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Quando morre um policial

10/02/2020 às 13:35
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Quando morre um policial, morremos cada um de nós, seres sociais. O ataque é em decorrência da sua lida, que é a de nos proteger. E quando quem nos protege perde a vida, parte de nós também fica de luto.

Poucos compreendem o que é, de fato, ser policial. É talvez o único trabalho em que, ao assumir o encargo, o aspirante jura – ou seja, assume uma promessa solene – arriscar a própria vida, se necessário for, para defender a sociedade e os cidadãos. Ou seja, ele assina, com uma subliminar pena embebida em sangue, um contrato social abstrato onde admite, de antemão, que irá dispor do seu bem mais precioso – a vida – para proteger o seu próximo, ainda que ele não seja simpático à sua pessoa; à sua família ou à sua função.

Não existe, não entre nós, missão mais altruísta que a do policial, seja ele de qual Força venha a pertencer. O policial é abnegado, dedica-se de forma desinteressada e colabora conscientemente para a manutenção da ordem, percebendo, materialmente, pouco em troca. Ele serve pelo simples prazer de servir e pela capacidade natural de proteger, pois é dele a responsabilidade de zelar pela paz, a qual muitos, diuturnamente, tentam violentamente macular.   

É ela, a Polícia, o braço armado do Estado. E não poderia ser diferente, já que aos seus membros, os policiais, o Estado entrega armas para que defendam a si próprios e a sociedade. E desses atos de defesa, que são contínuos, arriscados e constantes, por vezes emergem infelizes arestas, pois o marginal, que é nocivo por natureza, não está atado a dever algum, que não o de subverter a ordem e atacar, covardemente inclusive, aqueles que lhe são obstáculos.

O policial, em razão disso, titula a chamada linha de defesa social, e é graças a ele que os cidadãos não vivem numa sociedade pós-apocalíptica, pois, sem ordem interna, sociedade alguma prosperaria, ao contrário, ruiria e se consumiria na perfídia dos que veneram a barbárie. Para isso, a Polícia deve ser severa, mas não abusiva; rigorosa, mas atada aos limites da Lei; e acima de tudo, humana, pois o policial é produto da sociedade em que vive, e a ela deve servir.

Mas não raro, essa linha de defesa se rompe. Quando um policial tomba, tomba também a sociedade. E quando um policial é assassinado, isso, em regra, acaba decorrendo da sua prévia condição funcional. Assim, de forma primária, morre um representante do Estado; e, de forma secundária, um membro da sociedade, um homem ou uma mulher que, tempos antes, jurara dar a vida em prol de outra pessoa. Por isso, quando se ataca um policial, a vítima indireta acaba sendo o próprio Estado – todos nós –, pois o ataque se deu em razão da sua profissão, e não somente da sua pessoa.

No Brasil, onde não vigoram penas capitais, o homicídio contra policial, no exercício da sua função ou em decorrência dela, qualifica o crime e resulta numa punição que vai de doze a trinta anos de reclusão. Entretanto isso não tem servido de óbice para refrear essas ações, muitas das quais perpetradas a serviço de organizações criminosas, seja por mera fidelidade ideológica; seja pela quitação de determinada dívida auferida no cárcere. A vida do policial, assim, acaba sendo um troféu no submundo do crime, onde a ética, a moralidade e compaixão simplesmente não existem.

Quando morre um policial, morremos cada um de nós, seres sociais. O ataque é em decorrência da sua lida, que é a de nos proteger. E quando quem nos protege perde a vida, parte de nós também fica de luto.

Episódios recentes como o brutal assassinato do cabo Fernando Flávio Flores nos deram mostras de que, quando existe um ataque a um integrante da Polícia, as adjetivações que foram a ela impostas durante os anos – civil, militar ou municipal – simplesmente desaparecem para dar lugar a uma entidade una e coesa, onde o único estandarte é a bandeira do Estado, e a única corporação, sem divisões, é “Polícia do Estado”, e somente ela.

