RESULTADOS E DISCUSSÃO
A presente pesquisa foi desenvolvida a partir da hipótese de não efetividade total da aplicação dos princípios de defesa do consumidor, de acordo com o que estabelecem a Constituição Federal e as normas infraconstitucionais; buscando, dentro desses parâmetros, aferir o grau de comprometimento dos juízes alagoanos no exercício deste múnus público.
Isto porque análises prévias de jurisprudências nacionais denunciavam a falta de traquejo dos julgadores com a novel legislação protetiva, de modo que muitos dos magistrados ainda não conseguiam identificar as relações de consumo, bem como se distanciar dos princípios tradicionais dos contratos em geral.
1. A necessidade de proteção ao consumidor – considerações gerais.
Todo direito do consumidor parte, necessariamente, de uma relação de consumo, cuja essência é de uma relação contratual específica, que envolve as necessidades do ser humano. O consumo é parte indissociável do cotidiano do homem, que carece de bens e serviços imprescindíveis à sua sobrevivência, razão pela qual os fundamentos da proteção ao consumidor estão completamente apartados da idéia de que se protege o consumismo, o consumo pelo consumo, o simples desejo, aproximando-se – eis aqui seu principal esteio – da defesa da própria dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito:
É à luz do princípio da dignidade humana que os juristas vêm desenvolvendo, no País e no exterior, uma novel linha do pensamento científico, reputando-o a base mesma do ordenamento positivo e efetuando, a partir dele, a releitura de todos os institutos jurídicos (BITTAR, 2003:07).
As relações de consumo evoluíram, das operações de simples trocas de mercadorias chegou-se às sofisticadas operações de compra e venda, arrendamento mercantil, leasing, dentre outras. Tais relações deixaram de ser pessoais e diretas, dando-se cada vez menor importância ao fato de se ver ou não com que se está contratando.
O crescimento populacional e a urbanização conduzem essas relações a uma textura cada vez mais massificada, que o sistema contratual tradicional não consegue mais dar resposta. Os bens de consumo passaram a ser produzidos em série, os serviços se ampliaram, "o comércio experimentou extraordinário desenvolvimento, aumentando a utilização da publicidade como meio de divulgação dos produtos e atração de novos consumidores e usuários" (ALMEIDA, 1993:02).
Nessa relação massificada, a conseqüência inevitável é que o contratante consumidor seja a parte mais fraca, submetendo-se ao poder contratual dominante, do qual o Direito nunca se preocupou, pois partia do pressuposto de que as pessoas eram livres para manifestarem suas vontades e, conseqüentemente, definirem se aceitavam ou não uma relação contratual.
Hoje, esse domínio transparece pela predisposição de verdadeiras regras, postas no mercado de consumo por quem detém o poder de fornecer os produtos e serviços de que as pessoas necessitam. Essas necessidades, além de envolver aquelas vitais, como alimentação, vestuário, medicamentos, serviços médicos etc, abarca outras, as denominadas necessidades induzidas, ou seja, aquelas lançadas na mente das pessoas através de todo o aparato publicitário, transformando em inevitável aquilo que não seria nem real nem vital.
Assim, inseridos que estamos em uma sociedade de consumo, constituída por um sistema de produção e circulação de produtos e serviços em grandes quantidades, marcada por uma textura massificadada vida econômica, e de relações juridicamente desiguais, vez que em um pólo encontra-se aquele que exerce atividade profissional organizada (fornecedor) e, no outro, o eventual adquirente ou utente (consumidor), cumpre ao Estado, garantidor dos direitos individuais e dos direitos sociais e econômicos, proteger a parte mais vulnerável na relação de consumo, atribuindo-lhe uma superioridade jurídica, em obediência aos mandamentos constitucionais.
Tal dever estatal traduz-se na ostensiva e indispensável tutela jurídica desta parte mais débil, tornando-se indissociável do seu cumprimento o papel do Judiciário e dos órgãos administrativos de defesa do consumidor.
De um modo geral, os magistrados alagoanos concordam com a necessidade de proteção ao consumidor, sendo esta um meio de compatibilizar e harmonizar os interesses envolvidos na relação de consumo, o que se verificou nas respostas de 100% dos entrevistados. Quando questionados acerca da existência de um excesso de proteção ao consumidor, igualmente 100% dos entrevistados responderam que a proteção não é excessiva.
Contudo, não foi unânime a concordância dos magistrados com a elevação da proteção ao consumidor à categoria de direito fundamental, conforme se depreende do gráfico abaixo:
Nesse ponto, cumpre observar que alguns dos magistrados ainda não se aperceberam da essencialidade da proteção ao consumidor, e ainda conservam a idéia (ou tentam desatrelar-se dela) de que o que se protege é o consumismo, quando, na verdade, o legislador constituinte percebeu que a mera igualdade formal dos indivíduos não lhes asseguraria um equilíbrio nas relações de consumo, pois se tornara patente o desequilíbrio nos contratos celebrados entre consumidores e fornecedores, sendo imprescindível a elevação da proteção ao consumidor à categoria de direito fundamental, uma vez que desta forma se estaria assegurando a efetiva proteção a situações jurídicas fundamentais do homem, "sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive" (SILVA, 2002:178).
Ainda sob o aspecto da necessidade e bases da proteção ao consumidor, buscou-se aferir a ótica dos magistrados acerca da essencialidade da edição de legislação específica protetiva, pautada nas peculiaridades inerentes à relação de consumo. Para tanto, questionou-se se, para os julgadores, o Código Civil seria suficiente à efetiva proteção ao consumidor:
Não obstante a maioria dos entrevistados entenda que o Código Civil não seria bastante para a proteção ao consumidor, é importante frisar que 43% dos julgadores entenderam que o mencionado diploma legal satisfaria parcialmente tal mister, denotando, portanto, que alguns magistrados ainda estão atrelados às bases e princípios tradicionais norteadores das relações contratuais, conforme se depreende da decisão abaixo transcrita:
Processo n.º 10.255-1/02 [15]
Data da Decisão: 06.08.2003
Ação de Busca e Apreensão. Firmado "Contrato de Crédito Direto ao Consumidor" com garantia fiduciária. O consumidor alegou que o contrato possuía cláusulas abusivas, com juros acima de 12% ao ano, razão pela qual não conseguiu adimplir com as suas obrigações.
