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ITBI: breves comentários sobre o Decreto nº 46.228/2005, do Município de São Paulo

30/09/2005 às 00:00
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O Prefeito do Município de São Paulo baixou o Decreto nº 46.228, de 23 de agosto de 2005, para tentar ajustar o valor venal do imóvel para fins de cálculo do ITBI ao conceito doutrinário, segundo o qual, "é o preço de venda, à vista, em condições normais do mercado, comportando variação de 10% para mais ou para menos" (Cf. nosso Direito tributário municipal, 2ª edição, Atlas, 2004, p. 95).

É público e notório que o valor venal, para fins de lançamento do IPTU, está bem aquém da realidade imobiliária, o que não quer dizer, necessariamente, que a legislação do IPTU é falha. Daí o Decreto sob comento, para corrigir a distorção que permita arrecadar o ITBI incidindo sobre outra base de cálculo que não a do IPTU para que espelhe a realidade das transações imobiliárias.

Prescreve esse Decreto em seu art. 7º e § 1º:

"Art. 7º A base de cálculo do imposto é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos.

§ 1º Considera-se valor venal, para efeitos deste imposto, o valor pelo qual o bem ou direito seria negociado à vista, em condições normais de mercado".

E preceitua o art. 8º e § 1º:

"Art. 8º A Secretaria Municipal de Finanças tornará públicos os valores venais atualizados dos imóveis inscritos no Cadastro Imobiliário Fiscal do Município de São Paulo.

§ 1º Os valores venais dos imóveis serão atualizados periodicamente, de forma a assegurar sua compatibilização com os valores praticados no Município, mediante pesquisa e coleta permanente, por amostragem, dos preços correntes das transações e das ofertas à venda no mercado imobiliário, inclusive com a participação da sociedade representada no Conselho de Valores Imobiliários."

Acrescenta seu § 3º que:

"§ 3º O valor venal divulgado, em nenhuma hipótese, será inferior à base de cálculo do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana – IPTU, utilizada no exercício da transação".

Quanto ao valor mínimo da base de cálculo do ITBI não há dúvida que se trata daquele valor apurado de conformidade com a Lei nº 10.235/86, que incorpora os modernos métodos e técnicas de avaliação de imóveis, aceitos pela doutrina especializada e pela jurisprudência de nossos Tribunais. O valor venal encontrado segundo essa lei é, também, aceito pela Fazenda Estadual para pagamento do imposto sobre transmissão causa mortis e doação de quaisquer bens ou direitos – ITCMD.

Entretanto, o Decreto é omisso quanto aos critérios ou métodos objetivos para encontrar o valor de mercado, o que, aliás, é missão privativa da lei, porque esse valor é a base de cálculo do imposto, um doas aspectos do fato gerador da obrigação tributária.

Apesar de o Decreto não estabelecer como se apura o valor venal, o § 1º do art. 8º prescreve a atualização periódica desse valor venal, "mediante pesquisa e coleta permanente, por amostragem, dos preços correntes das transações e das ofertas à venda no mercado imobiliário".

Simples leitura ocular desse texto revela não se tratar de mera atualização monetária da base de cálculo a que alude o § 2º do art. 97 do CTN. Essa "atualização" implica, necessariamente, majoração do tributo ferindo o princípio da legalidade tributária (art. 150, I da CF). Por isso, o STF já decidiu que a majoração do valor venal por Decreto é inconstitucional (RE 92.335-SP, in RTJ 96/880).

Nos chamados "tributos aplicáveis" (IPTU e ITBI) é preciso não confundir o plano abstrato da eleição de critérios ou métodos avaliativos, com o plano concreto da constituição do crédito tributário em cada caso, mediante a atividade do lançamento, que é ato administrativo vinculado. Vinculado a que? À lei, evidentemente!

No caso da base de cálculo do IPTU/ITBI não há precisão matemática para a apuração do chamado "valor venal do imóvel", que resulta da pesquisa de mercado e que, por isso mesmo, representa mera presunção de que determinado imóvel tem aquele valor de mercado. Daí a imprescindibilidade de visualizar um instrumento jurídico, capaz de determinar, em cada caso concreto, a base de cálculo do IPTU/ITBI tanto quanto possível, próximo da realidade imobiliária local, e, ao mesmo tempo, propiciar ao sujeito passivo elementos que possibilitem a impugnação do valor venal atribuído a seu imóvel [01], ofertando avaliação contraditória, na forma do art. 148 do CTN [02].