Esse sentimento de perda, embora mais perceptível nos membros da Polícia, passa também a ser da população como um todo, a qual, nas mídias e redes sociais, clama pela valorização daqueles que a servem, acrescida, ainda, da implacável punição daqueles que atentam contra a vida dos homens e mulheres que vivem para aplicar a Lei.

Diante de cenários como esse, as Polícias acabam virtualmente se fundindo e, sob uma única voz – a do brio –, se unem para reverenciar os seus, pois o policial, embora não possua irmandade de sangue com o seu próximo, enverga para com ele a chamada “irmandade de armas”, cujo significado é estar com o outro na mesma guerra, lutando por uma causa comum. E esse laço acaba sendo nato a todo aquele que veste uma farda, um uniforme ou ostenta um distintivo. Essa irmandade, em termos de honradez, é inabalável, sagrada e perpétua.

Para os que se foram, fica a lembrança e o respeito pelo legado que deixaram. Usar uma faixa negra no ombro ou uma fita escura sob o distintivo são homenagens silenciosas que fazem parte do rito de dor daqueles que ficaram e, sob as mais adversas condições, continuarão, ainda que por altruísmo, engajados numa luta sem fim contra aqueles que, de forma violenta, covarde e criminosa, se opõe ao Estado e a população de bem.

Que a lembrança de cada policial morto represente uma chama imaginária que ilumine os caminhos dos que, nas inesquecíveis palavras de Paulo de Tarso, ainda “combatem o bom combate”, cujo significado reside na imortalidade do nosso ideal e no reconhecimento de uma vida bem vivida a serviço do próximo. A luta, independente das dificuldades, sempre será proveitosa, pois ela é motivada pelas coisas certas. 

Lembro-me de uma imagem imortalizada na base do Grupo Armado de Repressão a Roubos da Polícia Civil de São Paulo, a do Arcanjo Miguel carregando um policial morto em combate. Subliminarmente, quis o autor da obra revelar que o inexpugnável príncipe das milícias celestes, padroeiro dos policiais desde 1950 por ato do Papa Pio XII, estará ao nosso lado na última hora e, reconhecendo a nossa nobreza em vida, deixará momentaneamente a sua posição de mando nos exércitos de Deus e, com humildade, conduzirá o nosso espírito até a eternidade, advogando em nosso favor se necessário for.

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Enfim, fica agora o doído silêncio dos que se foram e se eleva a voz de resistência dos que aqui permaneceram, os quais, independente das adversidades, jamais deixarão de combater o bom combate, ainda que isso lhes custe a própria vida. Quando um policial morre, se apaga uma luz no front de batalha. Entretanto, essa mesma luz se eleva em espírito e, mesmo em outro plano, passa a iluminar a mente e as ações dos que aqui, bravamente, ficaram em missão.  

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Sobre o autor
Marcelo de Lima Lessa

Formado em Direito pela Faculdade Católica de Direito de Santos (1994). Delegado de Polícia no Estado de São Paulo (1996), professor concursado de “Gerenciamento de Crises” da Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra”. Ex-Escrivão de Polícia. Articulista nas áreas jurídica e de segurança pública. Graduado em "Criminal Intelligence" pelo corpo de instrução do Miami Dade Police Department, em "High Risk Police Patrol", pela Tactical Explosive Entry School, em "Controle e Resolução de Conflitos e Situações de Crise com Reféns" pelo Ministério da Justiça, em "Gerenciamento de Crises e Negociação de Reféns" pelo grupo de respostas a incidentes críticos do FBI - Federal Bureau of Investigation e em "Gerenciamento de Crises", "Uso Diferenciado da Força", "Técnicas e Tecnologias Não Letais de Atuação Policial" e "Aspectos Jurídicos da Abordagem Policial", pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. Atuou no Grupo de Operações Especiais - GOE, no Grupo Especial de Resgate - GER e no Grupo Armado de Repressão a Roubos - GARRA, todos da Polícia Civil do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LESSA, Marcelo Lima. Quando morre um policial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6067, 10 fev. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73740. Acesso em: 7 nov. 2024.

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