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O direito de propriedade das terras ocupadas pelas comunidades descendentes de quilombos

06/10/2005 às 00:00

Resumo:


  • Discussão em torno do direito de propriedade das terras ocupadas pelas comunidades quilombolas

  • Questionamentos sobre definição de comunidade remanescente de quilombo, direito de propriedade e critérios para identificação

  • Aplicação imediata do artigo 68 do ADCT, regulamentação por decreto e titulação coletiva das terras

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Tenta-se, com este breve esboço jurídico, trazer à baila discussão em torno das várias questões que envolvem o direito de propriedade das terras ocupadas pelas comunidades quilombolas, que, a meu ver, merecem uma maior atenção e divulgação no meio jurídico, já que, hodiernamente, centenas dessas comunidades foram identificadas pela Fundação Cultural Palmares1 , entidade vinculada ao Ministério da Cultura. A previsão consta no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ao aduzir o seguinte: Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhe os títulos respectivos.

Diante disso, dúvidas surgiram: 1) O que se deve entender por comunidade remanescente de quilombo? 2) O direito de propriedade abarcaria somente descendentes de comunidades que se formaram antes da abolição da escravidão ou seriam beneficiados também descendentes de comunidades que tiveram origem após o ano de 1888? 3) Qual o sentido do termo "que estejam ocupando suas terras" constante no art. 68 do ADCT? 4) Qual critério utilizado para definir um grupamento social como remanescente de quilombo? 5) O texto constitucional tem aplicação imediata ou dependeria de lei posterior para ter eficácia plena? 6) Norma infraconstitucional pode prever critérios restritivos de identificação das comunidades quilombolas? 7) A regulamentação do procedimento e das atividades das entidades responsáveis poderá ser feita por decreto ou é obrigatória a edição de lei? 8) De que maneira pode dar-se o início do procedimento? 9) É legítima a auto-intitulação da comunidade como descendente de quilombo? 10) O direito de propriedade é concedido, individualmente, aos integrantes quilombolas ou à comunidade como um todo? 11) Depois de concedida a propriedade, poderia a comunidade ou integrante desta praticar atos de disposição, tais como vender, trocar, doar? 12) As terras definidas como sendo de comunidade quilombola estão sujeitas a usucapião? 13) Se as terras ocupadas forem de domínio de Estado, Distrito Federal ou Município, permanece o direito de propriedade das comunidades? 14) É garantida também a propriedade quando as terras ocupadas incidirem em terrenos de marinha, marginais de rios, ilhas e lagos? 15) Sendo a terra habitada pelos quilombolas unidade de conservação constituída, ou destinada às áreas de segurança nacional, à faixa de fronteira e às terras indígenas, como proceder? 16) E se o imóvel for de propriedade particular, como fica a situação dos que são portadores de título legítimo?

São, em resumo, estes questionamentos que se tentará solucionar. Evidentemente, não é pretensão deste breve estudo dar a palavra final sobre o assunto. A questão está posta. Abre-se a discussão.

Deixam-se, antes, concomitantemente, uma crítica e um elogio ao legislador constituinte. Ao prever o direito de propriedade aos remanescentes de quilombos no art. 68 do ADCT, o legislador originário foi totalmente assistemático. Foi como se, influenciado, dentre outros fatores, pelas comemorações do centenário da abolição da escravatura, de última hora, de inopino, de supetão, tivesse lembrado que deveria garantir o direito de propriedade às comunidades quilombolas, e o apôs no art. 68 do ADCT, que trata de normas de regência transitória. Dessa maneira, esse direito apresenta-se quase que de forma sorrateira, às escondidas, como que esquecido, quase imperceptível. Seria muito mais técnico e louvável sua previsão no bojo do texto constitucional, na Seção II do Capítulo III do Título VIII, mais precisamente nos arts 215 e 216 da Constituição Federal, já que a Carta considera como formadores de nosso processo civilizatório nacional os grupos afro-brasileiros (§ 1º do art. 215 da CF), bem como impôs o tombamento de todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos (§ 5º do art. 216 da CF) e, ainda, a previsão de o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação (§ 1º do art. 216 da CF). Não bastasse isso, a Emenda Constitucional nº 48 acrescentou o § 3º ao artigo 215 da Constituição Federal, no qual há previsão de Plano Nacional de Cultura, visando ao desenvolvimento cultural do país e à integração das ações do Poder Público que conduzam à valorização da diversidade étnica e regional (inciso V do § 3º do art. 215 da CF).

