda de homens disponíveis.

É neste caso que se abre caminho para as DSTs e a AIDS. As prostitutas negociam a possibilidade do sexo sem preservativo, anal e taras violentas. Além disso, abaixam o preço de seu trabalho em relação às colegas. Com o monopólio do preço baixo, a prostituta atrai um maior número de clientes, chegando mesmo a retirar clientes assíduos das "companheiras". Segundo as profissionais do sexo, a concorrência desleal é um dos maiores problemas que enfrentam nos hotéis [10]. Na solução dos problemas encontrados no mercado de homens, as prostitutas não deixam de contar casos que um acerto de contas é feito no quarto da concorrente desleal. Muitas vezes uma conversa informal tende a resolver, quando não, a única saída parece ser o uso da violência física e/ou simbólica.

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É preciso observar que o mesmo não acontece com as mulheres que combinam cobrar mais do que o estipulado pela maioria. Nos hotéis que as prostitutas cobravam R$15,00 havia outras que cobravam o dobro. Bonitas, corpos perfeitos e muito falantes, pareciam não ter preocupação com a quantidade de clientes. As portas abriam e se fechavam tal como as portas dos quartos das colegas. Tudo indica que existe tolerância para aquelas que, a priori, disputam em "desvantagem" o mercado de homens. [11] Por outro lado, é possível afirmar que as mulheres são tolerantes quanto aos atributos da estética ocidental feminina.

A despeito dos problemas enfrentados, muitas mulheres preferem continuar na prostituição. Segundo a pesquisa efetuada pela organização não-governamental Musa (Mulher e Saúde) de Belo Horizonte, todas as prostitutas já efetuaram alguma atividade laboral (Tabela 6). Metade já trabalhou no setor privado, e a outra no setor público. Certamente, no mercado de trabalho formal, público ou privado, não encontraram muitas oportunidades. No setor privado, em geral, trabalharam como costureiras, domésticas, faxineiras, diaristas e vendedoras. No setor público, provavelmente, atuaram como faxineiras, atendentes ou recepcionistas contratadas ou concursadas. As prostitutas da região, de acordo com a pesquisa efetuada, têm baixa escolaridade e, por conseguinte, pouca ou nenhuma qualificação (Tabela 7).

TABELA 6

Distribuição das mulheres entrevistadas conforme o setor de trabalho

Setor

Entrevistadas

%

Setor privado

86

50,3

Setor público

85

49,7

Total

171

100

Fonte: Musa (Mulher Saúde), 1999. In: Folha de São Paulo (2000).

* Elaboração do autor

Afirmei anteriormente que algumas mulheres recebem até 50 clientes em um só dia. Muitas chegam mesmo a perder as contas. Nesse caso, pode-se afirmar que não são poucas as que recebem mais do que conseguiriam se estivessem em certas atividades no mercado de trabalho formal. Contudo, é difícil precisar qual o valor médio que percebem as prostitutas. Isto dependerá da demanda de clientes e, como já disse, da beleza e das práticas sexuais que elas oferecem aos clientes. O mesmo pode-se afirmar das mulheres que mantém uma segunda ou terceira atividade. Certamente muitas utilizam um outro ofício como forma de mascarar a atividade que desempenham à noite. Gaspar (1985) e Nascimento (1995) chamaram atenção para esta questão em suas pesquisas. A manutenção de uma segunda atividade funciona como um mecanismo de "manipulação de identidades". Os ofícios levados a cabo durante o dia, mesmo cansativos e mal remunerados, são socialmente aceitáveis e legítimos aos olhos do cinismo social. Trata-se de atividades que não exigem qualificação, tampouco escolaridade. Em geral, são atividades de servidão, nas quais as mulheres se submetem não para a manutenção da sobrevivência, mas para a garantia de um espaço seguro de sociabilidade com os seus "iguais".

TABELA 7

Distribuição das mulheres entrevistadas conforme escolaridade

Escolaridade

Entrevistadas

%

Nenhuma

05

2,9

Até primário

44

25,8

Até ginasial

66

38,5

Até 2º grau

52

30,5

Superior / Técnico

04

2,4

Total

171

100

Fonte: Musa (Mulher Saúde), 1999. In: Folha de São Paulo (2000).

* Elaboração do autor

De acordo com as informações disponíveis na Tabela 7, é possível afirmar que trata-se de um grupo social que, dificilmente, encontrará boas oportunidades no mercado de trabalho. A maioria sequer completou o segundo grau (38,5%) e, uma pequena parte, conseguiu completá-lo (30,5%). Diante de condições adversas (gravidez precoce, expulsão de casa, estupros etc.), certamente esse grupo não conseguiu outras condições objetivas de vida. Os dados abaixo nos auxiliam nesta reflexão.

TABELA 8

Distribuição das mulheres entrevistadas conforme a raça / cor

Raça / Cor

Entrevistadas

%

Branca

44

26,03

Morena / Parda

104

61,04

Negra

14

08,08

Outras

09

03,05

Total

171

100

Fonte: Musa (Mulher Saúde), 1999. In: Folha de São Paulo (2000).