Decisão: in verbis: "[...] as disposições contidas no Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, não socorrem as infundadas razões trazidas pelo devedor inadimplente, confesso por sinal, já que os encargos cobrados pelo credor foram previamente pactuados no contrato de financiamento, e no caso sub judice (sic), há de se aplicar a máxima "pacta sunt servanda" [...]. (grifamos)
Ora, é necessário que se fixe, definitivamente, a noção de que a relação de consumo é completamente distinta da relação contratual tradicionalmente regulada pela legislação civil. Enquanto o Código Civil parte da concepção de que as partes contratuais relacionam-se em pé de igualdade, regidas pelos princípios da autonomia da vontade (liberdade contratual) e do pacta sunt servanda (obrigatoriedade – centrado na idéia de que o contrato faz lei entre as partes), o Código de Defesa do Consumidor tem como pressuposto basilar o de que as relações de consumo perfazem-se de forma desigual, não paritária, onde há expressa manifestação de uma parte contratual dominante, o fornecedor.
Não é outro o magistério de Cláudio Petrine Belmonte (2002:142), ao lecionar que os princípios regentes das relações de consumo, além de caracterizarem uma época, são testemunhas da modificada (ou modificável) concepção do contrato, que tem passado da noção de negócio estritamente particular à de regulamento submetido efetivamente a controle, integrações e modificações em prol do próprio interesse público.
Ao nivelar formalmente as partes contratantes, ainda que consistam em sujeitos em situação de profunda e efetiva desigualdade material, o mecanismo contratual permitiu que relações de poder e de supremacia se manifestassem juridicamente como relações paritárias, com legitimidade, por isso mesmo, para a sua autonormação. E assim, por efeito desse somatório de uma revolução técnica com um direito liberal, a parte mais forte ficou em condições de "legislar por contrato", de uma maneira substancialmente autoritária, sem usar, na aparência, de formas autoritárias. A liberdade contratual não perdeu aqui somente seu poder de regulamentação, mas também sua posição dominante como princípio aprioristicamente sobreposto a todos os demais, que os remetia a uma função subalterna de limitadas intervenções pontuais (BELMONTE, 2002:143).
Sob a perspectiva dos demais profissionais do direito, a visão dos magistrados acerca da proteção ao consumidor foi definida da seguinte forma:
Sendo a legislação protetiva do consumidor relativamente recente, visto que o Código de Defesa do Consumidor data de 11.09.1990, questionou-se acerca da relevância da atualização, por parte dos membros do Judiciário, acerca desse instituto normativo. Foi unânime a opinião dos magistrados, reconhecendo a importância e necessidade de maiores estudos em torno dessa temática.
Finalmente, ainda com vistas a aferir a atuação do Judiciário no âmbito de proteção ao consumidor, questionou-se se os consumidores que já tiveram suas demandas julgadas consideraram-se efetivamente protegidos, sendo uníssono o resultado em sentido afirmativo.
2. O papel dos princípios jurídicos. Princípios jurídicos aplicáveis às relações de consumo.
Partindo-se da concepção empregada na linguagem da geometria, a conceituação de princípios designa verdades primeiras, premissas de todo um sistema.
De fato, os princípios jurídicos são as normas elementares, os pressupostos de todo o ordenamento jurídico, as linhas mestras; no dizer de Celso Antônio Bandeira de Mello:
[...] mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhe o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência, precisamente porque define a lógica e a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhe a tônica que lhe dá sentido harmônico (MELLO, 1999:54).
Característica primordial dos princípios jurídicos é o caráter de fundamentalidade que possuem essas normas. "Os princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido [...] à sua importância estrutural dentro do sistema jurídico [...]" (CANOTILHO, 1995:166).
Os princípios são mandados de otimização, que ordenam que algo seja feito na maior medida possível. A importância que os princípios assumem para os ordenamentos jurídicos se torna cada vez mais evidente, pois aparecem como os pontos axiológicos de mais alto destaque e prestígio.
O manifesto desequilíbrio encontrado nas relações de consumo transformou a proteção do consumidor numa realidade mundial, na qual destacam-se como princípios basilares os da função social dos contratos, o da boa-fé, o da transparência, o do equilíbrio nas relações e, sobretudo, o princípio da vulnerabilidade, que "é a espinha dorsal da proteção do consumidor, sobre que se assenta toda a linha filosófica do movimento" (ALMEIDA, 1993:11).
Conforme leciona Thierry Bourgoignie (2002:30), a expansão mundial de iniciativas no sentido de promover os interesses dos consumidores no cenário econômico e no mercado, gerou grandes avanços, que podem ser tidos como pilares da política de proteção do consumidor, devendo, por conseguinte, ser observados e aplicados pelo julgador ao caso concreto. Dentre tais bases destacam-se a adoção de uma estrutura legislativa adequada e o estabelecimento de instituições estatais responsáveis por assuntos relacionados ao consumidor.
Demais disso, não se pode olvidar que atualmente o consumidor possui um papel atuante e essencial na atividade econômica, devendo ser-lhe dispensada uma atenção equivalente a que é proporcionada aos fornecedores, a fim de que as relações de consumo perfaçam-se de modo equânime, observada, sempre, a vulnerabilidade do consumidor e os demais princípios de proteção que alicerçam o direito consumerista.
Nesse diapasão, tem-se como premissa os ensinamentos do constitucionalista J. J. Gomes Canotilho, ao enunciar a necessidade de introdução dos princípios na metódica jurídica, para estes não se transformarem em postulados de um discurso quase exclusivamente moral, impossibilitando a aplicação rigorosa e eficaz das normas constitucionais, vale dizer, urge efetivar a aplicação dos princípios de proteção do consumidor, para que estes não se tornem apenas tinta no papel, adornos do texto constitucional.
3. Princípio da vulnerabilidade do consumidor.
O reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, além de estar expressamente previsto na legislação infraconstitucional, possui sede na própria Constituição, ao enunciar que o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor (art. 5º, XXXII). Note-se que somente carece de amparo, de proteção, aquele que é mais fraco, daí porque é imperioso concluir que o princípio da vulnerabilidade, antes de ser um princípio legal, é, de fato, um princípio constitucional.
Inúmeras são as causas que levaram o legislador a esse reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor frente ao fornecedor, tais como a grande disparidade entre propaganda e condições reais de produtos e serviços; a padronização das transações de consumo, tornando praticamente improvável a possibilidade de negociação por parte do consumidor; o uso de políticas de mercado desleais e métodos de venda desonestos; a circulação no mercado de produtos e serviços perigosos e com defeitos.
Esse princípio justifica-se, sobretudo, pela evidente inferioridade negocial do consumidor nos contratos firmados com fornecedores de produtos ou serviços, "decorrência de uma sociedade de consumo contemporânea que, por sua vez, respalda as contratações em massa, o uso de contratos standardizados, o surgimento de inovadoras técnicas de marketing e os métodos agressivos de venda" (BELMONTE, 2002:147).