Não obstante - e aqui registre-se o elogio-, foi a primeira vez num texto constitucional que se previu o direito de propriedade das terras ocupadas pelas comunidades quilombolas.

Passemos, então, à análise dos questionamentos supracitados.

1 - Afigura-se, inicialmente, para uma melhor compreensão do tema, esclarecer a definição de comunidade remanescente de quilombo. Como se sabe, os quilombos surgiram na época da escravidão no Brasil, como uma forma de resistência dos escravos a toda sorte de humilhações e condições sub-humanas por que passavam. Os escravos "rebeldes" "fugiam" dos domínios do seu senhor para formarem grupos de resistência. Desse modo, por todo o País, vários núcleos se formaram, dando origem aos quilombos. Muitos líderes se destacaram nesses grupamentos, dentre eles o conhecido Zumbi dos Palmares, que liderou a Comunidade Quilombo dos Palmares, aos arredores da cidade alagoana, cujo nome presta homenagem aos quilombos: União dos Palmares. Com a abolição da escravidão, no ano de 1888, muitas dessas comunidades continuaram a existir, bem como muitos dos ex-escravos, não tendo para onde ir, à margem da sociedade e sem condições mínimas para uma existência digna, formaram novos grupamentos, que, apesar de não servirem mais como um núcleo de resistência à escravidão, serviam como um meio de ajudarem-se mutuamente e resgatar a cultura e a religiosidade da terra natal "deixada". Pois bem, essa maneira de viver foi passada de geração em geração, de modo que os atuais integrantes das comunidades quilombolas revivificam as culturas originais e a religiosidade de seus antepassados nas terras que hoje ocupam. São, pois, esses grupamentos sociais que a Constituição Federal chama, no art. 68 do ADCT, de comunidade remanescente de quilombo.

Apesar de o texto constitucional referir-se a remanescente, sem sombra de dúvida essa expressão deve ter sua interpretação alargada. Explica-se. É que remanescente refere-se ao que restou, ao que sobrou. Assim, interpretando literalmente o texto, ele teria aplicação praticamente inócua, haja vista que, se hoje há algum remanescente do período da escravidão, este, certamente, deve estar nos seus últimos dias. Então, onde se lê remanescente, entenda-se descendente, que significa derivar, provir por geração2 . Destarte, devemos estender o conceito de comunidade quilombola como sendo descendentes de quilombos. Só assim obteremos efetividade do comando constitucional.

2 - Não podemos restringir também o direito de propriedade somente aos descendentes de comunidades que se formaram antes da abolição. Esse evento, como se sabe, pôs termo, formalmente, à escravidão. Entretanto, apesar das grandes conquistas adquiridas com a resistência dos quilombos, os negros continuaram sofrendo toda sorte de opressão – o que, de certa forma, ocorre nos dias atuais -, tais como: exclusão social, discriminação racial, oportunidades desiguais etc. Os ex-escravos, nesse contexto, não possuindo nenhum recurso financeiro, nem recebendo assistência e incentivo do Estado para iniciar uma nova vida e não enxergando outra alternativa, uniram-se e, como já ressaltado, formaram novas comunidades mesmo após a abolição. Nessa fase, a resistência não era mais contra a escravidão em si, que se tornou ilegal, mas sim ao ranço escravocrata que ainda permanecia impregnada na sociedade. Assim, devemos concluir como beneficiados também os descendentes das comunidades que se formaram após o advento da abolição.