* Elaboração do autor

A Tabela 8 traz a distribuição das mulheres entrevistadas de acordo com a cor da pele. Os dados não impressionam os mais atentos às desigualdades sociais, econômicas e culturais que assolam há séculos a população brasileira. Pode-se notar que a maioria das prostitutas respondeu ter a cor morena ou parda (61,04%) e, 26,03%, respondeu possuir a cor branca. Sabe-se como é difícil, no caso do Brasil, classificar os seres humanos de acordo com a cor da pele ou raça. Há muito os técnicos do IBGE tem se esforçado para isso. Já tentaram perguntar a cor ao entrevistado, depois apostaram na percepção do pesquisador e, por último, têm deixado o entrevistado mencionar sua raça ou cor. Não vou entrar em maiores digressões a respeito da problemática que tem ressaltado o problema da cor do brasileiro. As discussões se politizaram e agora estão discutindo, inclusive, a problemática da raça, associada à "morenidade" da pele do brasileiro. Creio que o importante, entretanto, é deixar claro que, apesar dos limites das informações, se somarmos as mulheres que responderam possuir a cor negra, parda e morena, alcançaremos uma porcentagem bastante significativa (aproximadamente 70% das entrevistadas). Nesse caso, não é difícil perceber que os prostíbulos tornaram-se verdadeiras "senzalas". A carne negra está mais disponível para a venda do que a branca. [12] Na realidade, os dados corroboram o que observei. Ao meio de poucas mulheres brancas, estão as mulheres que se dizem pardas, morenas ou mulatas. Estas mostram seus belos corpos, curvilíneos e bem cuidados, mas em total contraste com os cabelos loiros e a "cultura branca" manifesta no quarto. O fato é que o mundo da prostituição reflete a sociabilidade e a estrutura das instituições do país. Se a maioria das mulheres nos prostíbulos é negra, é porque as instituições (públicas e privadas) que oferecem trabalho as excluem não somente por serem "de cor", mas também por serem mulheres e de pouca escolaridade.

Na realidade, são escassos, ou quase inexistentes os lugares para as mulheres negras no mercado de trabalho. São poucas nas universidades, nos órgãos públicos, nas empresas privadas, nos hospitais e nas escolas. A estética negra é excluída há anos do campo midiático e, por conseguinte, do saber e da construção estética do brasileiro. E mais, quando aparecem, são "envernizadas" com a "cultura branca". Em tais circunstâncias, não é novidade afirmar que estou me referindo a um público constituído por mulheres discriminadas. A estrutura econômica e sociocultural vigente as excluem do mercado de trabalho, afinal são desqualificadas, possuem pouca escolaridade e estão longe da estética ocidental. E, pode-se ir mais longe, a exclusão, à qual estão submetidas, toca os imperativos de sociabilidade, pois se trata de um grupo que não encontra meios de tecer relações sociais sólidas e duradouras. Como vimos na Tabela 1, a grande maioria são mulheres solteiras (73,7%). Poucas se casaram ou permaneceram unidas a um parceiro (11,7%). Despossuídas de quase tudo restaram-lhes a venda do próprio corpo como única, eficaz, "respeitosa" e "rentável" forma de sobrevivência.

3.2 Uma vida de riscos, trabalho, recompensas e sofrimento

O uso de drogas lícitas e ilícitas é um problema que ronda os bordéis. O uso do álcool é perceptível. Não é difícil observar nos quartos e nos corredores a utilização da cerveja e do cigarro. Tudo parece exagerado. Os quartos chegam a ficar enfumaçado e o forte odor se manifesta pelos corredores dos hotéis.

Ao contrário, a utilização da cocaína ou da maconha não é observável. Pesquisa efetuada pelo Departamento de Psicologia da FUMEC (Fundação Mineira de Educação e Cultura) revelou que, das cerca de 2.700 prostitutas que trabalham nos hotéis próximos à rodoviária, 62% já utilizaram álcool e 21% já usaram outras drogas [13]. Na realidade, o uso das drogas está fortemente associado ao cotidiano laboral, elas aparecem como "pontos de alívio", mecanismos de resistência e de produção de coragem para enfrentar o dia-a-dia de trabalho. Em um depoimento colhido pela repórter Carla Alves, esta questão aparece de forma contundente:

De cara limpa é muito difícil entrar naquilo ali. A mulher que não bebe usa alguma droga para agüentar. Já usei de tudo. [14]

Mas não quero cometer equívoco e, praticamente, denunciar que as drogas fazem parte do cotidiano laboral das prostitutas. Qual, ou quais profissões estão isentas dos usuários de drogas? Sabemos de médicos e enfermeiros que, no intuito de atender a diversos plantões, utilizam drogas para não adormecer ou para aumentar a produção e a resistência do corpo durante as noites de trabalho. O mesmo pode-se mencionar acerca dos caminhoneiros e dos policiais. Os primeiros utilizam drogas contra o sono, os chamados rebites. Precisam chegar rápido ao local de entrega, cumprir horários e dar a certeza do retorno de um trabalho feito com rapidez e atenção. Quanto aos policiais, é perceptível no cotidiano policial o preconceito e a resistência em relação às drogas ilícitas, contudo, poucos abrem mão do uso ostensivo do álcool e do cigarro. Não é por força do acaso que, boa parte freqüenta as reuniões do A.A. (Alcoólicos Anônimos), haja vista a rotina de trabalho e o tormento oriundo da máquina burocrática dirigida pelo Estado.

