Todo humano ao ser gerado precisa de um pai e de uma mãe, já que ninguém é filho do vento e da aurora [01]. Todos os filhos procriados são humanos plenos para exercerem seus direitos e deveres, em um grupo social como a família, que por sua vez é a célula base da sociedade, representando, dessa forma, a continuação da espécie. Daí que a filiação constitua objeto de apreciação de diversas áreas do saber, entre elas a Genética, que procura descobrir os traços comuns transmitidos de pai para filho.
Na definição da Professora Maria Helena Diniz, "filiação é o vínculo existente entre pais e filhos; vem a ser a relação de parentesco consangüíneo em linha reta de primeiro grau entre uma pessoa e aqueles que lhe deram a vida" [02]. Já o Jurisconsulto Pontes de Miranda sustenta que a filiação é "a relação que o fato da procriação estabelece entre duas pessoas, uma das quais nascidas da outra, chama-se paternidade, ou maternidade, quando considerada com respeito ao pai, ou à mãe, e filiação, quando do filho para qualquer dos genitores" [03].
Em um primeiro momento histórico, o reconhecimento do filho decorria de um ato de vontade do pater familia de reconhecer ou rejeitar o filho conforme a própria vontade. Em uma segunda fase, a inserção de um novo membro dependia da regulamentação da lei. A família era a base da sociedade romana, já que o filho era o continuador do culto doméstico e da memória do pater, que seria lembrado entre as gerações futuras. Para tanto, o novo membro deveria ser apresentado diante do altar, da mesma forma como sua mãe foi apresentada como esposa [04].
Em virtude da importância dada pelos romanos em manter o culto doméstico e a perpetuação da memória dos ancestrais, quem fosse estéril poderia adotar. Logo, o adotado, se apresentado diante dos deuses do lar paterno, seria filho, apesar de não possuir o mesmo sangue. O simples ato de ser o futuro continuador do culto ancestral o fazia descendente.
A mesma sorte do filho adotivo não teve o filho natural. Apesar do seu reconhecimento no Direito Romano, ele não seria considerado o continuador do culto doméstico paterno. Sempre seria um estranho ao lar do pai, como bem descreveu Fustel de Coulanges [05].
"Porém, não era o suficiente gerar um filho. O filho que perpetuaria a religião doméstica devia ser fruto de casamento religioso. O bastardo, filho natural, aquele que os gregos denominavam por nóthos e os latinos spurius, não podiam desempenhar o papel que a religião transmitia ao filho. Com efeito, os vínculos de sangue isolados não constituíam, para o filho, a família; necessitava ele ainda dos vínculos do culto. Ora, o filho nascido de mulher não associada ao culto do esposo através da cerimônia do casamento não podia, por si próprio, tomar parte no culto. Não tinha o direito de ofertar o banquete fúnebre, e a família não se perpetuaria por seu intermédio."
Seguindo a tradição romanística, o direito positivo brasileiro classificava os filhos em legítimos, legitimados e ilegítimos, nos termos do artigo 355 e seguintes do Código Civil de 1916, sendo espécie dos filhos ilegítimos os naturais e os espúrios, os últimos, adulterinos e incestuosos. Os filhos são legítimos quando procriados na vigência do casamento dos seus pais. São legitimados quando, concebidos por pessoas não casadas, que posteriormente ao nascimento, convolam as justas núpcias.
A Igreja, no Direito Canônico, permitia o reconhecimento dos filhos espúrios e sacrílegos apenas para fins alimentares, por corresponder tal direito a uma norma natural. [06] Quanto ao Código de Napoleão, ao mesmo tempo em que ampliou os direitos dos filhos naturais, somente permitia o reconhecimento voluntário pelos pais. Apenas em meados de 1912, a França admitiu a investigação de paternidade nos casos de concubinato do pai com a mãe à época da concepção [07].
1.2filiação no Brasil e a Constituição de 1988
Quando da elaboração do anteprojeto do Código Civil de 1916, o Jurista Clóvis Bevilacqua [08] defendeu a causa dos filhos naturais, possibilitando o seu reconhecimento no artigo 363 do Código Civil, embora com as restrições aos incestuosos e adulterinos, tudo isso em nome da paz doméstica [09].