3 - Atente-se, ainda, para os casos, mesmo após a formação da comunidade, em que os quilombolas, vendo-se alijados, foram paulatinamente sendo retirados de suas terras de origem, para se estabelecerem em outros locais, em decorrência do crescimento urbano, especulação imobiliária, pressão dos setores economicamente mais fortes etc. É nesse sentido amplo que devemos entender o termo "que estejam ocupando suas terras" do art. 68 do ADCT, o qual sugere proteção dominial plena, vale dizer: propriedade e posse. Não significa que as terras ocupadas, necessariamente, tenham servido como local de resistência à escravidão. Eis mais uma razão por que comunidades que se formaram após a abolição merecem o amparo do art. 68 do ADCT.

4 – Sob este enfoque, o critério para definir uma comunidade como sendo quilombola, de modo a garantir-lhe a propriedade e a posse, é a relação que, com o passar dos anos, o corpo social adquiriu com as terras ocupadas, difundindo sua cultura, seus modos de criar, fazer e viver, e resgatando valores surrupiados, como meio, inclusive, de assegurar sua reprodução física, social, econômica e cultural3 .

5 - Quanto à aplicabilidade, segundo conhecida classificação de José Afonso da Silva4 , as normas constitucionais são de eficácia plena, contida e limitada. Sucintamente, podemos defini-las dessa forma: a primeira é aquela que, desde a entrada em vigor da Constituição, já está plenamente apta a ser aplicada, garantindo, de plano, os direitos nela previstos, sem necessidade de lei ulterior; a segunda, por sua vez, é aquela que, desde a entrada em vigor do Texto Constitucional, já está apta à plena aplicação, porém uma lei posterior, ou mesmo anterior à promulgação da Carta, restringe sua eficácia; e a última, por fim, é aquela que tem aplicação mediata, somente garantindo os direitos nela previstos com a edição de lei posterior. A norma estampada no art. 68 do ADCT enquadra-se na primeira, qual seja, norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata, uma vez que não exige nenhuma lei ulterior para sua efetividade e não há lei que contenha sua eficácia. Sendo assim, ela, de plano, já garante a propriedade das terras ocupadas pelas comunidades quilombolas. Desta feita, todas as atividades do Estado no intuito de concretizar o comando constitucional são de natureza declaratória, e não constitutiva, porque a propriedade, nesses casos, era um direito subjetivo preexistente à promulgação do Texto Constitucional. Tanto isso é verdade, que o termo "propriedade definitiva" constante no art. 68 do ADCT nos leva a essa conclusão, transmitindo a idéia de que antes já existia a propriedade. Com o advento da Constituição estabeleceu-se a segurança jurídica.

6 – A nossa Constituição Federal, quanto à alterabilidade de seu texto, é rígida. Decorrência lógica disso é o princípio da supremacia das normas constitucionais. Por conseguinte, todas as normas abaixo da Constituição lhe devem obediência. A ilação necessária, então, é que nenhuma norma infraconstitucional pode prever critérios restritivos de identificação dessas comunidades, tais como: de natureza temporal, cultural, geográfica etc.

7 - Sendo uma exigência constitucional, como o próprio art. 68 do ADCT dispõe, o Estado não pode omitir-se. Ao revés, é seu dever atuar ativamente em prol das comunidades de quilombos. A par disso e a fim de regulamentar o procedimento e as atividades das entidades responsáveis, porque a norma em estudo, como se viu, é de eficácia plena e aplicabilidade imediata5 , o Presidente da República, abeberando-se no poder hierárquico, editou, com base no art. 84, incisos IV e VI, "a", da Carta da República, o Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 20036 . O INCRA, por sua vez, regulamentou sua atuação por intermédio da Instrução Normativa nº 16, de 24 de março de 2004 (§ 1º do art. 3º do Decreto nº 4.887/2003). A conclusão, pois, é a desnecessidade de edição de lei para efetivar o comando do art. 68 do ADCT. O chefe do Poder Executivo, utilizando-se do poder hierárquico e das prerrogativas do art. 84, IV e VI, "a", da CF, pode, legitimamente, editar decreto autônomo para aquele fim, já que, repise, trata-se de norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata.