É forçoso, nos limites deste trabalho, citar as experiências de alguns trabalhadores do ramo metalúrgico que, na necessidade de suportar altos graus de temperatura, se drogam para suportar a rotina de trabalho e o mandatório gerencial. O mesmo pode-se dizer de professores do ensino fundamental, médio e superior. Sabe-se do uso da maconha e, muitas vezes, da cocaína. Mas é disseminada a utilização dos antidepressivos (o mais comum é o Prozac) e do álcool. Não faz muito tempo que baixos salários, rotina de trabalho, escassez de material e o não reconhecimento do trabalho, tem jogado boa parte dessa categoria nas estatísticas dos viciados em drogas. As aulas tornaram-se verdadeiras assembléias e inexiste qualquer possibilidade dos professores participarem efetivamente da política educacional vigente no país. Tudo isso pode parecer despercebido no dia-a-dia, mas é indubitável que influencia e desequilibra o ambiente e o quotidiano laboral. [15]

Nessa óptica, é no mínimo hipócrita denunciar o mundo da prostituição como um dos mais importantes redutos de criminosos e disseminadores de drogas lícitas e ilícitas. As drogas estão em todo lugar. Nos prostíbulos, é verdade, a situação aparentemente é desconfortável e insegura. Ao contrário de professores, médicos, enfermeiras, caminhoneiros e policiais, as mulheres que vendem seus corpos não possuem a garantia no que toca aos direitos de trabalho. E, como disse, estão longe de fazer valer os direitos civis e sociais.

Riscos

Não são poucos os riscos que correm as trabalhadoras do sexo. Pode-se, nos limites deste texto, destacar quatro. O primeiro diz respeito à questão da segurança. As mulheres, em constante exposição, não escolhem os clientes. Como mercadoria, esperam a demanda e cedem por necessidade ou obrigação. O fechar da porta, apesar da negociação anterior, não indica que tudo ocorrerá conforme o combinado. São comuns os abusos sexuais, agressões físicas, roubos e, praticamente, os estupros. [16] Obviamente, muitos desses problemas estão associados à força física do homem e à condição de submissão vivenciada pela mulher. Muitos são os casos em que a prostituta não reclama. Como é mal vista pela polícia, não recorre à justiça. Sua atitude é de resignação e de consentimento.

O segundo risco por que passa a prostituta diz respeito à saúde. Os parceiros podem trazer doenças que não são identificáveis a olho nu. Se no passado corria-se o risco da aquisição da gonorréia, da sífilis ou do cancro; nos dias atuais as meretrizes enfrentam a AIDS: uma doença cínica, invisível, obscura e incapaz de ser descoberta à primeira vista. Não há dúvida que esta doença modificou os hábitos das mulheres que vivem da venda do sexo. Para se protegerem elas utilizam o preservativo masculino (a camisinha) como a melhor forma de prevenção das doenças. Muitas, pelo menos as que podem pagar, vão rotineiramente aos médicos. Em geral, saem aliviadas. Como disse, há muito as prostitutas deixaram de aparecer na lista dos profissionais que se esforçam por identificar os grupos que possuem o comportamento de risco.

O terceiro risco é o da "quebra do segredo". Muitas prostitutas escondem a atividade de seus familiares. Percebi que boa parte não reside em Belo Horizonte. Moram na região metropolitana, ou mesmo em outros estados. Mentem para a família, o namorado, o marido, o amante e justificam a perfídia lançando mão da necessidade de trabalho e de criação de filhos e parentes.

O quarto é o medo da violência oriunda do parceiro ou da polícia. A violência sofrida por parceiros é constante. Não digo apenas a violência física que, ao contrário do que pensa o senso comum, é de menor importância, mas a violência escamoteada, "simbólica", oriunda de duras falas, formas de olhar e de certos comportamentos que beiram espancamentos e atos de pura violência física. As prostitutas sentem a violência quando são comparadas a outras mulheres ou animais. Não poucas vezes são obrigadas à inferioridade e submissão a práticas sexuais e comparações indevidas. A dominação masculina é cruel nesta relação, haja vista que beira às relações de tortura, escravidão e estupro. Bourdieu (1998), atento a esta dominação, tratou de entendê-la como paradoxal. Por estar no mundo da "doxa" [17], nada indica que se modificou com os movimentos feministas das décadas de 60 e 70. Pelo contrário, a dominação passou a ser "suportada" transformando-se em "violência simbólica, violência terna, insensível, invisível até mesmo para suas próprias vítimas, e que no essencial é exercida, sobretudo, pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento – ou, mais exatamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento" (Bourdieu, 1998: 05). Evidentemente, nas relações de prostituição os contornos tomados por este perfil de dominação são, no mínimo, dramáticos.

Da polícia surge o medo da discriminação, da revista sem respeito e da prisão indevida. As prostitutas acreditam que a própria situação em que se encontram, as coloquem em posição desfavorável diante da força repressora do Estado e, por conseguinte, da justiça. As prostitutas não têm ciência dos mínimos direitos garantidos aos seres humanos. Pelo contrário, entendem que são seres inferiores, seres humanos sem direitos e excluídos da sociedade.