Todos esses elementos ensejam uma profunda desigualdade material entre consumidores e fornecedores, razão pela qual a lei presume juridicamente vulnerável o consumidor. Essa presunção é absoluta! Todos os consumidores encontram-se em condição de debilidade perante o fornecedor, pouco importando, para a caracterização da vulnerabilidade, a situação econômica, a classe social, o grau de instrução do consumidor, ou mesmo se este adquiriu o produto ou serviço para o exercício de sua atividade profissional. A presunção legal não pode ser afastada pela apreciação do caso concreto, vale dizer, não pode o julgador aferir, a cada demanda que lhe chega a julgamento, se o consumidor, naquele caso, é ou não a parte mais vulnerável:
que pode estar presente na celebração do contrato ou na eventual mudança do equilíbrio em virtude de circunstâncias supervenientes que levem a onerosidade excessiva para uma das partes (LÔBO, 2002). [16] (sem grifos no original)O aspecto objetivo considera o real desequilíbrio de direitos e deveres contratuais
Da análise do material colhido para pesquisa foi possível observar que em grande parcela dos julgados a vulnerabilidade do consumidor foi aferida subjetivamente, verificando o magistrado, em cada caso concreto, se o consumidor era ou não a parte mais vulnerável. Tal constatação ganha evidência no exame da decisão cujos trechos abaixo se transcreve:
Processo n.º 2344/03 [17]
Data da decisão: 19.12.2003
Alegou o consumidor, em suma, que é cantor, e que firmou contrato de locação de aparelhos de som e iluminação para a realização de um de seus shows. Segundo relatou, ocorreram inúmeras falhas no serviço contratado, pois os aparelhos fornecidos não correspondiam aqueles que foram locados, ademais, apresentaram defeitos.
Os pedidos do demandante foram julgados improcedentes, sob o fundamento de que, in verbis, "o contrato em discussão não envolve nenhum leigo, mas sim um cantor, que, como tal, presume-se dispor de conhecimentos técnicos suficientes para avaliar o ambiente de realização do show, bem como o nível dos equipamentos locados. [...] Diante disso, não se pode imputar ao demandado a responsabilidade pela informação adequada, clara e precisa acerca da capacidade de som para aquele espaço físico, já que o demandante, por trabalhar no ramo, dispõe de conhecimentos suficientes para tanto".
Das decisões em que houve aplicação – expressa ou implícita – do princípio da vulnerabilidade do consumidor, constatou-se que na grande maioria a debilidade do consumidor foi avaliada caso a caso pelo magistrado:
A conclusão a que se chegou é claramente ratificada pelo resultado dos questionários aplicados aos magistrados, nos quais buscou-se inferir se, para o julgador, um profissional liberal é tão vulnerável quanto um trabalhador braçal, numa relação de consumo:
Verificou-se, ainda, que em inúmeros julgados o princípio da vulnerabilidade não foi aplicado, quando deveria sê-lo:
Conforme se depreende da análise do gráfico, a maior quantidade de decisões em que o princípio da vulnerabilidade deixou de ser aplicado foi nas Varas Cíveis. Nesse aspecto, impende observar que esse resultado ocorre principalmente porque os julgadores não identificam corretamente a existência de relação de consumo, tratando-as como relações contratuais comuns entre particulares, regidas pelo Código Civil. Nessas decisões, deixa-se de aplicar o Código de Defesa do Consumidor, e, conseqüentemente, todo o cabedal de instrumentos e princípios protetivos da parte mais vulnerável na relação contratual.
Nesse sentido, verificou-se, ainda, que os juízes das Varas Cíveis somente aplicavam o Código de Defesa do Consumidor quando o demandante fazia uma referência expressa a esse diploma legal na fundamentação de seus pleitos, quando, na verdade, diante de uma relação de consumo, deve o magistrado aplicar automaticamente o CDC, conforme dispõe o seu art. 1º: o presente Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48, de suas Disposições Transitórias. (grifamos)
O art. 1º do CDC estabelece que as normas de proteção e defesa do consumidor são de ordem pública e interesse social [...]. Assim, como ensina José Geraldo Brito Filomeno, as normas de ordem pública são inderrogáveis por vontade das partes, ou seja, não se pode dispor do direito posto em questão. Também sobre o assunto, cabe lembrar o ensinamento de Nelson Nery Junior, que afirma que qualquer conflito resultante de temas como este, cujas normas são de ordem pública, deve ser, obrigatoriamente, examinado ex officio pelo julgador, não havendo, dessa forma, necessidade de sua provocação por nenhuma parte interessada, uma vez que o princípio do dispositivo não tem incidência em questões dessa natureza (DORNELES, 2004:67). (grifamos)
Outra questão relevante envolvendo o princípio da vulnerabilidade, e que também foi observada nas decisões analisadas, é a que se refere ao aspecto tão-somente econômico dado pelos julgadores a esse princípio, que, no entanto, possui três enfoques: vulnerabilidade técnica/informação, pois o consumidor não possui conhecimentos sobre produtos e serviços, a ponto de verificar a pertinência das informações repassadas pelo fornecedor (e, na maioria das vezes, este não informa, de modo algum, o consumidor); vulnerabilidade jurídica, uma vez que o consumidor não possui conhecimentos sobre os contornos jurídicos do negócio, de modo que possa dialogar, igualitariamente, com o fornecedor acerca das condições gerais propostas; vulnerabilidade econômica, pois, normalmente, o consumidor não possui as mesmas condições sociais e econômicas da outra parte que figura no negócio.
Do material coletado, verificou-se que, no 1º Juizado Especial Cível e Criminal das Relações de Consumo, 01 decisão referiu-se à vulnerabilidade somente sob a sua face econômica; já no 2º Juizado, em 29 decisões houve menção à vulnerabilidade como o reconhecimento da parte economicamente mais fraca. No Tribunal de Justiça e na Turma Recursal não foi encontrado nenhum julgado que fizesse referência a tais aspectos. Importante destacar que quanto às Varas Cíveis somente foram detectadas 02 decisões nas quais houve menção ao princípio ora examinado, referindo-se a este tão-só sob o seu enfoque econômico.
Por todo o exposto, é de se concluir que há um desvirtuamento conceitual no que pertine ao princípio da vulnerabilidade do consumidor, que vem sendo relegada à mera debilidade econômica, aferível no caso concreto, por se entender tratar-se de presunção legal relativa, passível de verificação subjetiva por parte do magistrado, em flagrante discordância, portanto, com o que prescreve o art. 4, I, do CDC, e apartando-se, ainda, do preceito constitucional inserto no art. 5º, XXXII.