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Malgrado, mesmo entendendo o contrário, ou seja, a edição de lei para assegurar o direito previsto no art. 68 do ADCT, essa norma já existe, qual seja, a Convenção 169 da OIT, tratado decorrente do disposto no § 2º do art. 5º da CF, aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho de 2002, promulgada pelo Presidente da República mercê do Decreto nº 5.021, de 19 de abril de 2004, e, assim, ingressada na ordem jurídica como lei ordinária7 , a qual, no art. 14, reza:

Artigo 14

1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de sua subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.

2 . Os governos deverão adotar as medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse.

3. Deverão ser instituídos procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar as reivindicações de terras formuladas pelos povos interessados8 .

Sob esse prima, o Decreto nº 4.887/2003 já não mais seria decreto autônomo, mas norma infralegal que regulamenta o art. 14 da Convenção 169 da OIT, na forma do que dispõe o art. 84, inciso IV, da Constituição Federal.

8 - O início do procedimento pode dar-se de ofício pelo INCRA ou por requerimento de qualquer comunidade que se auto-identifique como descendente de quilombos, adjetivação que será inscrita no Cadastro Geral junto à Fundação Cultural Palmares, que tem a incumbência de expedir a certidão desse ato (§ 4º do art. 3º do Decreto nº 4.887/2003). A partir daí inicia-se todo um conjunto de atividades para tornar efetivo o comando constitucional, tais como: estudos antropológicos, Relatório Técnico de Identificação9 , colheita de elementos fáticos escritos e/ou orais, dados histórico-sociais, levantamento da cadeia dominial do imóvel até sua origem (arts. 7º, 8º e § 2º do art. 13 do Decreto nº 4.887/2003) etc.

9 – Esse direito de autodefinir-se como comunidade descendente de quilombo tem respaldo na Ciência da Antropologia, pois, "para que se verifique se certa comunidade é de fato quilombola é preciso que se analise a construção social inerente àquele grupo, de que forma os agentes sociais se percebem, de que forma almejaram a construção da categoria a que julgam pertencer. Tal construção é mais eficiente e compatível com a realidade das comunidades quilombolas do que a simples imposição de critérios temporais ou outros que remontem ao conceito colonial de quilombos10". A propósito, reza o art. 1º, item 2, da Convenção 169 da OIT:

Artigo 1º.

2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos quais se aplicam as disposições da presente convenção.

10 - A titulação administrativa é realizada, sem qualquer ônus financeiro, em favor de todo o corpo social, que será representado por suas associações legalmente constituídas (art. 17 do Decreto 4.887/2003). Em outras palavras, as comunidades formam suas associações para que as represente, devendo inscrever os seus estatutos no registro competente, que, a partir de então, adquirem personalidade jurídica (art. 45, caput, c/c o art. 54 do CC), estando, portanto, neste momento, aptas a serem titulares de direito, qual seja, a propriedade. Por conseguinte, o título de domínio não poderá ser concedido, individualmente, a integrantes da associação. Este é reconhecido e registrado mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades (art. 17, caput, do Decreto nº 4.887/2003). Trata-se, portanto, de uma propriedade coletiva que deverá abranger, quanto à territorialidade, não somente o local específico onde os integrantes habitam, mas também aquele utilizado para exploração agropecuária, agrícola e extrativista - observada a sazonalidade das atividades -, os espaços destinados à recreação, às atividades religiosas e os necessários a sua reprodução física, socioeconômica e cultural, com o escopo de preservar a identidade cultural. Exsurge, pois, a identidade coletiva de cada comunidade como fator preponderante para a limitação do território.

11 - A propriedade, nos termos propostos pelo art. 68 do ADCT, caracteriza-se como sui generis, já que todos os quilombolas poderão usar e usufruir das terras ocupadas, porém não é permitido à associação, enquanto representante da comunidade e proprietária do imóvel, dela dispor, já que deve constar obrigatoriamente no título respectivo a inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade. Em virtude da inalienabilidade e da impenhorabilidade não poderá ser oferecida como garantia e nem sofrer constrição judicial.

