A proibição de aquisição, uso e disseminação de bebidas alcoólicas aos povos indígenas.

O artigo 58, inciso III, da Lei n.º 6001/1973 no Estado Democrático de Direito

29/04/2019 às 14:03
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O artigo 58, inciso III, da Lei n.º 6001/1973 que proíbe a aquisição, uso e disseminação de bebidas alcoólicas aos povos indígenas é uma norma que discrimina as pessoas indígenas no Estado Democrático de Direito?

O cenário atual do Brasil é bem diferente de anos atrás, eis que nos dias de hoje a inteiração social de povos indígenas que eram praticamente/totalmente isolados se faz presente, buscando-se interagirem com os nacionais, mantendo, dentro do possível, a preservação de suas culturas. Importante mencionar que a cultura dos não-índios é uma grande atração para os indígenas, e por conseqüência, ao se interagirem, adotam práticas que não são politicamente corretas. Á guisa de exemplo, observar-se que é o que ocorre com o consumo das bebidas destiladas.

É sobremodo importante dizer que os povos indígenas fabricam suas próprias bebidas, e que dentro da tradição de cada grupo étnico estes possuem seus estilos tradicionalistas de beberem. Ocorre que, atualmente foge ao modo tradicional de consumir bebidas alcoólicas trazendo para suas comunidades, consequências negativas.

Devido aos problemas de ordem pública e judicial advindas do consumo excessivo do álcool, foi-se criado o artigo 58, inciso III, da Lei nº 6.001, que assim impõe:

 Art. 58. Constituem crimes contra os índios e a cultura indígena:

[...]

III - propiciar, por qualquer meio, a aquisição, o uso e a disseminação de bebidas alcoólicas, nos grupos tribais ou entre índios não integrados. Pena - detenção de seis meses a dois anos.

Parágrafo único. As penas estatuídas neste artigo são agravadas de um terço, quando o crime for praticado por funcionário ou empregado do órgão de assistência ao índio.

Por conseguinte, o dispositivo trouxe grande discussão, pois há aqueles que defendam a aplicabilidade da norma, outros são contrários, por acreditarem estar violando Princípios da Constituição Federal e tratados internacionais.

Muitos são favoráveis a respeito da norma repressiva imposta pelo artigo 58, inciso III, do Estatuto do Índio, por considerarem as bebidas alcoólicas a principal causa de extermínio dos povos indígenas. Um dos principais motivos para a criação da norma que proíbe a aquisição, uso e disseminação de bebidas alcoólicas aos povos indígenas é o fato de garimpeiros se utilizarem do álcool como meio para usurpar os índios e adentrar em suas terras. Neste sentido, nota-se que o consumo excessivo do álcool por alguns povos indígenas está relacionado devido a inteiração com a sociedade envolvente.

A respeito do consumo de bebidas destiladas aos povos indígenas, “reconhece que seu consumo, direta ou indiretamente, relaciona-se a um conjunto de agravos que constituem as principais causas de morbimortalidade tanto para a população em geral, como para os grupos étnicos em particular (SOUZA, 2013. p. 13)”.

Essa realidade também acontece nos Estados Unidos, onde quatro de dez mortes dos povos indígenas estão relacionadas ao consumo do álcool, sendo as principais causas: acidentes, homicídio, suicídio e cirrose hepática. Assim, 38% das mortes dos povos indígenas americanos são provocadas pelo abuso de álcool (SOUZA, 2013, p. 13).

Ora, face às considerações aduzidas, nota-se que “os efeitos negativos são prioritariamente em relação às bebidas compradas nas cidades (cachaça, conhaque, vinho, cerveja, uísque) (SOUZA, 2013, p. 118).” Por consequência, muitos grupos indígenas já se dissiparam devido ao consumo exorbitante de bebidas destiladas, trazendo efeitos negativos para as aldeias.

Os índios estão bebendo outras substancias e o fazem, frequentemente, em novos contextos sociais. Estas mudanças trazem consequências altamente negativas para as comunidades, na forma de violência geral e familiar, desnutrição danos à saúde das crianças – em casos de síndrome alcoólica fetal, atropelamentos nas estradas etc (SOUZA, 2013, p. 34).

Como observa-se na referida citação, outro problema referente ao consumo excessivo do álcool é devido a preocupação de ser um hábito ancestral a ingestão de bebidas destiladas, as mulheres grávidas correm riscos em seu período gestacional, pois “a ingestão de álcool por mulheres em idade fértil tem elevado consideravelmente o risco de crianças nascerem com a Síndrome Alcoólica Fetal – SAF”.

Assim, devido as consequências trazidas aos povos indígenas pelo consumo excessivo de bebidas destiladas, tais como: homicídios, doenças como cirrose ou intoxicação, violência geral e familiar, acidentes, e outros, o entendimento concordacionista acredita que deve haver essa medida repressiva do poder Estatal para punir aqueles que propicia o álcool, substância responsável pela destruição de povos e comunidades indígenas.

Contudo, os que são contrários a Lei acreditam que como houve a extinção de vários grupos indígenas, a lei fora criada, pois os legisladores acreditavam que com o contato do álcool, a bebida destilada provoca nas aldeias  o aumento da violência, uma vez que o consumo excessivo do álcool pode acarretar brigas internas, acidentes, problemas psicológicos e até morte.