Daí, as chamadas Plantas Genéricas de Valores – PGVs – onde estão estabelecidos os critérios de apuração do valor venal de uma infinidade de imóveis semelhantes ou afins, para fins de lançamento do IPTU. É com base nessas PGVs que o órgão competente do Executivo vai atribuir a base de cálculo in concreto, em relação a cada imóvel tributado. As PGVs não fixam o valor venal de cada imóvel, porém, editam regras gerais hipotéticas para a constituição do crédito tributário em cada caso, mediante a atividade do lançamento, que é ato administrativo vinculado. Apenas a operação para calcular o quantum debeatur em relação a cada imóvel, com fundamento no critério abstrato, previsto nas PGVs, é que se insere no âmbito de competência privativa do Executivo. As PGVs, por integrarem a base de cálculo do IPTU/ITBI (art. 146, III, ‘a’ da CF) só poderão resultar de lei, jamais de decreto, em obediência ao princípio da legalidade tributária (art. 150, I da CF e art. 97, I do CTN). Daí porque a Súmula 160 do STJ veda a atualização do IPTU, mediante decreto, em percentual superior ao índice oficial de correção monetária.

O Decreto sob comento confundiu, à toda evidência, o aspecto hipotético das normas de avaliação (previstas em lei), com o aspecto concreto da avaliação de cada imóvel com base naquelas normas. Para constatação dessa confusão jurídica, basta simples leitura ocular do seu art. 8º, que prescreve a disponibilização pública de valores venais atualizados de cada imóvel inscrito no Cadastro Imobiliário Fiscal do Município.

Esse art. 8º encerra dupla inconstitucionalidade. Primeiramente, a apuração do valor venal atualizado de cada imóvel só pode ser feita no momento da ocorrência do fato gerador, por meio de uma das modalidades do lançamento tributário. É tarefa do agente público competente, e não do legislador. Em segundo lugar, se nem a lei pode ter caráter concreto, para definir de antemão o valor venal de cada um dos milhões de imóveis existentes, muito menos o decreto pode ter esse efeito concreto, agravado, ainda, pela constante "atualização" por meio de pesquisas de mercado.

Na verdade, o valor venal de cada imóvel, apurado pelo órgão competente da Municipalidade, para efeito de lançamento do IPTU e com base nos métodos e critérios objetivos previstos na Lei nº 10.235/86, encerra presunção de que espelha o valor de mercado. É o que quanto basta para legitimar o uso desse valor venal para efeito de recolhimento do ITBI, apenas procedendo-se a sua atualização monetária para a data da ocorrência do fato gerador do imposto. Eventual diferença deverá ser objeto de lançamento complementar, respeitados os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Entretanto, o Decreto sob exame inverte e subverte essa presunção ao dispor, em seu art. 10, que cabe ao contribuinte requerer avaliação especial do imóvel caso não concorde com a base de cálculo previamente fixada e divulgada pela Administração nos termos do caput do art. 8º retro analisado.

Nos chamados "tributos avaliáveis" não há como exigir a exatidão matemática na apuração da sua base de cálculo, o valor venal do imóvel, pois eventuais discrepâncias são próprias desses tributos. Querer buscar o valor real de cada transação imobiliária, sujeito até a incidência de fatores subjetivos, seria o mesmo que pretender encontrar o verdadeiro lucro para fins de tributação pelo imposto de renda naquela modalidade de ‘lucro presumido’. Não se tem notícias de que a Receita Federal tenha publicado uma pauta de ‘lucros presumidos’ para cada tipo de empresa.

Nunca de pode esquecer da elementar noção de que não cabe ao aplicador da lei discutir critérios da lei. Nem deve o aplicador substituir o critério de justiça do legislador por seus próprios critérios. Do contrário, todos os dispositivos do Código Penal poderiam ser questionados, por exacerbação ou atenuação da pena.

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Não é por outra razão que a Fazenda do Estado vem acolhendo o valor venal do imóvel, mencionado na notificação de lançamento do IPTU, para a cobrança do imposto de transmissão causa mortis, como se pode constatar dos inúmeros processos de inventários em curso.