Em uma de minhas observações foi interessante perceber a ação policial. Três PMs subiram calmamente as escadarias. Ao contrário do que havia pensado, a presença dos policiais não trouxe mal-estar ao ambiente. É bem verdade que alguns homens optaram por não permanecer no local, mas nada indicava que se tratava de uma investigação ou "batida policial". A presença da polícia limitou-se a algumas visitas nas portas dos quartos e nos corredores. Os praças conversavam com as prostitutas, observavam seus corpos e agiam com parcimônia e tolerância. Pareciam perguntar algo a respeito de sua segurança e vida pessoal. Em nenhum momento percebi indicações de violência ou de desrespeito [18].

No que concerne às prostitutas, as reações observadas foram de submissão, perda da espontaneidade, medo e tolerância. O impacto da presença policial na estrutura da personalidade daquelas mulheres é notável. Algumas se inferiorizavam, abaixavam a voz, desviavam os olhares e não respondiam as perguntas da mesma forma que tratavam os outros personagens do local. É nessa ocasião que se percebe o peso da submissão e da estigmatização. São nessas relações que um grupo se impõem em relação ao outro na escala social. A imposição certamente tem por resultado a cristalização das marcas impostas pela sociedade e o peso do fenômeno da "inferioridade humana". Nesse sentido, pode ser desnecessário afirmar a existência de diferenciais de poder frente a tolerância de certas práticas por parte do grande público consumidor. No entanto, é forçoso mencionar que nada aponta para o direito de qualquer ação policial que possa, em princípio, colocar sob suspeita a atividade da prostituta. Como vimos, o Código Penal Brasileiro não criminaliza a venda do sexo. No campo normativo é criminalizável somente o lenocínio que consiste na exploração dos serviços sexuais de uma ou mais pessoas por parte de terceiros. Não é o caso da maioria dos hotéis situados na região central de Belo Horizonte. Sequer notei e, obviamente, isto não quer dizer que não exista, a presença dos famigerados cafetões. Os quartos dos hotéis são alugados pelas mulheres que podem ali pernoitar. As diárias variam de R$ 50,00 a R$ 80,00, e as prostitutas têm direito, caso paguem, a lençóis, sabonetes, papel higiênico e outros utensílios que fazem parte do quarto e do banheiro.

Em tais circunstâncias não é justificável a ação policial que possa resultar na criminalização do ato prostitucional. Obviamente, nada impede que esta ação seja exercida, alicerçada nos trâmites legais da ação judicial.

Problemas

Em linhas anteriores chamei a atenção para a importância dos "exames", negociações e conversas informais levadas a cabo pelas prostitutas no intuito de garantir o acordo referente ao preço, as práticas sexuais e ao controle da situação. As prostitutas novatas, que aparentam vulnerabilidade, ou de pouca força corporal, têm maiores dificuldades em manter o controle da situação. Em geral as "velhas de casa" ensinam o exercício da função. Mostram como é importante a sedução, a persuasão e a conquista da confiança do cliente. Dos acontecimentos que ocorrem nos quartos, pouco ou nada é revelado ao público. Homens que não conseguem ereção, que desejam "apenas um pouco de companhia e afeto" ou que somente desconfiam de sua orientação sexual é coisa corriqueira. Por outro lado, não são poucas as que se submetem à experiência dos clientes que já conhecem as "manhas" e "truques" da profissão. Este, ao contrário do adolescente ainda inexperiente, não permite a demora no sexo oral e só deixam o quarto após a experimentação das posições acordadas. É possível afirmar que existem espaços de flexibilidade nas relações. Nem sempre elas são ditadas pelos acordos. O jogo de sedução, sexo e prazer é que determinam o tempo e as práticas ocorridas nas quatro paredes do quarto de um bordel.

Vale salientar que nos hotéis ("zonas") muitos homens tornam-se clientes assíduos e conhecidos das garotas de programa. Evidentemente, recebem melhor tratamento. Neles, as mulheres confiam e procuram demonstrar amizade e respeito. Por outro lado, e disse isso em linhas passadas, é possível que as prostitutas passem toda a noite sem receber clientes. O prejuízo, nesse caso, é inescapável, pois dificilmente não é cobrada a diária e os gastos no hotel. Por isso, o visitante não pode se surpreender quando tem a oportunidade de flagrar muitas mulheres almoçando ou jantando no local. Elas não podem perder tempo, tampouco oportunidades. O possível cliente, na maioria da vezes, não marca hora, tampouco o dia em que vai aparecer.

Nos hotéis as mulheres podem trabalhar quantos dias desejar. Todavia, observei que o movimento é maior nos cinco dias úteis da semana (2ª a 6ª feira). As prostitutas aproveitam os finais de semana para viajar ou descansar. Afirmei em linhas anteriores que muitas não residem em Belo Horizonte e outras moram distante do centro da capital. O movimento é maior nos dias úteis também por um outro motivo. São nesses dias que os homens casados encontram maiores justificativas para chegar mais tarde em casa ou fora do horário considerado normal pelo casal. Dias bons de trabalho são os feriados que não coincidem com os finais de semana e os primeiros dias úteis do mês, períodos em que os bordéis ficam lotados de homens gastando parte do salário que receberam do mês trabalhado.

