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A impossibilidade de instituição ou majoração de tributo por meio de medida provisória

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29/09/2005 às 00:00
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5. O § 2º DO ARTIGO 62 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E AS LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER CONSTITUINTE DERIVADO REFORMADOR.

A partir de 11 de setembro de 2001 – data da promulgação da Emenda Constitucional n. 32 – a questão encontra-se um tanto quanto esquecida por parcela dos estudiosos do Direito Tributário Constitucional, talvez em função do disposto no § 2º, do art. 62 da Constituição Federal, que dispõe:

Medida provisória que implique instituição ou majoração de impostos, exceto os previstos nos arts. 153, I, II, IV, V, e 154, II, só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte se houver sido convertida em lei até o último dia daquele em que foi editada.

A partir de tal disposição, fruto do trabalho do Poder Constituinte Derivado Reformador, parece ter ganho corpo a doutrina da aceitação da instituição ou majoração de tributos por medida provisória.

No entanto, o estudo da matéria em cotejo com lições de Constitucionalismo aponta em sentido contrário, já que uma Emenda Constitucional não tem o poder de ofender as denominadas cláusulas pétreas sem padecer do vício de inconstitucionalidade intrínseco, devendo estar presente a idéia das limitações que são impostas pelo sistema constitucional ao Poder Constituinte Derivado Reformador.

Recorrendo-se às lições iniciais de Direito Constitucional, deve-se lembrar que Poder Constituinte pode ser definido como um fato político, pré-jurídico, com força político-social, que tem o poder de elaborar uma constituição ou alterar a vigente, conferindo-lhe supremacia. Divide-se em Poder Constituinte Originário – aquele que estabelece a Constituição de um novo Estado, seja quando do surgimento de uma primeira Constituição, seja quando da elaboração de qualquer Constituição subseqüente – e Poder Constituinte Derivado – aquele que está inserido na própria Constituição, pois decorre de uma regra jurídica de nível constitucional, sujeito a limitações constitucionais expressas e implícitas, passível de controle de constitucionalidade.

No que interessa ao presente estudo, importa conhecer as limitações impostas ao Poder Constituinte Derivado no momento em que vai estabelecer uma reforma na Constituição Federal. Tais limitações podem ser formais, materiais, circunstanciais e implícitas.

As limitações formais referem-se ao processo legislativo, abrangendo a competência, a tramitação e a forma especial para aprovação, exigindo-se dois turnos em cada Casa do Congresso, com 3/5 dos votos favoráveis dos respectivos membros, em ambos os turnos (CF, art. 60, § 2º).

Limitações circunstanciais referem-se a certos eventos. Não pode haver emenda na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio (CF, art. 60, § 1º).

As limitações materiais ou substanciais referem-se a matérias da Constituição que não admitem modificação (cláusulas pétreas - CF, art. 60, § 4º).

Finalmente, as limitações implícitas são as apontadas pela interpretação sistemática e lógica. Se, por exemplo, não se pode modificar determinada matéria, é evidente que também não se pode cancelar nem modificar o dispositivo que proíbe a modificação.

No campo das limitações materiais, estabelece a Constituição Federal:

"Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

...

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

...

IV - Os direitos e garantias individuais."

De tal disposição, deflui a impossibilidade de o Poder Constituinte Derivado Reformador contrariar direitos ou garantias individuais inseridas na Constituição Federal por obra do Poder Constituinte Originário.

Os direitos e as garantias fundamentais constituem um amplo catálogo de dispositivos, onde estão reunidos os direitos de defesa do indivíduo perante o Estado, os direitos políticos, os relativos à nacionalidade e os direitos sociais, dentre outros.

A Constituição refere-se tanto a direitos como a garantias fundamentais. Embora árdua a tarefa, pois não são nítidas as diferenças entre os direitos e as garantias fundamentais, mesmo porque, em última instância, estas são direitos e os direitos são garantias constitucionais, consegue-se diferenciar uns dos outros. Enquanto os direitos teriam por nota de destaque o caráter declaratório ou enunciativo, as garantias estariam marcadas pelo seu caráter instrumental, vale dizer, seriam os meios voltados para a obtenção ou reparação dos direitos violados.

Os direitos fundamentais podem ser conceituados como a categoria jurídica instituída com a finalidade de proteger a dignidade humana em todas as suas dimensões. Por isso, tal qual o ser humano, tem natureza polifacética, buscando resguardar o homem na sua liberdade (direitos individuais), nas suas necessidades (direitos sociais, econômicos e culturais) e na sua preservação (direitos relacionados à fraternidade e à solidariedade). Formam, como afirmado, uma categoria jurídica. Isso significa que todos os direitos que recebem o adjetivo de fundamental possuem características comuns entre si, tornando-se, assim, uma classe de direitos.