É curioso observar que, enquanto o Estado respeita a lei municipal, lei de regência da matéria, o Município ignora a lei que ele próprio editou livremente.

De duas uma: ou o Município de São Paulo ajusta o valor venal do imóvel com base na Lei nº 10.235/86, ou, elabora uma outra lei prevendo critérios para apuração do valor venal do imóvel especificamente para o ITBI.

A primeira alternativa, mostra-se mais coerente, bastando no caso de sua adoção, a redução da alíquota do IPTU para compensar a elevação da base de cálculo, ou, então, se mantido o valor da base de cálculo, elevar a alíquota do ITBI, que não mais está sujeita à limitação pelo Senado Federal como na ordem constitucional antecedente.

A segunda alternativa, implica a existência, em tese, de "dois valores de mercado", conflitando com a conceituação doutrinária, já aceita pela jurisprudência. Daí a preferência pela primeira alternativa, passando o órgão competente da Prefeitura utilizar corretamente os dados contidos nas PGVs aprovados por lei. O aumento do IPTU/ITBI tanto pode ocorrer por via de elevação do valor venal, como por meio de elevação das respectivas alíquotas.

Entretanto, a Prefeitura, ao invés de promover, às claras, o aumento nominal da alíquota, preferiu o caminho da majoração do imposto de forma sub-reptícia, dentro da tradicional cultura da nebulosidade, que tomou conta do Sistema Tributário nas três esferas políticas, como temos denunciado constantemente.

Em que pese o esforço do Executivo para arrecadar o que seria o justo no seu entender, o instrumento normativo eleito, para correção da distorção, se é que existe, incorre no mesmo vício de inconstitucionalidade de diplomas anteriores sepultados pelo Judiciário.

Outrossim, por oportuno, lembramos a impropriedade redacional do art. 12 e parágrafos, que conduz à inconstitucionalidade manifesta.

O caput do art. 12 determina a apresentação, pelo contribuinte, à Administração Tributária, da Declaração de Transação Imobiliária – DTI, comunicando a ocorrência do fato gerador do imposto.

Só que, o § 1º prescreve que essa Declaração deverá ser feita "até a data em que se efetivar o ato ou contrato sobre o qual incide", ou seja, antes da ocorrência do fato gerador, que só poderia ser a transmissão inter vivos, por ato oneroso, "de bens imóveis por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis" (art. 156, III da CF e art. 35 do CTN).

Ora, a transmissão de propriedade imobiliária só se opera com o registro do título de transferência no Registro de Imóveis competente, de conformidade com o art. 1.245 do Código Civil.

O conceito de "transmissão de propriedade imobiliária", como estabelecido na lei civil, por ter sido utilizado pela Constituição Federal para definir competência impositiva dos Municípios, é vinculante dentro do Direito Tributário (art. 110 do CTN). Do contrário, a discriminação constitucional de impostos seria inócua.

Logo, inconstitucional esse § 1º, bem como o art. 14, que impõe aos notários a obrigação de verificar a correção da DTI e a prova de pagamento do imposto devido. Do mesmo vício padecem os demais dispositivos relacionados aos notários ou que versem sobre pagamento do imposto antes da ocorrência do fato gerador. Inaplicável ao ITBI a figura do fato gerador fictício previsto no § 7º do art. 150 da CF por se tratar de imposto de incidência monofásica.

Finalmente, o § 3º do art. 12, cria por equiparação, a figura criminal do art. 2º da Lei nº 8.137/90 nas hipóteses de omissão de informações ou de prestação de declarações falsas na Declaração de Transação Imobiliária.

Basta simples confronto desse dispositivo regulamentar com as diversas condutas antijurídicas arroladas nos incisos I a V, do art. 2º da Lei nº 8.137/90, para concluir que estamos diante da definição de crime por Decreto, violando o secular e universal princípio do nullum crime sine lege.


Notas

01 Esse valor venal resulta, necessariamente, de presunção júris tantum.

02"Art. 148. Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial."

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Sobre o autor
Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. ITBI: breves comentários sobre o Decreto nº 46.228/2005, do Município de São Paulo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 819, 30 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7369. Acesso em: 5 nov. 2024.

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Título original: "ITBI: breves comentários sobre o Decreto nº 46.228/2005".

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