12 – Observa-se, também, que tais imóveis não estão sujeitos a usucapião, tendo em vista a cláusula de imprescritibilidade.

E assim é porque busca-se reparar um dívida histórica com a concretização do disposto no art. 68 do ADCT, tendo em vista que se almeja, de um lado, propiciar uma significativa melhora na qualidade de vida dos descendentes de escravos, uma vez que são, a grande maioria, pessoas totalmente desprovidas de recursos; e de outro, o resgate dos valores culturais e dos modos de criar, fazer e viver (art. 216, II, CF) das comunidades remanescentes de quilombos, que deu ensejo a uma autônoma e própria cultura afro-brasileira, participante do nosso processo civilizatório (§ 1º do art. 215 da CF).

13 - Constatando-se que o local ocupado incide sobre terras de propriedade dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, o INCRA, por meio da Superintendência Regional, proporá a celebração de convênio com aquelas unidades da Federação para a execução dos procedimentos e encaminhará os autos para os entes responsáveis pela titulação, permanecendo, portanto, o direito das associações à propriedade, observando-se, neste caso, rito previsto nas normas das respectivas entidades11.

14 - A titulação não oferece maiores dificuldades quando as áreas ocupadas são definidas como devolutas da União. Incidindo, porém, em terrenos de marinha, marginais de rios, ilhas e lagos, nem por isso a propriedade da comunidade ficará desfigurada. Nesse caso, haverá uma atuação conjunta entre o INCRA e a Secretaria do Patrimônio da União a fim de tomarem as medidas cabíveis para a expedição do título (art. 10 do Decreto nº 4.887/2003)

15 - Em caso de as terras ocupadas estiverem sobrepostas às unidades de conservação constituídas, às áreas de segurança nacional, à faixa de fronteira e às terras indígenas, o INCRA, o IBAMA, a Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional, a FUNAI e a Fundação Cultural Palmares atuarão conjuntamente com o objetivo de adotarem medidas que visem à sustentabilidade das comunidades, conciliando o interesse do Estado (art. 11 do Decreto nº 4.887/2003), observadas, quanto às unidades de conservação, as prescrições da Lei 9.985, de 18 de julho de 2000.

16 - Sendo o imóvel habitado de domínio particular, como enfatiza o art. 13 do Decreto nº 4.887/2003, não invalidado por nulidade, prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será realizada vistoria e avaliação, objetivando a adoção dos atos necessários à sua desapropriação. Com efeito, nesses casos em que há legítimo título de propriedade das terras ocupadas, o meio legal para a efetivação do art. 68 do ADCT é, primeiramente, a desapropriação do imóvel pelo Poder Público para, após, titulá-lo em favor da comunidade.

A desapropriação, nesse particular, pode ter por fundamento o § 1º do art. 216 da Carta Magna, quando aduz: o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação (destaque nosso). Relembre-se de que a Lei Maior considera os grupos afro-brasileiros como formadores de nossa cultura e participantes de nossa civilização (arts. 215 e 216 da CF) e, por conseguinte, devem ser protegidos, podendo ser utilizado, inclusive, como uma das formas de proteção, a desapropriação, conforme destacado acima.

Por outro lado, pode ter por fundamento, ainda, o art. 5º, XXIV, da Constituição Federal, de vez que a desapropriação, se a comunidade viver no campo, o que ocorre na grande maioria dos casos, dá-se por interesse social, a teor do que dispõe o art. 2º, inciso III, da Lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962, verbis:

Art. 2º. Considera-se de interesse social:

III – o estabelecimento e a manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento ou trabalho agrícola.

É óbvio, portanto, que uma comunidade quilombola, que viva no meio rural, enquadra-se perfeitamente como sendo uma colônia agrícola e, por mandamento constitucional e legal, deve ser preservada e mantida.