Os direitos fundamentais não se localizam somente no Título II da nossa Constituição, mas são todos os que se enquadrem no mínimo necessário ao cidadão para existir com dignidade. O direito à saúde é exemplo típico. Trata-se de direito fundamental, que está explicitamente reconhecido no Título II da Constituição Federal, em seu art. 6º, como direito social. A interpretação sistemática, por seu lado, faz com que os direitos se espalhem pelo texto, de forma que o assegurado genericamente no art. 6º seja detalhado nos arts. 196 e 197.

Um exemplo dessa situação é o direito à anterioridade tributária, que, apesar de constar do art. 150, III, b, na parte relativa às limitações do poder de tributar, por preencher todas as características de direito fundamental, reveste-se de tal natureza, como, aliás, já declarou o Supremo Tribunal Federal (ADIn 939), em julgamento de ação direta de inconstitucionalidade da Emenda Constitucional n. 3. [37]

5.1 O Princípio da Legalidade como Direito Fundamental.

O art. 5º, inciso II, da Constituição Federal, estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, expressão jurídica do princípio da legalidade.

A história mostra que o Princípio da Legalidade surge da necessidade de consentimento do povo para a imposição de obrigações, sendo que a reserva de lei nessa matéria é exigida, de forma universal, nos Estados Constitucionais de Direito.

A legalidade é a base na qual se assenta o Estado de Direito, conforme disposto no art. 1º da Constituição Federal: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos.

O conceito de lei, tal como previsto no inciso II do artigo 5º da Constituição Federal, refere-se a todo ato normativo editado ordinariamente pelo Poder Legislativo, ou, excepcionalmente, e de modo genérico, pelo Poder Executivo, no caso de Leis Delegadas (artigo 68 da Constituição Federal) e das Medidas Provisórias (artigo 62 da Constituição Federal), no desempenho de suas competências constitucionais.

Contudo, em se tratando de Direito Tributário, o princípio da legalidade vem reforçado no que tange à sua aplicação, já que não se satisfez o legislador constitucional com a disposição genérica do art. 5º, II, indo além no detalhismo característico dos temas constitucionais tributários e formulando, na especificidade do art. 150, I, a exigência de lei para a instituição ou majoração de exações tributárias.

Visceralmente ligado aos Princípios da República e da Democracia, pela ponte da representatividade popular, também a Legalidade, inclusive a Tributária, como irrecusável direito e garantia individual do cidadão-contribuinte que constitui, nos termos expressos do art. 150, caput, encontra-se seguramente protegida entre as cláusulas de pedra da Lei Maior (art. 60, § 4º, IV). [38]

Um dos principais argumentos contrários à utilização da medida provisória em matéria tributária é que só a lei obriga e, como já explorado, medida provisória não é lei – tem força de lei – e assim sendo a instituição ou aumento de tributos não poderia dar-se através desse instrumento.

Invoca-se o princípio da legalidade, com muito mais razão, em matéria tributária, haja vista que o constituinte reservou nessa seara do Direito um dispositivo especial dentro do Texto - art. 150, inciso I - para ressaltar a sua importância, quando se tratar de criação ou aumento de tributo.

Diante do exposto, verifica-se uma incongruência entre a possibilidade de instituição ou majoração de tributo por medida provisória, atividades pretensamente autorizadas pela Emenda Constitucional n. 32/2001, fruto do Poder Constituinte Derivado Reformador, sujeito a limitações de ordem material, entre elas os direitos fundamentais, e o direito fundamental do cidadão, consubstanciado no princípio da estrita legalidade do Direito Tributário, o que será melhor explorado no tópico seguinte.

5.2. O princípio da legalidade genérica (artigo 5º, inciso II) e a legalidade estrita do direito tributário (artigo 150, inciso I)

No direito brasileiro, o Princípio da Legalidade deve ser entendido como uma relação de conformidade com a lei em sentido formal, ato oriundo do órgão que detém a competência constitucional para legislar e revestido da forma estabelecida para as leis, e não só em sentido material, como regra de comportamento genérica e coativa.

Tão robusto é o papel do Princípio da Legalidade no Brasil, que Pontes de Miranda viu-se impelido a cunhar-lhe novo rótulo, dada a sua especificidade e a despeito de riqueza da língua-mãe. Batizou-o de "legalitariedade". [39]

Legalitariedade tipificada na Constituição Federal, configurando o Princípio da Estrita Legalidade da Tributação (art. 150, inciso I).

Entre nós, o princípio da legalidade foi albergado desde a Constituição Federal de 1824, que, em seu art. 179, inciso I, estabelecia:

"Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte:

I - Nenhum cidadão pode ser obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma cousa, senão em virtude de Lei."