No que concerne aos ganhos, aos lucros e recompensas obtidas pela prostituta, tudo indica que gastam na manutenção da indumentária e na sobrevivência dos seus dependentes. Qual trabalhador não faz o mesmo? Contudo, o exercício da atividade obriga gastos adicionais. Não estou me referindo à compra de preservativos, lubrificantes, espermicidas e outros acessórios que fazem parte do trabalho diário das mulheres na prostituição. As prostitutas gastam boa parte do que recebem com os familiares, principalmente com os filhos. Como não acham conveniente deixar os dependentes em creches, afinal corre-se o risco do reconhecimento, elas pagam vizinhos e conhecidos por esse trabalho. Para ganhar tempo, optam por transportes mais caros e, como a saúde é um elemento sempre a desejar, boa parte do que recebem é reservada para a manutenção de exames preventivos, remédios e médicos.

Auto imagem, prazer e amor: "ossos" do ofício

Uma das discussões mais problemáticas que se faz a respeito da prostituição diz respeito aos motivos que levam a mulher a vender o próprio corpo. Em linhas anteriores afirmei que, como qualquer trabalho, a prostituição é um meio eficaz de garantia da sobrevivência diante de um mercado de trabalho que não oferece boas oportunidades para todos. Os estudos tendem a comprovar esta indagação (Gaspar, 1985; Freitas, 1985; Nascimento, 1995; Mckeganey & Barnard, 1996; Diaz, 1999). Mas dificilmente pode-se optar por uma ou duas variáveis. Conversei com diversas prostitutas em minhas visitas. Muitas apontaram como justificativa para a entrada na prostituição a gravidez indesejada, a falta de oportunidades devido aos poucos anos de estudo, desorganização familiar, violência doméstica, sedução e corrupção oriunda de familiares, desestruturação matrimonial, separação ou viuvez, incesto, arrimo de família, baixos salários na ocupação anterior, necessidade de criar o próprio filho, afinal a maioria é mãe solteira e por fim, imigrações sociais que trouxeram mulheres de longas distâncias que, sem oportunidades, partiram para a prostituição.

Gaspar (1985), Nascimento (1995) e Diaz (1999) salientam que tais condições chegam a ser fortes justificativas para a legitimidade do ato prostitucional, principalmente das mulheres que "batalham" nas ruas e em algumas boates. Por outro lado, Maria Dulce Gaspar (1985) afirma que:

(...) em outras parcelas da prostituição, que gozam de uma melhor situação econômica - segmentos das camadas médias, por exemplo -, a justificativa da "prostituição da pobreza" ou da falta de dinheiro não cabe como explicação convincente da conduta feminina. Em certo sentido, as mulheres das camadas médias podem fazer uma opção ao se dedicarem á prostituição e devem arcar com o peso da "perversa escolha". Coloca-se então como hipótese provável que, não existindo a priori a determinação econômica, elas gostem de se prostituir, e com isso ganha força a acusação de doença – ninfomania – como justificativa da conduta (Gaspar, 1985: 81).

Nada responde a possibilidade das mulheres serem ninfomaníacas. Até porque pesam inúmeras controvérsias a respeito dessa "doença" (Groneman, 2001). Homens não têm sitiríase (o equivalente masculino do termo ninfomaníaco), são viris, bons de sexo e insaciáveis na cama (Bourdieu, 1999). As mulheres é que pagam pelo "poder" de sedução e o cair do homem na cama em busca do corpo alheio. E mais, chega a ser cômica a divisão defendida por Gaspar (1985) e outros autores a respeito da existência de verdadeiras "classes" no mundo do ato prostitucional. Nesse caso, teríamos que saber diferenciar com cuidado aquelas que são da "alta", "média" e "baixa" prostituição. A meu ver essa idéia está mal colocada. Na realidade, as prostitutas migram de uma "classe" a outra. Em outras palavras, enquanto está bonita, saudável e jovem, a prostituta é bem recebida nas altas instâncias da sociedade. Às vezes é até despercebida como tal. Aos poucos, a idade vai chegando, a saúde pede que o corpo descanse e a mulher já não mais tão atraente e bonita começa a migrar para outras situações objetivas da venda do corpo. Muitas apelam para o telefone particular, anúncios em jornais e boates de pequeno porte. Em seguida, vão para "casas de massagem", esquemas informais e ilegais mantidos por hotéis e, enfim, os bordéis de primeira, segunda e terceira categoria.

Mas, o importante a saber é o que as prostitutas percebem em relação à atividade. Se as profissionais do sexo pertencem à alta, média ou baixa prostituição, este fato é irrelevante. O trabalho é o mesmo, as negociações seguem mais ou menos o mesmo ritual e o resultado sempre é o recebimento do dinheiro. Diferente pode ser o local e as práticas laborais/sexuais que as mulheres exercem. Os estudos mostram que as prostitutas sentem-se inferiores, deprimidas, em constante cobrança moral e alimentação de pensamentos negativos sobre a função, o corpo, os outros e a sociedade. Em depoimentos colhidos por Freitas (1985), o que ressaltei aparece da seguinte forma:

A namorada não se confunde com outra mulher. Ela vive num ambiente bom, limpo, e não se cruza com outros homens por aí... Mulher de zona é diferente, ela está na profissão dela, ela está com uma porção de homens. (Entrevista com uma prostituta apud Freitas, 1985: 90).