A primeira vez, no Direito Brasileiro, que a família foi tida como instituição e assegurada a sua proteção foi na Constituição de 1934, como também a faculdade ao filho ilegítimo de investigação de paternidade e maternidade [10].
O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento, segundo a Lei n.° 833, de 1949, deveria ser feito por testamento cerrado, aprovado antes ou depois do nascimento do filho, e nessa parte, irrevogável. Assim, estava subordinada a atribuição de estado à dissolução da sociedade conjugal, seja pelo desquite, seja pela morte de um dos cônjuges, seja pela anulação do matrimônio.
Com o advento da Constituição Republicana de 1988, seguidora da tendência liberal dos pensadores do Direito, ampliou-se, sensivelmente, o conceito de família. Assim, apenas um dos genitores e os seus descendentes constituem família, apagando de uma vez por todas o ranço discriminatório de classificar a prole em legítima, legitimada e ilegítima, a última dividida em natural, incestuosa ou adulterina. Filhos agora são apenas filhos, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação, passando os tribunais a se orientar da seguinte forma [11].
"Filiação incestuosa - Direito a herança. Com a vigência da Lei n.º 6.515/77, que deu nova redação ao artigo 2° da lei 883/49, o filho incestuoso passou a ter direito a suceder, em igualdade de condições com os legítimos. Não lhe sendo dado, até a Constituição de 1988, pleitear o reconhecimento da paternidade, esta haveria de ser examinada e decidida incidenter tantum, como questão prejudicial, para o único fim de assegurar-se o direito a herança" [12].
Por conseqüência, surgiram normas asseguradoras de ampla igualdade entre todos os filhos, nascidos antes ou depois, dentro ou fora do casamento, dando respaldo constitucional para aqueles que desejassem ser reconhecidos como filhos, carregar o nome e apelido de família do genitor e exercer todos os direitos e deveres atribuídos aos descendentes, pois como disse o Professor Caio Mário da Silva Pereira, filhos fora do casamento sempre existiram e sempre existirão [13].
A primeira norma infraconstitucional seguidora da tendência liberal adotada pelo Constituinte de 1988, revolucionadora da investigação de paternidade, foi o projeto de lei de autoria do Senador Nelson Carneiro, que resultou na Lei n.° 8.590, de 1992 [14].
1.3.reconhecimento voluntário, administrativo e judicial
O reconhecimento de filiação pode ocorrer de três formas: voluntário, administrativo e jurisdicional.
Ocorre o reconhecimento voluntário por ato dos pais, conjunta ou separadamente, no registro de nascimento, em testamento, em escritura pública, documento escrito ou por manifestação expressa e direta perante o juiz. Entretanto, existe apenas uma exceção quanto ao reconhecimento voluntário que impede que o pai reconheça o filho na ata do casamento.
O reconhecimento administrativo ocorre nos casos em que o pai se recuse ao reconhecimento voluntário. Efetua-se por declaração da mãe ao oficial do registro civil, no ato de registro do filho, apontando o nome e a qualificação do genitor. O oficial encaminhará a certidão integral do registro e os dados qualificadores do suposto pai ao juiz. O juiz ouvirá a mãe e notificará o varão, independentemente de seu estado civil, para manifestar-se. Caso o suposto pai compareça e confirme expressamente a paternidade, será lavrado o termo de reconhecimento e remetida a certidão ao oficial do registro, para a devida averbação.
Se o reconhecimento administrativo frustrar-se, inicia-se o reconhecimento judicial mediante ação de investigação de paternidade, que segue o rito ordinário, admitindo todos os meios de prova, notadamente a pericial, que hoje assume grande relevância em face da evolução hematológica, em especial o exame de DNA.
Dessa forma, os autos serão enviados para o Ministério Público para a propositura da competente ação judicial, já que o Parquet possui legitimidade para intentar a ação investigatória, e a coisa julgada da ação do Ministério Público não atinge o menor, possibiltando que o filho ingresse no futuro com a mesma ação. Eis a jurisprudência:
"Investigação de Paternidade. Ação proposta pelo Ministério Público. Coisa julgada. Exame de DNA. Na investigação de paternidade, proposta pelo Ministério Público, o filho não está atingido pela coisa julgada, pois o órgão ministerial age de ofício, e não em representação do infante, nem na defesa do interesse específico deste, a questão é de ordem pública e registral, pois o registro público deve espelhar a verdade. Mostra-se, assim, do interesse das partes, a realização de perícia genética através do DNA, até para segurança do réu, que sempre se negou a se submeter a prova pericial, pois qualquer tempo, prosperando o seu apelo, poderá ser surpreendido com uma outra ação, promovida pelo investigante, não atingido pela coisa julgada. Julgamento convertido em diligência, para manifestação do réu, sobre seu interesse em se submeter a perícia de DNA" [15].