Na primeira Constituição Federal Republicana, de 1891, o princípio em tela constou do art. 72:

"Art. 72. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros, residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade nos termos seguintes:

§ 1º Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma cousa, senão em virtude de lei.

(...)

§ 30. Nenhum imposto de qualquer natureza poderá ser cobrado senão em virtude de uma lei que o autorize."

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A Carta Magna de 1934 dispôs em seu art. 113:

"Art. 113. A Constituição assegura a brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual, e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

2) Ninguém será obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei."

A Constituição Federal de 1946 tornou expressos os princípios da legalidade e da estrita legalidade em seu art. 141, §§ 2º e 34. No Texto Constitucional de 1967, os princípios em tela foram registrados expressamente no art. 153, § 2º, e no art. 19, inciso I.

O princípio da estrita legalidade ou princípio da reserva absoluta da lei formal foi enfatizado pelo legislador constituinte de 1988, que fez questão de reforçar a obrigatoriedade desse princípio em matéria tributária ao fazer constar, no art. 150, inciso I, da atual Constituição, em dispositivo integrante do capítulo reservado ao Sistema Tributário Nacional, vedação à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, para exigir ou aumentar tributos sem lei que o estabeleça.

É um comando genérico à Administração Pública e traduz a idéia de que é preciso resguardar o contribuinte da aplicação de tributos arbitrários. Isso significa que a lei tributária deve proteger o contribuinte, estabelecendo previamente o fato que, se e quando ocorrido, nos termos previstos em lei, dará surgimento à obrigação do particular de recolher aos cofres públicos valores determinados a título de tributo.

Destaque-se que a previsão que deve constar em lei sobre a exigência ou majoração de tributos deve ser completa.

Por isso, a majoritária doutrina entende que o princípio da legalidade em sede tributária tem hodiernamente o mesmo cunho de reserva legal que o Direito Penal, dada sua especificidade; elevado, pois, à categoria de princípio da tipificação tributária.

Certamente, o princípio da tipificação tributária conduz todos à certeza e à segurança de que a tributação só terá seu conteúdo especificado por lei, em seu sentido formal (instrumento normativo proveniente do poder legislativo) e material (norma jurídica geral, impessoal, abstrata e compulsória), obstando interferências ocasionais e contingenciais tanto da parte do administrador quanto da parte do juiz.

Ensina Roque Carrazza, referindo-se à lei como limitação ao exercício da competência tributária:

"De fato, em nosso ordenamento jurídico, os tributos só podem ser instituídos e arrecadados com base em lei. Este postulado vale não só para os impostos, como para as taxas e contribuições que, estabelecidas coercitivamente, também invadem a esfera patrimonial privada.

No direito positivo pátrio o assunto foi levado às últimas conseqüências, já que uma interpretação sistemática do Texto Magno revela que só a lei ordinária (lei em sentido orgânico-formal) pode criar ou aumentar tributos. Dito de outro modo só à lei -tomada na acepção técnico-específica de ato do Poder Legislativo, decretado em obediência aos trâmite e formalidade exigidos pela Constituição - é dado criar ou aumentar tributos."

Trata-se, pois, de princípio inderrogável, erigido como direito individual, absolutamente insuperável, até mesmo pelo legislador. Esse primado da legalidade impõe que as leis sejam votadas e aprovadas por representantes eleitos pelo povo. É, acima de tudo, uma garantia ao Estado de direito.

Assim sendo, para a instituição de qualquer tributo, é preciso que a lei, compreendida em sentido formal, traga em seu bojo todos os critérios identificadores do fato jurídico tributário e da relação jurídica tributária, não podendo qualquer dos aspectos da regra-matriz de incidência ser introduzido por veículo diverso.

Deve o legislador, portanto, ao formular a lei, definir, de modo taxativo e completo, as situações, os tipos tributáveis cuja ocorrência será necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária e os critérios de quantificação do tributo.

Disso decorre a tipicidade tributária cerrada, de tal sorte que o brocardo nullum tributum sine lege traduz o imperativo de que todos os elementos necessários à tributação do caso concreto se contenham e apenas se contenham na lei.

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Sobre o autor
Renato Bernardi

procurador do Estado de São Paulo, professor das Faculdades Integradas de Ourinhos, professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná, professor da Pós-Graduação em Direito Tributário da Faculdade de Direito da Alta Paulista em Tupã (SP), mestre em Direito Constitucional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERNARDI, Renato. A impossibilidade de instituição ou majoração de tributo por meio de medida provisória. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 818, 29 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7357. Acesso em: 23 abr. 2024.

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