Tal questão ganha relevo em face de ser este reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor a própria viga mestra do Direito Consumerista, a própria base de proteção ao consumidor, e o alicerce dos demais princípios, que são por ele iluminados. Todo o Código de Defesa do Consumidor é um reflexo da vulnerabilidade.
4. Princípio do Equilíbrio – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo.
Do estudo cuidadoso acerca dos preceitos constitucionais direcionados à proteção ao consumidor infere-se que a Constituição Federal não visa apenas beneficiar um dos pólos da relação consumerista, mas equilibrá-los, harmonizar os interesses envolvidos nessas relações.
Essa conclusão manifesta-se, principalmente, quando da análise do art. 170, V, da Constituição, segundo o qual a proteção ao consumidor é um dos princípios nos quais deve se pautar a ordem econômica.
Veja-se, portanto, que o texto constitucional visa compatibilizar o desenvolvimento econômico e tecnológico com a proteção ao consumidor.
Nessa perspectiva, certo é que o consumidor é a parte mais vulnerável nas relações de consumo, no entanto, esse reconhecimento não pode sobrepujar o progresso tecnológico e econômico, daí porque quando se fala em relação de consumo, não se deve apartar da idéia de equilíbrio. Por tais razões, a proteção ao consumidor não quer significar o prejuízo do fornecedor, mas a harmonia dos interesses de um e de outro.
É com vistas à harmonização dos interesses envolvidos na relação consumerista que o Código de Defesa do Consumidor estatui normas que proíbem a utilização de cláusulas abusivas, que asseguram vantagens unilaterais ou exageradas para o fornecedor, ou que sejam incompatíveis com a boa-fé e a equidade.
O princípio da equivalência material busca realizar e preservar o equilíbrio real de direitos e deveres no contrato, antes, durante e após a sua execução, para harmonização dos interesses. Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as mudanças de circunstâncias pudessem ser previsíveis. O que interessa não é mais a exigência cega do cumprimento do contrato, da forma como foi assinado ou celebrado, mas se sua execução não acarreta vantagem excessiva para uma das partes e desvantagem excessiva para outra, aferível objetivamente, segundo as regras da experiência ordinária. O princípio clássico do pacta sunt servanda passou a ser entendido no sentido de que o contrato obriga as partes contratantes nos limites do equilíbrio dos direitos e deveres entre elas (LÔBO, 2002). [18]
Do material analisado, colheu-se o acórdão seguinte que observa detidamente os ditames do princípio do equilíbrio:
Ementa: [19]
AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO. ARRENDAMENTO MERCANTIL. LEASING. REVISÃO DO CONTRATO. ATUALIZAÇÃO PELA VARIAÇÃO DO DÓLAR. RISCO. BOA-FÉ OBJETIVA. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.
[...] A cláusula que prevê o reajuste das prestações do contrato de arrendamento mercantil pactuadas com base na variação cambial pode ser juridicamente revista, diante de fatos supervenientes que conduzam a excessiva onerosidade para o consumidor, a fim de restabelecer o indispensável equilíbrio contratual. Recurso conhecido. Preliminar rejeitada. Improvimento. Decisão unânime. [...] É consagrada pela doutrina e pela jurisprudência a superação do princípio da obrigatoriedade irrestrita dos contratos que terminou por eleger prevalecente o pacto sunt servanda como máxima dominante do Estado Liberal. Hodiernamente, no chamado Estado Social, não somente a atividade política, mas também, de igual modo, a econômica, merecem a atenção e a regulamentação estatal. Em decorrência, portanto, do próprio sistema jurídico imperante, especialmente no que diz respeito ao direito do consumidor, a autonomia da vontade é relativa, de tal modo que reste resguardado o equilíbrio contratual, inadmitindo-se vantagens excessivas para o predisponente e onerosidade excessiva para o consumidor. (grifamos)
Também decorre do princípio do equilíbrio a interpretação contratual de forma mais favorável ao consumidor. Nesse ponto, urge advertir que, ao contrário dos contratos regidos pela legislação civil, onde a interpretação mais favorável deve ocorrer somente quando se trata de contratos de adesão, nos quais há interpretação mais benéfica ao aderente, nos contratos de consumo, interpreta-se, sempre, de modo mais favorável ao consumidor. É o que prevê o art. 47, do CDC: as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.
Inobstante se tenha observado que em grande parcela das decisões analisadas o princípio do equilíbrio foi devidamente aplicado, constatou-se que, ainda sob a influência dos preceitos contidos na legislação civil, muitos julgados somente interpretavam as disposições contratuais de forma mais favorável ao consumidor quando se estava diante de um contrato de adesão, o que não se coaduna com o mandamento insculpido no art. 47, do CDC. A decisão abaixo reflete esse posicionamento:
Processo: Apelação Cível 01/00 [20]
Data da Decisão: 09.06.2000
Ementa:
PLANO DE SAÚDE QUE SE NEGA A PAGAR IMPLANTAÇÃO DE APARELHO EM SEGURADO. CDC.
Verificando se tratar de contrato de adesão deve-se interpretar as cláusulas de maneira mais favorável ao consumidor, ex vi do que preceitua o art. 47, do CDC [...] considerando-se como de adesão, as interpretações de tais contratos devem ser orientadas em favor do aderente, fazendo com que o princípio do pacta sunt servanda não se sobreponha nem prevaleça na relação contratual.
Verificadas as decisões em que o princípio foi expressa ou implicitamente aplicado, bem como aquelas em que deveria ter sido aplicado e não o foi, ou a aplicação se deu de forma incorreta, chegou-se ao resultado demonstrado no gráfico:
O gráfico demonstra que ainda é pouco aplicado o princípio do equilíbrio contratual, sobretudo nas Varas Cíveis, onde somente serviu de base para 08 das decisões analisadas. Mesmo nos julgados em que se referiam à interpretação mais favorável ao consumidor somente nos casos de contrato de adesão, entendeu-se que o mencionado princípio foi aplicado implicitamente, razão pela qual o gráfico não apresenta nenhuma decisão classificada como tendo aplicado incorretamente o princípio.
5. Princípio da Informação – Dever de informar/transparência.
É direito básico do consumidor, conforme prescreve o art. 6º, III, do CDC, "a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços". Tamanha é a importância deste DEVER DO FORNECEDOR, que o CDC erige o direito à informação à categoria de princípio do Direito Consumerista (art. 4º IV), sendo o fornecedor obrigado a informar bem ao público sobre TODAS as características de produtos e serviços, para que o consumidor possa contratar serviços ou adquirir produtos, sabendo exatamente o que poderá esperar deles, e mais, para que tenha liberdade de escolha e igualdade de contratação, informando-se previamente das condições contratuais, para não ser surpreendido posteriormente com cláusulas potestativas ou abusivas.