Eu acho que a convicção de que as prostitutas são sujas, de que seus órgãos sexuais são sujos, realmente não nos abandona. Acho que é por isto que eu não gosto que os homens se debrucem sobre mim (Millet apud Freitas, 1985: 90 - Entrevista com uma prostituta).

Eu não gosto de ser chupada porque eu estou cheia de esperma de outros homens. Quem me chupar, vai chupar outro homem por tabela (Entrevista com uma prostituta apud Freitas, 1985: 91).

Em conversas e observações nas portas dos quartos recolhi afirmações que seguiam por esse caminho. As prostitutas afirmaram "viver uma grande ilusão". Sentem-se como "burros de carga", "péssimas", "nojentas", "sujas" e "verdadeiros depósitos de porra". Não por acaso que, a pesquisa efetuada pela FUMEC encontrou cerca de 76% de mulheres com sintomas de depressão. Em ambientes hostis, sem o mínimo de segurança fora ou dentro do trabalho, não se pode esperar outra coisa. As mesmas reações são vividas pelas garotas de programa mais sofisticadas, que vendem seus corpos por telefone ou em boates. Em entrevista ao Jornal O Tempo [19] duas "garotas de programa" afirmaram que:

Dormir embaixo de um homem para conseguir dinheiro para alimentar um filho é uma luta. Essa vida não é fácil. Sofremos muitas humilhações (Fernanda 21 anos).

Não beijo na boca. O beijo é mais íntimo que a relação sexual. Já voltei de programas e tive nojo de me olhar no espelho (Paola, 21 anos).

No entanto, creio importante deixar claro que as mais experientes e "tarimbadas" na noite, afirmaram se sentir "normais", sendo o trabalho, uma "atividade como outra qualquer", "exige paciência e costume", mas "muita esperteza e força moral". Esta ambigüidade nas afirmações mostra como é complexa a experiência social dessas mulheres. Realidades iguais demonstrando experiências diferentes e contrastantes, exatamente como qualquer outro ambiente de trabalho.

As experiências vividas pelas prostitutas, entretanto, vão além das simples relações laborais quando se colocam em questão o prazer e o amor. Das que tive contato, nenhuma afirmou sentir prazer com sua clientela. Pelo contrário, "torciam" para o rápido gozo do cliente, haja vista a possibilidade da existência de outro na fila. Contudo, o orgasmo com o desconhecido é entendido como "acidente de trabalho" e, raramente, acontece. As mulheres afirmam que não estão ali para isso. Como profissionais preocupam-se com o controle do tempo, com a melhor posição para não se machucar, com o carinho que pode adiantar o gozo do parceiro e com o próximo da fila. Sabe-se que é possível sentir prazer sem amor. Amar sem ter prazer, e fazer sexo apenas para que o outro o tenha. Nesse caso, as prostitutas trabalham bem o seu lugar. Tal como Nascimento (1995), acredito na "neutralização das emoções", não está em questão sentimentos e relações amorosas. O prazer é instrumental e manipulado pela prostituta que busca menores custos na relação. Daí ser raro uma delas estar apaixonada a ponto de "deixar a vida" e apostar no amor desinteressado, longe do cálculo egoísta e rotineiro (Bourdieu, 1999). Por outro lado, sabe-se que as mariposas apaixonam-se por cafetões, homens casados, abastados financeiramente, poetas, românticos e pelo príncipe encantado que nunca vem. O amor, nesse caso, é uma relação de "dominação". Ao tecer relações com o cliente, ela não se coloca como profissional, procura se entregar como mulher, dá uma trégua aos seus sentimentos de inferioridade, esforçando-se por se igualar ao homem que está apaixonado. Mas o difícil é conhecer sua profissão e aceitar o amor sem dominação, resignação ou preconceito, suspendendo a violência simbólica e a inferioridade imposta àquela mulher. Mas acredito ser difícil para uma prostituta vivenciar o que Bourdieu (1999) chama de "amor puro", "esta arte pela arte do amor", que o autor acredita ser:

uma invenção histórica relativamente recente, como a arte pela arte, o amor puro da arte com o qual ele tem relação, histórica e estruturalmente. Não há dúvida de que só muito raramente o encontramos em sua forma mais perfeita e, limite quase nunca atingido – chega-se a falar de no caso de um "amor louco" -, ele é intrinsecamente frágil, porque sempre associado a exigências excessivas, a loucuras (não é por nele se investir demasiado que o casamento se vê tão fortemente arriscado ao divórcio), e sem cessar ameaçado pela crise que suscita o retorno do cálculo egoísta ou em simples conseqüência da rotina. Mas ele existe suficientemente, apesar de tudo, sobretudo nas mulheres, para poder ser instituído em norma, ou em ideal prático, digno de ser perseguido por ele mesmo e pelas experiências de exceção que ele traz (Bourdieu, 1999: 131).

