Elementos para uma teoria da justiça por Amartya Sen

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4 ARGUMENTAÇÃO RACIONAL E IMPARCIALIDADE

Como elemento necessário à análise da teoria da justiça de Amartya Sen, abordaremos a relevância dada por eleà argumentação racional. Para Sen, é tentador acreditar que a justiça não se relaciona com nenhum tipo de argumentação racional, que basta a sensibilidade para a injustiça- o que seria corroborado com a indignação causada diante da fome coletiva, por exemplo[20]. Mas Sen afirma que determinadas tragédias só seriam consideradas injustiças se pudessem ter sido evitadas e nada tenha sido feito nesse sentido, ou seja, em caso de força maior não se estaria diante de uma injustiça, mesmo que a calamidade fosse enorme. Dessa forma, Sen entende que "os requisitos de uma teoria da justiça incluem fazer com que a razão influencie o diagnóstico da justiça e da injustiça”[21].

Ignorar a argumentação racional frente à injustiça pode ter consequências, como o fato de que não se saberá estar fazendo a coisa certa ou outras pessoas não saberão que a justiça está sendo feita. Ainda, a razão auxiliaria na percepção que as pessoas têm de seus objetivos e metas, possibilitando-lhes refletir sobre suas ações e sobre como ser mais socialmente correto. Na esteira do pensamento de Wittgenstein, Sen entende que “ser mais inteligente [e com isso ele quer dizer usar mais a razão]  também pode nos dar a capacidade de pensar de forma mais clara sobre nossas metas, objetivos e valores”[22]. E continua, afirmando que “ser mais inteligente pode ajudar na compreensão não só do interesse próprio, mas também de como a vida dos outros pode ser fortemente afetada por nossas próprias ações”[23].

Ao tratar da influência da razão em uma teoria da justiça, Sen também faz uma ponderação sobre a teoria da escolha racional, questionando que ela não pode ser entendida simplesmente como atender ao autointeresse, ou seja, a valorizar aquilo que causará exclusivamente bem-estar individual. Sen[24]defende que, eventualmente, poderemos ter que racionalizar para deixar de atender ao nosso interesse para realizarmos algo bom para os outros, porque esse é um comportamento decente. Nesse sentido, pessoas que utilizam plenamente a razão e suas capacidades intelectuais estaria mais aptas a fazer do mundo um lugar melhor[25]. 

Sen também entende que “com efeito, um dos principais pontos a favor da razãoé que ela nos ajuda a inspecionar a ideologia e as crenças cegas”[26]. Nessa perspectiva, determinados atos historicamente conhecidos como atentatórios ao bem-estar social, como aqueles realizados por Stalin, na União Soviética, e Pol Pot, no Camboja, foram desarrazoadas. Sen traz o exemplo de Akbar, imperador mongol da Índia, que “empenhou-se em um abrangente exame dos valores sociais e políticos e de práticas jurídicas e culturais”[27]em nome de uma busca pela razão como a forma de resolver problemas difíceis e possibilitar a construção de uma sociedade justa. Akbar foi responsável pelo laicismo que possibilitou diversidade e respeito religiosos, pelo fim de impostos discriminatórios e  da escravidão, que atentavam contra a igualdade entre os cidadãos. 

Sen defende também que até a emoção pode ser racionalizada, e que o “árbitro final das crenças éticas" deve ser a razão. Nem sempre é a argumentação racional que produz as melhores respostas, porém não podemos basear a justiça em exceções, apenas porque "um relógio parado acerta a hora duas vezes ao dia”.

O argumento a favor da análise arrazoada não depende de que esta seja uma via infalível para acertar (tal via não pode existir), mas de que seja tão objetiva quanto por razoavelmente possível. [...] O importante papel dado à argumentação racional neste trabalho diz respeito à necessidade de basear o pensamento sobre questões de justiça e injustiça em razões objetivas[28].