[...] Transparência é clareza, é informação sobre os temas relevantes da futura relação contratual. Eis porque institui o CDC um novo e amplo dever para o fornecedor, o dever de informar o consumidor não só sobre as características do produto ou serviço, como também sobre o conteúdo do contrato. Pretendeu, assim, o legislador evitar qualquer tipo de lesão ao consumidor, pois sem ter conhecimento do conteúdo do contrato, das obrigações que estará assumindo, poderia vincular-se a obrigações que não pode suportar ou que simplesmente não deseja. Assim também adquirindo um produto sem ter informações claras e precisas sobre suas qualidades e características pode adquirir um produto que não é adequado ao que pretende ou que não possui as qualidades que o fornecedor afirma ter [...] (MARQUES, 2004:595).
É o direito à informação, no dizer do Professor Paulo Luiz Netto Lôbo, "um dos pilares do direito do consumidor" (2001:59) [21], e deve obedecer aos requisitos de adequação, suficiência e veracidade, é dizer, a informação deve ser clara, completa, sem omissões, obscuridades ou lacunas, correspondendo às reais características dos produtos ou serviços, além de dados corretos acerca da composição, conteúdo, preço, prazos, garantias e riscos.
Para garantir o direito fundamental do consumidor à informação foi introduzido o art. 46, do CDC, pelo qual os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo. E mais, a informação obriga, ainda que não esteja explicitada, pouco importando que essa omissão seja intencional ou involuntária. "As regras técnicas aplicáveis à segurança de determinado produto, por exemplo, integram a informação como nelas estivessem" (LÔBO, 2001:70).
Entretanto, em algumas das decisões analisadas, o julgador não aferiu corretamente o preenchimento dos requisitos do dever de informar por parte do fornecedor, deixando prevalecer a disposição contratual, por presumir que o consumidor a conhecia plenamente, ferindo, portanto, o princípio da informação. É o que ocorre no julgado abaixo:
Processo: 1922/01 [22]
Data da Decisão: 04.11.2003
Resumo dos fatos: Promoção da Editora Globo, pela qual quem assinasse a revista "Época" receberia um aparelho celular BCP gratuitamente ao término dos pagamentos das parcelas referentes à assinatura da revista. Contudo, ao adimplir a sua obrigação a demandante, dirigiu-se à BCP e foi informada de que teria que firmar um novo contrato, agora com a BCP, no qual ficaria obrigada a pagar uma quantia de R$ 45,00 mensais durante 12 meses, utilizando-se ou não dos serviços daquela empresa de telecomunicações.
Alegou a Editora Globo que cumpriu com a sua obrigação, qual seja, a de fornecer as revistas e encaminhar um vale para a retirada do aparelho.
A BCP alegou que com o pagamento da anuidade da revista, a autora receberia um aparelho celular habilitado com linha da BCP no sistema pós-pago; no plano de tarifa 100 minutos, com taxa inclusa de 12 meses de permanência na rede, sendo que tudo se encontrava no regulamento da promoção e no anúncio colocado na revista época, e ainda estava disponível na internet, cujo item 3 informava que o pagamento mensal seria de R$ 45,00, não podendo a autora alegar desconhecimento do teor da promoção, uma vez que foi amplamente divulgada.
Decisão: Foram julgados improcedentes os pedidos da autora, entendendo o magistrado que, por estarem expressas as condições da promoção no regulamento assinado pela demandante, ela as conhecia, in verbis: "se a demandante assinou a revista é porque estava aceitando o regulamento de tal promoção, não podendo agora alegar desconhecimento do mesmo". (sem grifos no original)
A decisão julgou improcedentes os pedidos da autora/demandante com o único fundamento de que as condições da promoção encontravam-se dispostas no regulamento, e, tendo ela assinado, as conhecia. Não se verificou se esse regulamento era cognoscível à consumidora, se a informação ali contida era adequada, clara, suficiente e veraz. Nesse ponto, é importante destacar que geralmente (na quase totalidade) as campanhas publicitárias divulgadas pelos fornecedores, principalmente quando se trata de promoções, não demonstram para o consumidor os seus reais aspectos, limitando-se a divulgar apenas as vantagens, disponibilizando nas estrelinhas, ou naquelas letras minúsculas, quase invisíveis, o seu real teor. Enfim, a decisão em exame não reflete a aplicação do princípio da transparência, pois nem ao menos questiona se era possível a consumidora saber claramente o que estava escrito no regulamento, ou se esta foi apenas iludida pela propaganda.
O gráfico seguinte demonstra como foi avaliada a aplicação do princípio da informação/transparência no material analisado:
6. Princípio da Qualidade e Segurança de Produtos e Serviços.
Ao definir os princípios regentes da Política Nacional das Relações de Consumo, o art. 4º, V, do Código de Defesa do Consumidor elenca o controle da qualidade e segurança de produtos e serviços como um desses princípios.
A necessidade desse controle importa na proteção à própria saúde dos consumidores; os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não deverão acarretar riscos à saúde ou segurança, excetuando-se somente os riscos considerados normais e previsíveis, decorrentes da própria fruição e natureza do produto ou serviço, devendo o fornecedor, em qualquer hipótese, informar necessária e adequadamente os consumidores a esse respeito (art. 8º, CDC). Bem assim deve ocorrer com aqueles potencialmente nocivos ou perigosos, devendo a informação ser adequada e ostensiva.
Ainda com vistas à consecução desse princípio, o CDC determina que a responsabilidade do fornecedor em caso de dano causado ao consumidor (art. 12 – responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço) e de vício no produto ou serviço (art. 18 – responsabilidade pelo vício do produto ou do serviço, que os tornem inadequados ou impróprios ao consumo a que se destinam ou lhe diminuam o valor) é objetiva, independentemente da existência de culpa.
A pesquisa empírica constatou que esse foi o princípio mais aplicado – expressa ou implicitamente – nas decisões analisadas, uma vez que a maioria das demandas envolvia deficiência na qualidade e segurança dos produtos e dos serviços prestados, principalmente quanto aos serviços de fornecimento de energia elétrica, telefonia, seguros, serviços médico-hospitalares, planos de saúde e cartões de crédito.
