1. Introdução
A Medida Provisória nº 881, de 30 de abril de 2019, que instituiu a “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, estabelecendo garantias de livre mercado e consagrando o princípio da intervenção mínima do Estado, causou forte impacto no Código Civil.
Diversas partes do Código foram atingidas:
- O art. 421, norma-sede da função social do contrato, experimentou o acréscimo de um vetor referencial ou limitativo, com a inserção da expressão “observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, além da consagração, em parágrafo único, do princípio da intervenção mínima do Estado: “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional.”;
- Ao art. 423, que regula a interpretação do contrato por adesão, fora acrescentado um parágrafo único que, tratando de contratos que não sejam pactuados sob a técnica por adesão, dispõe acerca da interpretação mais favorável a quem não redigiu a cláusula controvertida: “Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas que gerem dúvida quanto à sua interpretação, será adotada a mais favorável ao aderente. Parágrafo único. Nos contratos não atingidos pelo disposto no caput, exceto se houver disposição específica em lei, a dúvida na interpretação beneficia a parte que não redigiu a cláusula controvertida.”;
- Foram acrescentados, no Título dedicado aos Contratos em Geral, no Capítulo II, Seção IV, os arts. 480-A e 480-B, voltados, especialmente, ao reconhecimento da paridade nas relações interempresariais: Art. 480-A. Nas relações interempresariais, é lícito às partes contratantes estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação de requisitos de revisão ou de resolução do pacto contratual. Art. 480-B. Nas relações interempresariais, deve-se presumir a simetria dos contratantes e observar a alocação de riscos por eles definida.”;
- Ao art. 980-A, que disciplina a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI), fora acrescentado o § 7º, com o nítido intuito de destacar a autonomia entre os patrimônios do instituidor e da EIRELI: “§ 7º Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de fraude.”;
- O art. 1.052, que dispõe sobre a sociedade limitada, recebeu um parágrafo único, passando a admitir a anômala figura da sociedade unipessoal: “Parágrafo único. A sociedade limitada pode ser constituída por uma ou mais pessoas, hipótese em que se aplicarão ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social.”;
- Acrescentou-se, ainda, o Capítulo X ao Livro III do Direito das Coisas, dedicado ao “Fundo de Investimento” (arts. 1.368-C a 1.368-E): “Art. 1.368-C. O fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio, destinado à aplicação em ativos financeiros. Parágrafo único. Competirá à Comissão de Valores Mobiliários disciplinar o disposto no caput. Art. 1.368-D. O regulamento do fundo de investimento poderá, observado o disposto no regulamento a que se refere o parágrafo único do art. 1.368-C: I - estabelecer a limitação da responsabilidade de cada condômino ao valor de suas cotas; e II - autorizar a limitação da responsabilidade dos prestadores de serviços fiduciários, perante o condomínio e entre si, ao cumprimento dos deveres particulares de cada um, sem solidariedade. Art. 1.368-E. A adoção da responsabilidade limitada por fundo constituído sem a limitação de responsabilidade somente abrangerá fatos ocorridos após a mudança.”
E, nesse contexto, sofreu também impacto o art. 50 do Código Civil, dispositivo de grande importância jurídica, que regula a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
Sobre tais alterações, compartilharemos as nossas primeiras impressões.
2. Algumas Palavras sobre a Desconsideração da Personalidade Jurídica[1]
A doutrina da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica (disregard of legal entity) ganhou força na década de 50, com a publicação do trabalho de ROLF SERICK, professor da Faculdade de Direito de Heidelberg.
Com fulcro em sua teoria, pretendeu-se justificar a superação da personalidade jurídica da sociedade em caso de abuso, permitindo-se o reconhecimento da responsabilidade dos sócios. O seu pensamento causou forte influência na Itália[2] e na Espanha[3].
Segundo a doutrina clássica, o precedente jurisprudencial que permitiu o desenvolvimento da teoria ocorreu na Inglaterra, em 1897[4].
Em linhas gerais, a doutrina da desconsideração pretende o afastamento temporário da personalidade da pessoa jurídica, em caso de abuso, a fim de que o credor possa satisfazer o seu direito no patrimônio pessoal do sócio ou administrador que cometeu o ato abusivo.
“O juiz pode decretar a suspensão episódica da eficácia do ato constitutivo da pessoa jurídica”, diz FÁBIO ULHOA COELHO, “se verificar que ela foi utilizada como instrumento para a realização de fraude ou abuso de direito”[5].
Em nossa visão, a desconsideração da personalidade jurídica é perfeitamente aplicável também às empresas individuais de responsabilidade limitada (EIRELI), assim como poderá ser decretada em face de pessoas jurídicas sem finalidade lucrativa, como associações e fundações.
Em qualquer caso, a desconsideração não pode ser decretada de ofício, sendo matéria sob reserva de jurisdição - ou seja, de competência do Poder Judiciário -, a despeito de já ter havido precedente admitindo a desconsideração por ato direto da Administração (desconsideração administrativa)[6].