O que podemos observar é que Amartya Sen vincula suas ideias sobre à imparcialidade à razão e à argumentação racional, garantindo uma objetividade “moral e política”. Essa seria o maior significativo da razão em sua teoria da justiça, a imparcialidade, que será fundamental para a construção de alguns elementos, e que é baseada na proposta da razão objetiva. Nesse sentindo, “a argumentação pode estar envolvida com a maneira correta de ver e tratar as outras pessoas, outras culturas, outras reivindicações, e com a análise de diferentes fundamentos para o respeito e a tolerância”[29]e possibilitar que aprendamos com nossos erros para não cometê-los novamente no futuro. 

Nesse mesmo sentido, Sen dá bastante relevo à teoria da escolha social, a qual dedicou uma vida de estudos. Tendo como pioneiros Jean-Charles de Borba e o Marquês de Condorcet, a teoria da escolha social tinha com motivação principal “evitar a arbitrariedade e a instabilidade nos processos de escolha social”[30], por meio da construção de uma estrutura que levasse em consideração os interesses de todos os membros de um grupo social. Os resultados iniciais não foram positivos, uma vez detectada grande instabilidade na "maioria". Por volta de 1950, Kenneth Arrow, preocupado com a instabilidade da escolha social, desenvolveu-a com axiomas que exigiam das decisões sociais "condições mínimas de razoabilidade". O resultado, no entanto, não se tornou positivo, tendo dado origem ao teoria da impossibilidade de Arrow, demonstrando que as exigências mínimas não levavam a um desfecho esperado. A teoria tornou-se, portanto, extremamente matemática e afastada de situações de interesse imediato e, com isso, afastada também das teorias da justiça mais proeminentes.

Sen questiona esse afastamento pois, para ele, a teoria da escolha social possui diversos elementos que podem ser aproveitados em uma teoria da justiça. Certamente ele basearia sua ideia de justiça na escolha social, uma vez ter passado a maior parte de sua vida acadêmica desenvolvendo estudos nessa área. Ainda, seu conhecimento matemático, adquirido pelo viés dos estudos em Economia, lhe permite, com mais facilidade, compreender os complexos e rigorosos esquemas previstos para a teoria da escolha social. Nesse sentido, Sen levanta como importantes para a teoria da justiça i) o foco nas comparações, não apenas no transcendental; ii) o reconhecimento da pluralidade de princípios concorrentes; iii) a possibilidade de facilidade do reexame; iv) a possibilidade de soluções parciais; v) a possibilidade da diversidade de interpretações; e vi) a ênfase na argumentação e a especificação do papel da argumentação pública.

Como já exaustivamente apresentado, Amartya Sen prefere uma abordagem comparativa à transcendental da justiça, pois não acredita na possibilidade das instituições perfeitamente justas na fórmula como os transcendentalistas as delineiam. Ele também não consegue vislumbrar uma justiça que não leve em consideração a pluralidade de princípios, em razão da diversidade existente dentro de uma mesma sociedade. A teoria da escolha social reconhece a pluralidade de razões e confere a todas atenção especial para questões de justiça social. Outro fator em favor da teoria da escolha social está na abertura de espaço para a reavaliação, também reconhecida por Sen como essencial à ideia de justiça. Considerando que a escolha social jádemonstrou que escolhas inicialmente plausíveis podem se tornar impossíveis ou problemáticas, ela já teria previsto formas elementares de revisar seus próprios resultados. Quanto à parcialidade das soluções, a escolha social possibilita que "uma teoria completa de justiça produza ordenações incompletas de justiça”[31]. Essa mesma dinâmica complexa da escolha social que a permite buscar juízos globais com base em perspectivas diferentes, o que é essencialmente válido para uma teoria da justiça na visão de Amartya Sen. 

Considerando o valor que Sen atribuiu à argumentação racional, ele certamente releva o fato de que a escolha social enfatiza explicações claras e precisas sobre  seus axiomas e significados. Mesmo reconhecendo a complexidade dos valores humanos, Sen[32]sugere que a teoria da escolha social pode facilitar a sua compreensão, bem como relevar o papel da argumentação pública. 