Apenas nas Varas Cíveis é que o princípio da qualidade e segurança de produtos e serviços deixou de ser aplicado em muitas decisões, já que, conforme já alinhado, não havia uma identificação da relação de consumo, e, por conseguinte, não eram seguidos os preceitos do Código de Defesa do Consumidor, conforme denota o gráfico abaixo:
A ineficiência do serviço prestado foi devidamente observada pelo julgador no caso exposto abaixo, onde foi corretamente aplicado o princípio da qualidade e segurança de produtos e serviços:
Processo: 1392/03 [23]
Ano da decisão: 2003
Resumo dos fatos: Trata-se de Ação de Indenização por danos materiais em que a demandante alega que foi cobrada indevidamente pela Empresa demandada, vez que o valor indicado em fatura de energia elétrica não correspondia ao que efetivamente foi consumido pela demandante, o que restou demonstrado posteriormente, visto que comprovada a medição errônea do contador de energia.
Decisão: Foi julgado procedente o pedido da autora, declarando-se a inexistência do débito em face da ineficiência do serviço prestado, vez que se constitui em obrigação implícita do fornecedor a adoção de medidas pertinentes de inspeção para constatar a devida utilização e prestação de seus serviços.
7. Princípio da Confiança.
Corolário dos princípios da informação e da qualidade e segurança de produtos e serviços, o princípio da confiança não possui previsão expressa no Código de Defesa do Consumidor, é construção doutrinária e jurisprudencial que deve ser seguida pelo julgador.
Tem fundamento na confiança que o consumidor deposita na informação prestada pelo fornecedor e na qualidade e segurança do produto ou serviço a ele ofertado. Percebeu-se que a publicidade, a oferta, o contrato firmado, criam no consumidor expectativas de poder alcançar estes efeitos contratuais prometidos, razão pela qual o CDC oferece meios para a proteção da confiança que o consumidor depositou no vínculo contratual, mais precisamente na prestação contratual, vale dizer, na sua adequação ao fim que dela se esperava (MARQUES, 2004:979):
É o princípio da confiança, instituído pelo CDC, para garantir ao consumidor a adequação do produto e do serviço, para evitar riscos e prejuízos oriundos dos produtos e serviços, para assegurar o ressarcimento do consumidor, em caso de insolvência, de abuso, desvio da pessoa jurídica-fornecedora, para regular também alguns aspectos da inexecução contratual do próprio consumidor (MARQUES, 2004:981-982).
A decisão abaixo demonstra claramente a aplicação implícita do princípio da confiança, em demanda na qual o consumidor, confiando na propaganda divulgada pela fornecedora do serviço de plano de saúde, firmou contrato com esta e posteriormente deparou-se com o descumprimento dos benefícios que lhe foram ofertados:
Processo: 2086/01 [24]
Ano da Decisão: 2002
Resumo dos fatos: O demandante/consumidor firmou contrato de prestação de serviços médicos, hospitalares e odontológicos junto à demandada. Como o consumidor possuía contrato com outra empresa de plano de saúde, o fornecedor/demandado propôs a assinatura de novo contrato, dito mais vantajoso e mais barato que o anterior, sendo-lhe asseguradas, inclusive, todas as garantias cobertas pelo seu plano de saúde precedente, e sem taxa de adesão para os dependentes. Entretanto, foi cobrada taxa de adesão das duas dependentes que o consumidor inscreveu. Além do que, depois que o contrato foi firmado, foi estabelecida uma carência para a utilização dos serviços. Em sua defesa, alegou a demandada que quando assinou o contrato, o demandante tinha conhecimento dos valores do plano e das taxas de adesão: "o demandante é pessoa esclarecida, e autorizou o débito, como pode agora dizer que não sabia ser aquele valor?"
Decisão: foram julgados procedentes os pedidos do demandante/consumidor, sob o fundamento de que este foi induzido em erro, através de propaganda enganosa, conforme se verificava no panfleto utilizado para divulgar o serviço, no qual se apregoava a isenção de carência e de taxas para os que aderissem ao plano, como foi o caso do demandante.
A seguir, gráfico demonstrativo da aplicação do princípio da confiança:
8. Princípio da Boa-fé Objetiva.
O Código de Defesa do Consumidor, em especial, contempla o princípio da boa-fé objetiva como linha teleológica de interpretação, em seu artigo 4°, III, e como cláusula geral, em seu artigo 51, IV, positivando em todo o seu corpo de normas a existência de uma série de deveres anexos às relações contratuais: o dever de informação, que não se esgota apenas na fase pré-contratual, atingindo inclusive o momento de execução do contrato; o dever de cooperação, consubstanciado no agir com lealdade; e o dever de cuidado, que visa preservar os contratantes dos riscos à sua integridade pessoal ou patrimonial.
A doutrina voltada ao estudo do Direito do Consumidor reconhece, portanto, o princípio da boa-fé objetiva como standard, parâmetro objetivo a ser seguido pelas partes contratantes, "que não está a depender da má-fé subjetiva do fornecedor A ou B, mas de um patamar geral de atuação, do homem médio, do bom pai de família que agiria de maneira normal e razoável naquela situação analisada" (MARQUES, 2004:181).
Partindo-se dessa concepção hodierna do princípio da boa-fé objetiva, destacam-se suas várias funções durante a formação e a execução das obrigações: 1) como fonte de novos deveres especiais de conduta durante o vínculo contratual, os chamados deveres anexos; 2) como causa limitadora do exercício dos direitos subjetivos; e 3) na concreção e interpretação dos contratos.
Segundo Cláudio Petrine Belmonte (2002:142), nesse contexto, perde coloração o princípio da liberdade contratual (autonomia da vontade) e, ganha, o princípio da boa-fé objetiva, o que não quer significar, no entanto, que o contrato tenha morrido, apenas constata-se uma evolução e adequação desse instituto jurídico aos novos tempos.
Destarte, vemos a boa-fé objetiva como um limite do conteúdo contratual, tratando-se de um parâmetro judicial para dar validade às respectivas disposições [...]. Impõe-se aos contratantes que assumam uma postura de colaboração ativa, no intuito de satisfação das expectativas da outra parte, proporcionando, para tanto, que esta conheça profundamente a real situação que constitui objeto das negociações.
Ainda devemos ressaltar uma outra exigência decorrente da boa-fé objetiva, e que pode ser enquadrada no seu braço obrigacional de lealdade, qual seja, proteger a confiança gerada numa parte contratante em face de atitudes tomadas pela outra (BELMONTE, 2002:146).
Felizmente, a postura unânime dos doutrinadores pátrios a respeito da imposição do princípio da boa-fé objetiva nas relações entre fornecedores e consumidores ressoa, ressalvadas algumas exceções, na crescente utilização da cláusula geral de boa-fé pela jurisprudência brasileira, a julgar pela análise dos casos em que os magistrados aplicaram corretamente o referido princípio, com ênfase aos seus deveres anexos, de modo que "o princípio da boa-fé objetiva foi refuncionalizado no direito do consumidor, otimizando-se sua dimensão de cláusula geral, de modo a servir de parâmetro de validade dos contratos de consumo, principalmente nas condições gerais dos contratos" (LÔBO, 2001:67).