Sobre a possibilidade de decretação de ofício, poderíamos excepcionar a regra geral no sentido da sua vedação, em situações específicas e justificadas, como escreve, com habitual erudição o talentoso jurista FLÁVIO TARTUCE:
De início, estabelece o art. 133, caput, do Novo Código de Processo Civil que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo. Assim, fica afastada, pelo menos a priori, a possibilidade de conhecimento de ofício, pelo juiz, da desconsideração da personalidade jurídica. Lembre-se de que a menção ao pedido pela parte ou pelo Ministério Público consta do art. 50 do Código Civil. Apesar disso, o presente autor entende que, em alguns casos, de ordem pública, a desconsideração da personalidade jurídica ex officio é possível. Citem-se, de início, as hipóteses envolvendo os consumidores (…) também é viável (…) nos casos de danos ambientais (…). A conclusão deve ser a mesma nas hipóteses envolvendo corrupção, por força da recente Lei 12.846/2013, de interesse coletivo inquestionável[7].
Na seara processual, de forma inovadora no Direito Positivo, o CPC/2015 trouxe disciplina específica para a desconsideração da personalidade jurídica, estabelecendo expressamente um procedimento para a sua aplicação (arts. 133 a 137).
Claro está que a desconsideração da personalidade jurídica do ente que serviu como escudo para a prática de atos fraudulentos, abusivos, ou em desvio de função não pode significar, ressalvadas hipóteses excepcionais, a sua aniquilação.
Entretanto, reconhecemos que, em situações de excepcional gravidade, poderá justificar-se a despersonalização, em caráter definitivo, da pessoa jurídica, entendido tal fenômeno como a extinção compulsória, pela via judicial, da personalidade jurídica. Apontam-se os casos de algumas torcidas organizadas que, pela violência de seus integrantes, justificariam o desaparecimento da própria entidade de existência ideal.
Assim sendo, o rigor terminológico impõe diferenciar as expressões: despersonalização, que traduz a própria extinção da personalidade jurídica, e o termo desconsideração, que se refere apenas ao seu superamento episódico, em virtude de fraude ou abuso.
Ambas, porém, não se confundem com a responsabilidade patrimonial direta dos sócios, tanto por ato próprio quanto nas hipóteses de corresponsabilidade e solidariedade[8].
Um importante ponto deve ainda ser ressaltado: o Código Civil, em seu art. 50, adotou a denominada teoria maior da desconsideração, por exigir, além da insuficiência patrimonial, pressuposto lógico, a demonstração do abuso caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.
Contrapõe-se, pois, à denominada teoria menor da desconsideração, de aplicação mais facilitada, que exige, apenas, a insuficiência patrimonial, consagrada no Direito Ambiental e do Consumidor, bem como na Justiça do Trabalho.
3. O art. 50 e a Medida Provisória da “Liberdade Econômica” (MP nº 881/19)
Visando a imprimir um aspecto claro, preciso e objetivo a este texto, permitindo que o nosso leitor compreenda as alterações decorrentes da Medida Provisória, cuidaremos de estabelecer uma argumentação comparativa com a antiga redação do art. 50.
Pois bem, originalmente, a norma assim estava redigida:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Com a publicação da nova MP, a redação do caput passou a ser:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. (grifamos)
Lembrando o célebre embate linguístico entre RUI BARBOSA e CARNEIRO RIBEIRO, quando em discussão o Código de 1916, observamos a adequada supressão de uma vírgula antes do primeiro conectivo “ou”.
Houve também a substituição do verbo decidir, o que não alterou o sentido do texto, dada opções feita pelo legislador[9] em adotar o verbo “ desconsiderar”.
Andou muito bem o novo diploma ao acrescentar, no final do texto legal, a expressão “beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”, porquanto a desconsideração é instrumento de imputação de responsabilidade, não podendo, por certo, sob pena de se ignorar a exigência do próprio nexo causal, atingir sócio que não experimentou nenhum benefício (direito ou indireto) em decorrência do ato abusivo perpetrado por outrem.
Pois bem. Ultrapassada a análise do caput, os parágrafos seguintes não constavam na redação original do Código Civil:
§ 1º Para fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.
Este parágrafo conceituou o desvio de finalidade.
A sua redação não nos agrada.
É tarefa primordial da doutrina firmar conceitos.
Mas, ainda que se obtempere que a definição trazida pelo legislador traria uma maior segurança jurídica, por outro, a expressa menção à “utilização dolosa” como requisito para caracterizar o desvio é, em nosso sentir, um retrocesso.
A desnecessidade de se comprovar o dolo específico - a intenção, o propósito, o desiderato - daquele que, por meio da pessoa jurídica, perpetrou o ato abusivo, moldou a teoria objetiva, mais afinada à nossa realidade socioeconômica e sensível à condição a priori mais vulnerável daquele que, tendo o seu direito violado, invoca o instituto da desconsideração.
FÁBIO KONDER COMPARATO afirmava que a “desconsideração da personalidade jurídica é operada como consequência de um desvio de função, ou disfunção, resultando, sem dúvida, as mais das vezes, de abuso ou fraude, mas que nem sempre constitui um ato ilícito”[10].
Ora, a exigência do elemento subjetivo intencional (dolo) para caracterizar o desvio, colocaria por terra o reconhecimento objetivo da tese da disfunção.
§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:
I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto o de valor proporcionalmente insignificante; e
III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
O inciso III deste § 2º, ao mencionar, genericamente, que caracterizam a confusão patrimonial “outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial”, resultou por tornar meramente exemplificativos os incisos anteriores.
Podem traduzir confusão patrimonial, por exemplo, a movimentação bancária em conta individual do sócio para as operações habituais da sociedade, o lançamento direto como despesa da pessoa jurídica de gastos pessoais do sócio ou administrador etc.