Nesse sentido, de duas uma: ou a prostituta desiste da profissão – muitas afirmam deixá-la caso encontrem o ser amado –, ou continuam suspendendo suas emoções, confundindo, neutralizando sentimentos e desnaturalizando o corpo. Não há dúvida que se trata de uma atividade difícil e de complexo entendimento no campo das emoções. Daí ser, muitas vezes, tratada como tabu, atividade profana e imoral.

Exploração

Não posso deixar de mencionar o problema da exploração nas relações de trabalho no campo da prostituição. Sabe-se que em toda relação entre atores socais, situados tanto ao lado do capital como do trabalho, existem relações de exploração. Sabemos do fenômeno da mais valia, o mecanismo do pagamento de menores salários através de rendimentos indiretos e o aumento da velocidade do maquinário no intuito de fazer valer a rapidez e, conseqüentemente, a magnitude da produção e dos lucros.

No campo das relações de prostituição, o problema encontra-se nos mecanismos de controle da renda, do corpo, do tempo e dos rendimentos percebidos pelas garotas de programa. No Brasil, nesse contexto, não estou me referindo apenas às relações de exploração, mas tocando mesmo em critérios de legitimidade. Como dito anteriormente, o Código Penal brasileiro, criminaliza as práticas de lenocínio, que consistem na exploração e venda do sexo de homens e mulheres.

Não é possível afirmar que as prostitutas dos hotéis são exploradas no sentido delineado acima. Como visto, são elas que arcam com as despesas do quarto e o dinheiro que percebem lhes pertencem. Não observei a presença de rufiões. Em geral, quem trabalha na rua mantém estreitas relações com os cáftens. Estes, muitas vezes, funcionam como seguranças e agenciadores de programas rentáveis e ilegais. Para isso, cobram, chantageam e, não poucas vezes, praticamente escravizam as mulheres.

O lenocínio tem seus contornos mais dramáticos quando associados a uma verdadeira indústria clandestina do sexo. Para se ter uma idéia, em 15 de maio de 2001, por acaso, a Polícia Militar de Belo Horizonte (MG), conseguiu por fim a uma intrincada rede de prostituição na cidade. Descobriu que na capital uma rede de hotéis tecia e era conivente com relações comerciais que garantia à sua clientela mulheres bonitas, charmosas e de "boa procedência".

Dessa rede, segundo a reportagem do jornal O Tempo, faziam parte aproximadamente 28 hotéis. A agência com nome definido, "Cher Nível", assegurava aos seus clientes mulheres de todos os estilos: loiras, mulatas e ruivas. Na verdade, sabe-se que este comércio não faz parte somente da vida comercial de Belo Horizonte. Cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Santos e Porto Alegre também possuem o comércio do sexo.

O problema é que, além de ilegal, as mulheres são exploradas de forma cruel e não negociável. Toda uma engrenagem gerencial tem início antes da entrega das mulheres para o "abate" final. Em linhas gerais, pode-se descrever o desenvolvimento das negociações da seguinte maneira: as "agências" mantêm em seus "escritórios" books das garotas para demonstração nos hotéis. "Agenciadores", cafetões contratados, geralmente bem vestidos e de boa aparência (não se deve levantar suspeitas), são contratados para levar o material aos hotéis. Com o material em mão, é possível escolher as mais bonitas e próximas ao gosto do cliente. Escolhida a mercadoria e, muitas vezes, as práticas sexuais, deixa-se o telefone, marca-se o horário e a entrega das mulheres.

Em geral, os clientes são "pessoas de negócios", estrangeiros, comerciantes, turistas e empresários. Os programas, tal como ocorre em algumas boates, variam entre R$150,00 a R$ 400,00, dependendo, é claro, do tempo, das práticas sexuais e da mulher solicitada pelo cliente. O que pode surpreender o leitor menos avisado não é o aspecto que toca os princípios morais hipócritas da cultura judaico-cristã. O problema reside na exploração exacerbada e ilegal dos corpos das mulheres. Vejamos o quadro a seguir:

QUADRO 01

Distribuição do lucros de acordo com o trabalho e os gastos referentes a uma semana específica (Data não confirmada)*

Ativos e Passivos

Valores em R$

Lucro Bruto

10.200

Lucro Líquido

6.270

Valor pago a mensageiros (os contatos)

3.030

Valor pago a Táxi

910

Fonte: Garotas de Programas da Cher Nível. In: O Tempo (2001).

*Elaboração do autor

O quadro 1 mostra, com clareza, os lucros obtidos pelos proprietários das agências em apenas uma semana. É difícil saber de uma empresa de pequeno porte que alcance tais lucros em tão pouco tempo. Mas a situação não se resume a esse. Existe na situação mencionada, uma exploração predatória da mão-de-obra. Como o controle do dinheiro está nas mãos do rufião, raramente, as garotas não têm ciência do valor estipulado. Na maior parte das vezes, elas são entregues para o programa sem mesmo saber o quanto receberão pelo trabalho. Mais que isso, em caso de falhas, pagavam multas que, no caso em tela, variavam entre R$30,00 e R$50,00. De acordo com a reportagem:

"Por várias vezes senti uma forte dor no útero, mas ele não acreditava", contou (Paola). Quem se negasse a cumprir as regras estabelecidas na rede era obrigado a pagar multas de R$30 a R$50. "As dívidas das multas faziam com que a gente ficasse cada vez mais ligada a ele. Já cheguei a dever R$ 150,00". Outra garota, chamada de Índia, lembrou de um dos casos que a fez ser multada: "um cliente pediu um programa com duas mulheres, mas exigiu que nós duas ficássemos juntas e eu recusei". O resultado da atitude de Índia foi uma multa dupla, R$30 para o cafetão e R$30 para o agenciador do programa do hotel. Índia contou ainda que fulano fornecia cortesias para os mensageiros. "Eles vinham aqui e escolhiam a garota que queriam para o programa. Tínhamos que transar com eles, mas por esse serviço não recebíamos nada", informou. [20]

Sabe-se da existência, tanto no norte como no nordeste do país, da prática da escravidão. Muitas vezes somos sacudidos por reportagens que mostram crianças e adultos trabalhando sob a guarda de revólveres e rifles. O Estado, além de incompetente e conivente, é leviano no trato da situação. No caso em destaque a conjuntura pouco se modifica. Também estou me referindo a uma espécie de escravidão, desenvolvida em centros urbanos e, como tudo indica, tolerada pelas autoridades públicas e boa parte da sociedade. Já mencionei que não vejo problema na prostituição como relação de trabalho, contudo, jamais a escravidão deve ser perdoada e, tampouco tolerada. As "mulheres" da agência em questão, escravizadas para fazer sexo, tinham idades que variavam entre 18 e 27 anos. A carne nova é facilmente vendida. A juventude e a adolescência aguçam desejos e taras que estão escondidas nos divãs que tratam de nosso inconsciente à deriva. No caso em tela, a maioria das garotas, de acordo com a reportagem, sequer completou o ensino básico. São "meninas" que vieram do interior, vivem na periferia da cidade e estudantes que precisam custear os estudos. Certamente, são mulheres jovens que há pouco deixaram a adolescência e aproveitam o belo corpo e a estética da juventude para "conseguir dinheiro" em uma envelhecência, provavelmente, indefinida.

QUADRO 02

Distribuição dos lucros de acordo com o tipo de programa referente há uma semana específica (Data não confirmada)*

Programa

Valores em R$

Privê

300

Motel

550

Hotel

9.360

Fonte: Garotas de Programas da Cher Nível. In: O Tempo (2001).

*Elaboração do autor

No que se refere ao quadro 2, é importante mencionar a profissionalização das práticas sexuais. Obrigadas, as garotas seguem o "cardápio" da agência. Pode-se perguntar porque não saíram ou denunciaram os contraventores. Já mencionei o mecanismo do endividamento, ameaças pessoais e de morte como elo entre prostitutas e cafetões. Porém, não essas relações reduzem a problemática. Tal como as prostitutas de boates (Gaspar, 1985), as que atuam nas zonas da cidade (Freitas, 1985), na rua (Nascimento, 1995) ou em ambientes mais sofisticados (Paezzo, 1966), as garotas da agência buscam a sobrevivência e, obviamente, necessitam do dinheiro para sustentar filhos, famílias ou mesmo uma vida ostentatória e imaginária, própria do mundo das "celebridades" (Costa, 2004). Todavia, estão trabalhando, o diferencial é o regime laboral informal, próximo às relações de escravidão. Duas entrevistas, recolhidas pela jornalista de O Tempo, mostram que:

Algumas têm filhos para sustentar, outras sustentam toda a família. E com o baixo grau de escolaridade não dá para conseguir um emprego com um salário que dê para dar de comer a tanta gente (Fernanda, 21 anos).

Nossas famílias nem sonham com o que possa estar acontecendo. Estamos desesperadas. Não sabemos o que será das nossas vidas agora (Brenda, 18 anos). [21]

Infelizmente, não posso arriscar em mencionar os resultados do acontecido. Mas não é objetivo o trabalho de investigação. Para isso temos a polícia que, no caso em tela, saiu-se bem. O pertinente a afirmar é que algumas garotas, após liberadas, provavelmente, retornaram e podem ser encontradas em boates ou hotéis da cidade. Outras devem ter desistido da profissão. Como me disse certa feita um "leão de chácara", estes homens fortes e altos que ficam à frente das boates mantendo a "segurança": "o mundo da noite não é para principiantes". Talvez ele esteja certo, mas não creio que o mundo do dia seja diferente do que o da noite. Somos homens e mulheres vivendo em sociedade. É preciso tolerância, limites de sociabilidade, direitos garantidos e lugar para todos. Longe de qualquer instituição garantidora de direitos (civis, sociais e políticos), as prostitutas, aquelas citadas e outras que vendem seu corpo pela cidade, estão desguarnecidas. São mulheres de ninguém. Estão distantes do poder estatal, do direito à justiça, saúde pública, educação e da vida.

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Sobre o autor
Lúcio Alves de Barros

sociólogo, professor e escritor em Belo Horizonte (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Lúcio Alves. Mariposas que trabalham.: Uma etnografia da prostituição feminina na região central de Belo Horizonte. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 827, 8 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7356. Acesso em: 23 dez. 2024.

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