A racionalidade, para Sen, não pode ser encarada como a simples maximização daquilo que uma pessoa pode fazer, como frequentemente acontece na economia. Contextualizando, a racionalidade das escolhas reais das pessoas não podem ser compreendidas se consideradas como um exercício de maximização[33]. Nesse aspecto, a teoria da escolha racional conecta-se com a maximização do autointeresse, o que levou parte da literatura a considerar a escolha racional como a promoção desenfreada do autointeresse, ou seja, em busca do benefício próprio, apenas. Sen discorda dessa percepção, entendendo que ela é uma visão “marcadamente redutiva da racionalidade humana”[34], e também discorda da perspectiva de que toda pessoa racional deva ser egoísta e individualista. 

Assim, Sen discorre sobre a simpatia e o compromisso como fio condutores da ação das pessoas sensíveis às outras. Define simpatia como o ato de afetar-se pela situação do outro e compromisso como o afastamento da ligação entre busca do bem-estar individual e escolha da ação que será realizada. Nesse sentido, é compromissada uma pessoa que escolhe fazer algo por outras, mesmo que isso não contribua em nada para seu próprio bem-estar. Sen (2011, pos. 3965) explica que a simpatia é compatível com o autointeresse, o compromisso, não. Nesse momento, Sen faz uma análise sobre a perseguição do bem-estar individual e do bem-estar dos outros, justificando que somos capazes de ajudar o próximo sem tentar interferir os objetivos de vida por eles traçados. Isso significa que somos capazes de aceitar que há pessoas com diferentes objetivos e que sabem viver a própria vida sem necessidade da nossa intervenção, com o que achamos ou não achamos melhor para eles. Isso não seria, de nenhuma maneira, uma violação da racionalidade.

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Sen também dá particular importância à imparcialidade em sua análise sobre a justiça. As teorias contratualistas teriam problemas que restringiriam os acordos originais a determinados grupos específicos e, no máximo, a um povo (na concepção que Rawls emprega em sua teoria da justiça como equidade), com exclusão de outras pessoas que não convivam na mesma comunidade que elaborará o acordo. Coadunando com o pensamento da feminista Mary Wollstonecraft[35], Sen afirma que a filosofia política exige que “todas as pessoas sejam vistas como moral e politicamente relevantes”[36]. Assim, “a universalidade da inclusão do tipo que Wollstonecraft exige é, na verdade, uma parte essencial da imparcialidade”[37]. Nesse sentido, Sen criticava a limitação que as teorias contratualistas davam à imparcialidade, ou seja, consideravam apenas algumas pessoas na elaboração do acordo original, o que excluiria uma proposta de justiça global e outras pessoas que poderiam ser afetadas pelas decisões tomadas. 

O economista indiano trabalha com a perspectiva da imparcialidade fechada e aberta, que serviriam como diferença para as teorias contratualistas e a que formula. Partindo da proposta do espectador imparcial, Sen alerta que “o argumento smithiano não apenas admite, mas exige, a consideração das opiniões dos outros, que estão distantes e próximos”[38]. A visão de alteridade de Amartya Sen ainda o permite afirmar que não podemos limitar nossas obrigações acreditando que não devemos nada às pessoas, que fazemos o bem exclusivamente por virtude[39]. E é com essa análise que Sen levanta alguns problemas da teoria rawlsiana com a imparcialidade, quais sejam: i) a negligência na exclusão, pois a imparcialidade fechada exclui outros que não estejam envolvidos na comunidade que elaborou o contrato original; ii) a incoerência na inclusão, que reside na problemática de que os critérios de escolha dos membros que comporão o acordo original podem ser difíceis dentro de um mesmo grupo; e iii) o paroquialismo processual, uma vez que a preocupação com a imparcialidade refere-se exclusivamente aos interesses individuais de grupos menores, mas não se preocupa com a discriminação que pode resultar das deliberações do grupo focal.

A imparcialidade, para uma teoria da justiça que ultrapasse o contratualismo, precisa superar essas dificuldades e tornar-se aberta, inclusiva e sensível aos interesses do povo (como definido por Rawls) mas também de outras pessoas e comunidades, dando origem a verdadeiros princípios de justiça global. 

O papel libertador da imparcialidade aberta permite que diferentes tipos de perspectivas sem preconceitos e vieses sejam levados em conta e nos encoraja a nos beneficiar dos insights que vêm de espectadores imparciais diferentemente situados[40].