Os argumentos trazidos à baila pelos legisladores não são totalmente aceitos por parte da doutrina, uma vez que acreditam que as bebidas destiladas não é a causa principal do extermínio nas aldeias indígenas. Neste raciocínio, Maximiliano Loiola Ponte de Souza, em seu livro diz que:

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Os homicídios, as agressões intrafamiliares e os acidentes não são consequências necessárias do consumo do álcool, mas sim comportamentos possíveis, considerados mais ou menos estimulados e/ou aceitos por diferentes sociedades, realizados por sujeitos específicos  (SOUZA, 2013, p.12).

FERNANDES (2002,p. 56), complementa:

O alcoolismo indígena, tal como ocorre entre outras etnias, é uma decorrência do contexto social em que as bebidas são consumidas; desta forma vemos que as sociedades nativas impunham limites claros ao consumo de bebidas alcóolicas, limites que configuravam um controle social da embriaguez, controle este quase que completamente perdido com o processo da conquista. Mais do que a mudança do tipo de bebida, é no contexto social e em suas transformações que deveremos buscar as respostas para as questões que são colocadas pela documentação histórica.

Seguindo o cerne da questão, há de se perceber perfeitamente pelo entendimento dos que são contrários à lei, que não é lógico proibir a aquisição, uso e disseminação de bebidas alcóolicas nas aldeias indígenas, em face à pranteada inconstitucionalidade de tirar a autonomia de uma determinada etnia. Segundo Mariano (1999, pp. 22-23), “o problema que se identifica no uso das bebidas alcoólicas está associado ao abuso no consumo, seja crônico, seja agudo, produzindo, por sua vez, danos nas diversas áreas, tanto individual quanto socialmente” e não na proibição das bebidas.

É de ser relevado que lideranças indígenas não apoiam o dispositivo legal, conforme SOUZA (2013, p. 183) narra:

É importante ressaltar que esse dispositivo legal não goza de popularidade mesmo entre lideranças indígenas, principalmente porque costuma ser associado ao regime tutelar, historicamente adotado pelo Estado brasileiro, considerado anacrônico por atribuir ao índio a condição de juridicamente incapaz.

Além de tudo isso, o artigo 58, inciso III, do Estatuto do Índio trouxe um enorme problema social, pois “por ser uma lei de caráter repressivo, favorece o desenvolvimento de um rendoso mercado negro de venda de bebidas alcoólicas, considerando preços exorbitantes observados em determinadas regiões indígenas” (SOUZA, 2013, p. 183). Logo, “além de não diminuir o uso indiscriminado de bebidas alcoólicas tem estimulado sobremaneira, o comércio clandestino da bebida, vendida disfarçada em garrafas de refrigerantes (BURATTO, 2013, p. 706)”.

Não se pode perder de vista, que o Estatuto do Índio fora promulgado em 1973, anos antes da Constituição Federal de 1988, e devido á isso, os defensores da corrente contrária acredita que este dispositivo, assim como todo o Estatuto do Índio deve ser modificado, pois viola Princípios da Igualdade e da Dignidade da Pessoa Humana, contrariando e violando a Lei Maior, pois defendem o direito de autodeterminação, ou seja, sendo os povos ou comunidades indígenas em um Estado Democrático de Direito livres para decidirem o que é melhor para eles. Assim, entende-se que o artigo 58, III, da Lei 6.0001 de 1973 deve ser extinto, buscando outras formas de intimidar o consumo do álcool, tais como a utilização das medidas de políticas públicas.

Desta forma, pelo posicionamento contrário a lei, há muitas indagações, dentre elas o principal questionamento é: Se o direito a igualdade é para todos, é correto ter um dispositivo que garante apenas a vitaliciedade dos povos indígenas?

De fato, como se pode notar no presente estudo, as bebidas alcoólicas causam efeitos drásticos seja aos povos indígenas ou aos não-índios. O que se questiona, todavia, é o direito a igualdade, ou seja, os povos indígenas poderem exercer os seus direitos, inclusive o de autodeterminação.

Embora haja quem seja contrário ao art. 58, inciso III, do Estatuto do índio, há quem se posiciona adepto a tal norma, enfatizando o direito a alteridade e os danos que as bebidas destiladas trazem às comunidades indígenas. O consumo das bebidas alcoólicas dentro das comunidades é feito por adultos, jovens, adolescentes, mulheres e até mesmo crianças, causando um conjunto de danos irreparáveis, tais como: violência, danos à saúde, mortes, riscos de gravidez, dentre outros, sendo este motivo preocupante.

Na defesa do dispositivo, narram que os povos indígenas possuem suas próprias bebidas, e quando fazem o consumo de bebidas destiladas, causam desestruturação na organização de suas comunidades e atitudes inadequadas perante as manifestações culturais. Ao passo que, devido a isso, apoiam a proibição da aquisição, uso e disseminação de bebidas alcoólicas aos povos indígenas, e ainda, a pena instituída pelo artigo.

Verifica-se, pois, que tanto o entendimento favorável a aplicação da lei, quanto o entendimento contrário, possuem suas fundamentações. Em vista disso, seria desarrazoado se posicionar sobre um tema que se desconhece a vontade alheia (povos indígenas). Assim, não há como terminar este estudo com um ponto final, ao invés disso, ouso-me a concluir com reticências há quem irá lê-lo adiante, eis que variam os posicionamentos de cada indivíduo. 

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