Todavia, não obstante a construção de todo um sistema de tutela da parte mais vulnerável na relação de consumo com base na boa-fé objetiva, é forçoso ressaltar a profusão de casos de violação desse princípio máximo, consubstanciados nas práticas comerciais abusivas, na veiculação de publicidade enganosa e na inclusão do consumidor em bancos restritivos de crédito sem observância dos parâmetros de lealdade, transparência e cooperação, em detrimento de sua honra e privacidade, o que foi amplamente verificado na análise das decisões judiciais, como demonstra o gráfico abaixo, onde os julgadores aplicaram corretamente o princípio da boa-fé objetiva combatendo as práticas supra referidas. Note-se que, à semelhança dos demais princípios, também quanto ao da boa-fé objetiva não houve a sua devida aplicação pelos magistrados das Varas Cíveis.
O julgado abaixo transcrito exemplifica de modo bastante claro a correta observância do princípio da boa-fé objetiva pelo magistrado:
Processo: 4332/03 [25]
Ano da decisão: 2003
Resumo dos fatos: Trata-se de Ação de obrigação de fazer cumulada com indenização por danos morais em que o demandante alega que aderiu à promoção veiculada pela demandada, onde, de acordo com os anúncios publicitários, teria direito de escolher um número da mesma operadora de telefone celular e efetuar, a qualquer tempo e de forma ilimitada, ligações grátis até o mês de junho de 2003. Contudo, ao receber a primeira fatura, o demandante observou a cobrança normal das ligações realizadas, sendo informado pela demandada que a cobrança deveu-se ao fato de o número escolhido não ter sido cadastrado, mas que, uma vez feito o cadastro, o problema não voltaria a acontecer. Porém, no mês subseqüente, fora o demandado cobrado da mesma forma, tendo a operadora reconhecido o erro e emitido nova fatura. Entretanto, no mês de março, a cobrança irregular novamente aconteceu, e, em contato com a empresa demandada, a mesma afirmou que não havia qualquer irregularidade nas cobranças e que as ligações só seriam gratuitas depois de ultrapassados os 80 minutos do plano contratado pelo demandante. Na contestação, a operadora afirma que esse sistema de cobranças estava previsto no contrato.
Observa-se pela leitura do resumo dos fatos, a inobservância de um dos deveres anexos decorrentes do princípio da boa-fé objetiva pelo fornecedor, qual seja o dever de informação, vez que, de acordo com a decisão proferida, a única peça assinada na transação entre as partes foi um Contrato de Serviço Móvel Pessoal Pessoa Física, não estando explícito, de forma transparente, nesse instrumento, que a gratuidade oferecida pela empresa demandada tinha suas restrições. Ademais, denotou-se no julgado a existência de prática comercial abusiva, consistente na "venda casada" (art. 39, I, CDC), em detrimento da cláusula geral da boa-fé.
9. Posição da Jurisprudência Nacional – STF e STJ.
Antes que se teçam comentários acerca do entendimento dos tribunais superiores no que concerne aos princípios de proteção do consumidor, fundamental destacar que a presente pesquisa partiu da hipótese de não efetividade total da aplicação desses preceitos, tendo em vista que o Judiciário ainda conta com parcela significativa de seus membros atrelados aos princípios tradicionais do direito contratual.
Tal proposição foi parcialmente confirmada no âmbito das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, que não obstante apliquem corretamente a maioria dos princípios, pecam na aplicação do princípio da vulnerabilidade, considerando-a meramente sob o seu enfoque econômico, não se dando conta de que a debilidade do consumidor é também técnica/informação e jurídica.
Da análise dos julgados constatou-se que a vulnerabilidade [26] do consumidor foi afastada quando se entendia que este possuía condições econômicas superiores à do fornecedor, principalmente nas demandas onde era discutida a eleição do foro pelas partes.
Nesse sentido, urge destacar novamente que o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor não quer significar o reconhecimento da parte contratual mais pobre, até porque há situações em que o consumidor é economicamente superior ao fornecedor, o que não implica dizer que neste caso estaria descaracterizada a sua vulnerabilidade, uma vez que esta, repita-se, não se cinge ao aspecto econômico, mas estende-se – eis suas máximas expressões – à fragilidade técnica (precipuamente no que se refere à informação acerca de produtos e serviços, marketing, publicidade, forma de contratação, termos contratuais etc.) e jurídica.
Já no que se refere ao princípio da harmonia dos interesses contratuais observou-se a preocupação dos magistrados na manutenção do equilíbrio entre as partes, sendo sempre destacado o papel do Estado em manter mecanismos estabilizadores capazes de evitar a sobreposição de uma parte sobre a outra, face à típica relação de consumo e à incidência de normas de interesse social e de ordem pública.
No que pertine ao princípio da informação, as decisões analisadas primavam em aferir a clareza e adequação das informações prestadas pelo fornecedor, sempre salientando a ineficácia das disposições contratuais cuja cognoscibilidade não havia sido proporcionada ao consumidor. Os julgados destacavam, ainda, o dever de transparência como consectário da lealdade e da boa-fé, o que foi observado principalmente nas causas que envolviam cláusulas redigidas de forma omissa, dúbia ou incerta, a exemplo dos contratos que não registravam expressamente as taxas de juros ou sua forma de fixação.
Nesse ponto, relevante ressaltar que, em consonância com a moderna teoria contratual, os Tribunais Superiores consideram o dever de informação e de transparência como deveres anexos ao princípio da boa-fé objetiva.
Conforme expresso nas decisões examinadas, decorre igualmente do princípio da boa-fé objetiva os deveres de lealdade, fidelidade e colaboração entre as partes, devendo fazer-se presente desde o início até o término do contrato. Ademais, entendem os tribunais que fere o referido princípio o evidente e incontestável defeito do serviço, mesmo quando ocorre caso fortuito, inerente ao risco da atividade desempenhada pelo prestador de serviço, vez que a responsabilidade é objetiva. Outrossim, a frustração da expectativa legítima do consumidor na obtenção do serviço ocasiona o desequilíbrio da relação consumerista, o que, por sua vez, viola a boa-fé objetiva. Outro aspecto enfocado nos julgados para a proteção do princípio em comento está no combate à abusividade das cláusulas que prevêem a estipulação do preço do contrato de forma unilateral, promovendo o enriquecimento ilícito do credor e o simultâneo empobrecimento sem causa do devedor, tais como as denominadas cláusulas unilaterais antecipatórias, que são pactuadas em benefício exclusivo da parte mais forte do negócio jurídico, entre as quais inserem-se as cláusulas de vencimento prévio das obrigações pecuniárias e seus acessórios e as de vencimento antecipado do negócio e suas garantias.