Buscando sustentar sua crítica, Sen delineia sobre a ilusão da situação posicional, e afirma que “o que podemos ver não é independente de onde estamos em relação ao que estamos tentando ver”[41]. Nesse sentido, podemos nos iludir com crenças que nos cegam em razão da posição que ocupamos, e essa ilusão tende a ser menos frequente quanto mais instruídos somos. “A busca de algum tipo de compreensão do mundo que seja independente da posição é fundamental para o esclarecimento ético que pode ser procurado em uma abordagem não relacional”[42]. Ele também defende, como Mary Wollstonecraft, um esclarecimento universalista, capaz de superar preconceitos e posicionamentos discriminatórios. 

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Sobre os autores
Tatiana Mareto Silva

Doutora em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV, Mestre em Políticas Públicas e Processo pela FDC/UNIFLU, Pós-graduada em Processo Civil pela FDV, Professora do Curso de Direito do Centro Universitário São Camilo-ES.

Aloisio Krohling

Aloísio Krohling é Pós-Doutor em Filosofia Política pela UFRJ e em Ciências Sociais pela PUC-SP. Doutor em Filosofia pelo Instituto Santo Anselmo em Roma, Itália em 1969, reconhecido como titulação de PH.D em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo, da qual é aposentado. Mestre em Teologia e Filosofia pela Universidade Gregoriana - Roma, Itália. Mestre em Sociologia Política pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Graduado em Filosofia pela Faculdade Anchieta - São Paulo. Graduação em Ciências Sociais pela Loyola University, Chicago, USA. Foi professor de Filosofia na PUC-SP e da Universidade Federal do Espírito Santo. A sua área de maior interesse é Filosofia Política, Sociologia Política, Teoria do Estado, Ciência Política, Direitos humanos e Segurança Pública, e Teoria Política. Foi professor por 15 anos do curso de Relações Internacionais da UVV das disciplinas de Ciência e Teoria Política e professor do Mestrado em Sociologia Política na UVV durante 04 anos, com a linha e pesquisa Estado e Sociedade. Foi professor de Filosofia do Direito do Mestrado e Doutorado em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Linha de pesquisa da FDV: Cidadania, Democracia e Direitos Humanos Fundamentais juntamente com J. M. Adeodato e Ricarlos Almagro, com registro no CNPQ, sublinha de pesquisa: múltiplo dialético na história do pensamento grego, ocidental e brasileiro aplicado à democracia brasileira e latinoamericana sob a perspectiva ética e intercultural dos direitos humanos fundamentais. Coordenador do Grupo de Pesquisa Biogepe: Políticas Públicas, direito à saúde e Bioética desde 2017. Professor colaborador da disciplina História do Direito e dos Direitos Humanos do curso de Direito da Faculdade Novo Milênio. Autor e coautor de livros sobre Direitos Humanos Fundamentais, Justiça e Libertação,Ética da alteridade e da Responsabilidade,Teoria do Estado, Filosofia do Direito, teoria política. Orienta várias teses de Mestrado e Doutorado em Direitos e Garantias Fundamentais na FDV e participou de bancas do Mestrado na FDV e na UFES em História Social, Relações Políticas, Direito e Ciências Sociais. Participou de vários seminários internacionais na área de Filosofia e Direitos Humanos e participou da Conferência Mundial de Direitos Humanos da ONU em Viena em 1993. O Professor Krohling atuou na área pedagógica e curricular como chefe de departamento e coordenações de curso na PUCSP e Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), onde também foi Diretor do Centro de Estudos Gerais da UFES e participou de vários colegiados universitários. Foi subsecretário da Secretaria de Educação do Espírito Santo. É assessor e consultor em projetos de pesquisa educacional. É membro Conselho editorial da editora Juruá, Curitiba, Paraná e revisor de livros e revistas. Foi avaliador do INEP, MEC. É membro do Conselho editorial da editora Juruá, Curitiba, Paraná e revisor de livros e revistas. O último livro foi publicado pela editora FI, Florianópolis: Ensaios filosóficos e Direitos Humanos: Modernidade, pós-modernidade e transmodernidade (link de acesso: https://www.editorafi.org/342ensaios).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo elaborado para a disciplina ministrada pelo Prof. Aloísio Krohling no Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória (FDV).

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