Em síntese, o juiz, sempre que possível, ouvirá a mãe e mandará notificar o suposto pai, independentemente do estado civil, para se manifestar sobre a paternidade que lhe é atribuída. Se o suposto pai confirmar a paternidade será lavrado o termo de reconhecimento. Do contrário, a mãe ou o Ministério Público poderão dar início à ação de investigação de paternidade.
BIBLIOGRAFIA
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VERUCCI, Florisa. O direito de ter pai. In: LEITE, Eduardo de Oliveira. (org.). Grandes temas da atualidade- DNA como meio de prova da filiação 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
WALD, Arnoldo. O Novo Direito de Família. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
NOTAS
01 VALLE, Gabriel. Ética e Direito. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 28.
02 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, vol.5, p.372.
03 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Campinas: Bookseller, 2000, vol.9, p.45.
04 FACHIN,Luiz Edson. Estabelecimento da filiação e paternidade presumida. Porto Alegre: Fabris, 1998, p.29.
05 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A Cidade antiga. São Paulo: Hemus, 1975, p.42.
06 WALD, Arnoldo. O novo Direito de Família. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p.67.
07BETINI, Alexandre. Ação de investigação de paternidade. Revista dos Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, maio, vol.799, 2002, p.726.
08 WALD, Arnoldo. O Novo Direito de Família. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.67.
09 WALD, Arnoldo. O Novo Direito de Família. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.67.
10 A proteção à família estava disposta no artigo 107 da Constituição de 1934, assim dispondo "A família está sob a proteção especial do Estado e repousa sobre o casamento e a igualdade jurídica dos sexos; a lei civil, porém, estabelecerá as condições da chefia da sociedade conjugal e do pátrio poder, e regulará os direitos e deveres dos cônjuges"
11 No mesmo sentido: "É importante registrar que a constituição de 1988, além de determinar outras louváveis modificações no direito brasileiro, introduziu um novo estatuto da filiação, ordenando a completa equiparação entre os filhos, sepultando as odiosas discriminações do passado, estatuindo, no art. 227, § 6º, que precisa ser lembrado e repetido, como uma prece: ''os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação." VELOSO, Zeno. A sacralização do DNA na investigação de paternidade. In: LEITE, Eduardo de Oliveira. (org.). Grandes temas da atualidade- DNA como meio de prova da filiação. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.383.
12 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ªTurma. RESP n.° 526. Relator: Eduardo Ribeiro. Data de julgamento:18.11.90. DJ de 19.11.90, p.260.
13 No sentido: "(...) filhos fora do casamento houve e haverá sempre. É uma realidade fática, em todos os tempos enfrentada pelo nosso Direito, e em todas as fases desde o Código Filipino." PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento de paternidade e seus efeitos. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p52-53.
14 No sentido: "No conjunto, o espírito da lei corresponde ao que se pretendia, com certo rigorismo no que se refere à intervenção do Ministério Público e ao prazo concedido ao indicado pai para se manifestar sobre a paternidade que lhe é atribuída, 30 dias, quando na legislação de outros países que lhe serviram de modelo, como a Itália, Portugal, Alemanha, Suécia, o prazo é bem mais generoso, salvo em Cuba, que no art. 68 de seu Código de Família limita o prazo da manifestação do suposto pai a 30 dias a partir da inscrição do nascimento feita apenas pela mãe e é mais rigorosa ainda, ao atribuir a paternidade da criança àquele que não comparecer para aceitar ou negar o fato dentro do prazo prescrito" VERUCCI, Florisa. O direito de ter pai. In: LEITE, Eduardo de Oliveira. (org.). Grandes temas da atualidade- DNA como meio de prova da filiação 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p 95-96.
15 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. 8ª Câmara Cível. Apelaçao Cível nº 599352887. Relator: Antônio Carlos Stangler Pereira. Data do julgamento: 23.11.2000.