Na aplicação do princípio da confiança, a jurisprudência nacional entende que o fornecedor deve arcar com as conseqüências da expectativa que criou no consumidor, o que se mostra especialmente nos julgados que declaram nulas as cláusulas abusivas, a exemplo dos juros exorbitantes. Segundo disposto de forma expressa em várias das decisões, a proteção de determinados interesses sociais passa a ser exigência do ordenamento jurídico baseado na relação de consumo, de molde a valorizar a legítima confiança do consumidorou, mesmo, afastar a lesividade como fator do desequilíbrio negocial.
Finalmente, quanto ao princípio da qualidade e segurança dos produtos e serviços, verificou-se que os tribunais o aplicam como corolário do princípio da informação, pelo qual o fornecedor tem o dever de informar o consumidor acerca da qualidade e eventuais riscos.
10. Atuação do PROCON/AL.
Com o objetivo de comparar os dados obtidos na pesquisa realizada no âmbito do Judiciário com a atuação dos órgãos administrativos de orientação e defesa do consumidor, bem como avaliar o grau de importância e o desempenho desses órgãos junto ao Judiciário e à sociedade, buscou-se averiguar o funcionamento e as atribuições do PROCON-AL.
Impende observar que no Estado de Alagoas existem, ainda, o PROCOMUM, no âmbito do Município de Maceió, e os PROCONS dos Municípios de Arapiraca e Palmeira dos Índios.
O Departamento de Orientação e Proteção do Consumidor – PROCON, no Estado de Alagoas, é um órgão da Secretaria Coordenadora de Justiça e Defesa Social, e atua tanto na orientação prévia do consumidor, ou seja, quando este está prestes a ingressar na relação contratual, quanto posteriormente, atendendo a reclamações oriundas da má qualidade de produtos ou serviços.
A orientação ao consumidor ocorre também através da edição e divulgação de cartilhas informativas, nas quais o consumidor é esclarecido sobre os crimes praticados em meio às relações de consumo, a documentação que deve ser requerida ao fornecedor quando da contratação, os documentos que devem ser conservados, os tipos de reclamações que devem ser encaminhadas ao PROCON, principalmente no que pertine à aquisição de alimentos, e demais produtos, e as relacionadas a serviços, saúde, habitação e assuntos financeiros, tais como problemas com financiamentos, cartões de crédito, bancos, consórcios etc. Através das cartilhas, o consumidor também é orientado quanto aos meios que podem ser utilizados para a reclamação (por telefone, carta, ou pessoalmente), os documentos necessários para tanto, os locais e horários de atendimento.
Mediante a reclamação apresentada pelo consumidor, a primeira atuação do PROCON se dá através da tentativa de conciliação entre consumidor e fornecedor. Frustrada a tentativa de acordo, a reclamação é formalmente procedida, notificando-se o fornecedor para apresentar defesa. No ano de 2004, foi de 98% o índice de acordos realizados nos processo/reclamações encerrados.
Nos casos que não podem ser solucionados somente em âmbito administrativo, o PROCON encaminha os consumidores aos Juizados Especiais das Relações de Consumo. Entretanto, verificou-se que o PROCON, por atuar em âmbito administrativo, não acompanha a atuação do Judiciário, não sendo possível a este órgão traçar o perfil do Judiciário alagoano no que diz respeito à aplicação dos princípios de proteção ao consumidor.
11. Atuação do Ministério Público do Estado de Alagoas.
Com vistas a aferir a atuação do Ministério Público junto ao Poder Judiciário alagoano na proteção do consumidor, foi realizada entrevista com o Promotor de Justiça Sr. Delfino Costa Neto, coordenador do CAO – Consumidor do Estado de Alagoas (Centro de Apoio Operacional – seção: consumidor), localizado na sede do Ministério Público Estadual.
O Centro de Apoio Operacional – Consumidor foi criado com o objetivo precípuo de auxiliar os próprios membros do Ministério Público de Alagoas, principalmente aqueles que atuam no interior do estado, quanto às controvérsias envolvendo fornecedores e consumidores, em face da constatação de que boa parte dos promotores encontra dificuldades na atuação em área tão específica.
Assim, são atribuições do CAO- Consumidor a orientação, auxílio e facilitação do trabalho dos Promotores de Justiça do estado, o que é promovido através da realização de estudos, pareceres, pesquisas e de coleta e encaminhamento de material técnico, inclusive com informações acerca dos casos relevantes relacionados à defesa do consumidor e à atuação do Ministério Público nesses litígios.
Conforme orientação do CAO- Consumidor os Promotores de Justiça de Defesa do Consumidor de Alagoas devem propor as medidas, de natureza civil e criminal, destinadas a proteger o consumidor enquanto coletividade ou de situações que envolvam desequilíbrio nas relações de consumo, publicidade enganosa, prejuízo à saúde, à segurança, ao bem estar ou à economia popular. Além disso, os profissionais devem atuar no combate à obtenção ilícita de lucros, ao desrespeito à ética comercial e industrial, e à cobrança e prestação irregular de serviços.
Contudo, inobstante tenha o Coordenador do Centro de Apoio Operacional exemplificado alguns casos onde se destacou a presença do Ministério Público na defesa dos consumidores em determinados municípios de Alagoas, verificou-se que bastante diminuta a atuação de seus membros no que concerne ao âmbito da capital do estado, visto que, concluída a pesquisa empírica, somente foi identificada 01 (uma) ação ajuizada pelo Ministério Público, qual seja a Ação de Responsabilidade Civil em detrimento da TELASA, TELEMAR, TIM, BCP e EMBRATEL referente ao Processo n° 7.112-2/01, oriundo da 7ª Vara Cível da Capital, dando conta de irregularidades nos serviços fornecidos aos consumidores, como: cobrança indevida de ligações em duplicidade, precária divulgação dos serviços prestados, ausência de postos de atendimento pessoal com sede em Maceió, não disponibilização dos números de telefones públicos, prejudicando, dessa forma, sua identificação pelos usuários, entre outros fatores que ressaltaram a ineficiência do serviço prestado.
Dessa forma, resta evidente a urgência da atuação efetiva do Ministério Público como instituição essencial à função jurisdicional do Estado na defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, máxime quando tem a seu favor o instrumento da Ação Civil Pública para o exercício da defesa coletiva dos consumidores, estando o Parquet expressamente legitimado para essa proteção, consoante prescreve o artigo 82, inciso I, da Lei n.º 8.078/1990.