Por fim, verificada, na área, a presença de ocupantes, que não sejam proprietários do imóvel e não-descendentes de quilombos, o INCRA deverá observar o disposto no art. 14 do Decreto nº 4.887/2003, bem como constatando a incidência de posse particular de domínio da União, será feita abertura de processo administrativo para retomada da área em nome do Poder Público (art. 14, V, da IN nº 16/2004), atentando-se, quanto aos frutos e às benfeitorias realizadas, as disposições dos arts. 1.214 a 1.220 do Código Civil.

Por todo o exposto, garantindo a titulação das terras ocupadas pelas comunidades de quilombos, entendendo esse direito de propriedade previsto no art. 68 do ADCT de forma ampla, revigora-se o Estado Democrático de Direito, com o escopo de, um dia, alcançarmos uma sociedade mais justa e solidária, um dos objetivos da República Federativa do Brasil (art. 3º, I, da CF).


NOTAS

1 Segundo informação obtida junto à Diretoria de Proteção ao Patrimônio Afro-brasileiro da FCP, existem, atualmente, 545 comunidades de quilombos identificadas.

2 Novo Aurélio. Século XXI. Editora Nova Fronteira.

3 Comunidades Quilombolas. Direito à Terra. P. 78/79. Sociedade Brasileira de Direito Público. Centro de Pesquisas Aplicadas. Produção Editorial: Abaré. Trabalho Coordenado pelo Prof. Dr. Carlos Ari Sundfeld.

4 SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 89-91.

5 Veja-se, a propósito, que o direito de propriedade dos remanescentes de quilombos é líquido e certo pela redação do art. 68 do ADCT, de modo que as normas editadas para sua efetivação de maneira nenhuma inovam o ordenamento jurídico. Este raciocínio, com o qual concordamos, foi extraído da INFORMAÇÃO/CPALNP/CJ/MDA/Nº 256/2004 (VAF) , de lavra do Procurador Federal Valdez Adriani Farias.

6 Considerado decreto autônomo porque retira seu conteúdo de validade diretamente do Texto Constitucional. Segundo o art. 3º, caput, do dito decreto, compete ao Ministério de Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, - entidade mais afeita às causas fundiárias - a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. O art. 5º do mesmo diploma, por sua vez, aduz que compete ao Ministério da Cultura, por meio da Fundação Cultural Palmares, assistir e acompanhar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA nas ações de regularização fundiária, para garantir a preservação da identidade cultural dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como para subsidiar os trabalhos técnicos quando houver contestação ao procedimento de identificação e reconhecimento previsto neste Decreto. O art. 16 ressalta, ainda, que após a expedição do título de reconhecimento de domínio, a Fundação Cultural Palmares garantirá assistência jurídica, em todos os graus, aos remanescentes das comunidades dos quilombos para defesa da posse contra esbulhos e turbações, para a proteção da integridade territorial da área delimitada e sua utilização por terceiros, podendo firmar convênios com outras entidades ou órgãos que prestem esta assistência. O parágrafo único do mesmo artigo diz competir também à Fundação Cultural Palmares prestar assessoramento aos órgãos da Defensoria Pública quando estes órgãos representem em juízo os interesses dos remanescentes das comunidades dos quilombos, nos termos do art. 134 da Constituição.

7 INFORMAÇÃO/CPALNP/CJ/MDA/Nº 256/2004 (VAF) , de lavra do Procurador Federal Valdez Adriani Farias.

8 Digno de nota também o que prescreve o artigo 2º, item 1, da Convenção 169 da OIT: os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver , com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade.

9 Art. 10 da IN nº 16/2004.

10 Comunidades Quilombolas. Direito à Terra. P. 79/80. Sociedade Brasileira de Direito Público. Centro de Pesquisas Aplicadas. Produção Editorial: Abaré. Trabalho Coordenado pelo Prof. Dr. Carlos Ari Sundfeld.

11 Art. 14, III, da IN nº 16/2004.

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Sobre o autor
Alcides Moreira da Gama

procurador federal em Brasília (DF), em exercício na Fundação Cultural Palmares

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAMA, Alcides Moreira. O direito de propriedade das terras ocupadas pelas comunidades descendentes de quilombos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 825, 6 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7396. Acesso em: 23 dez. 2024.

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