I – Conceito. Elementos formais
Chamavam-lhe os antigos libelo; dão-lhe hoje o nome de petição inicial. Na linguagem forense, é o “ato pelo qual o autor propõe, por escrito e articuladamente, a espécie da questão que se há de tratar em juízo”[1].
Assento de todo processo e, pois, sua parte mais difícil[2], deve ser a petição inicial elaborada com precisão e clareza, qualidades que a ciência da linguagem tem por principais em quem escreve. A clareza do escrever pressupõe a do pensar. Donde seguir-se que só aquele que se abalizou na arte do raciocínio (lógica) saberá claramente reduzir a escrito o seu pensamento.
Consiste a clareza em expressar o pensamento sem obscuridade. Para obtê-la, cumpre dar de mão a todo modo de “tecer o discurso que torne o sentido ambíguo e embaraçoso”[3], não se penetrando à prima vista o pensamento do escritor. Este atributo fundamental do estilo comparou-o Quintiliano não menos que ao Sol: o ponto está em que a clareza seja tal, que impressione ainda ao mais fraco entendimento, “bem como a luz do Sol se mete pelos olhos”[4]. A clareza ou perspicuidade da locução depende sobretudo da propriedade do termo, que é a fiel adequação das palavras às ideias que intentamos traduzir. Infringe a regra da propriedade do estilo forense, v.g., o advogado que emprega intimação por citação, interrogatório por inquirição de testemunha, despejo do locatário em vez de despejo do imóvel, etc.
Do libelo é outro requisito formal a precisão, cuja inobservância o anterior regime processual civil (art. 158, nº III) fulminava de inépcia. Tal sanção ainda consta do direito positivo[5]. Em seu obséquio, não se deve usar senão dos termos necessários à enunciação das ideias, arredados sempre os supérfluos.
II – Paragrafação
A fim de assegurar a clareza expositiva da petição, é recomendável que o advogado a articule, isto é, dê-lhe a forma de artigo ou item. Embora antes apropriada à natureza da petição inicial, a separação por períodos gramaticais convém igualmente aos requerimentos em geral, às alegações e às razões. Esta assaz preconizada técnica de redigir o discurso também se conhece por paragrafação. É a pedra angular de todo o arrazoado, porque, uma vez dispostas em parágrafos numerados, ficam as ideias mais inteligíveis, sobretudo se observada a ordem lógica do raciocínio dedutivo (introdução, desenvolvimento e conclusão).
III – Forma de tratamento do juiz
Ao dirigir-se ao juiz, o subscritor da petição empregará a fórmula de tratamento Vossa Excelência (que se abrevia V. Exa.). Como os pronomes de tratamento substituem a terceira pessoa gramatical, nesta é que deve ser flexionado o verbo[6]. Exemplo: Vossa Excelência fará (não “fareis”) justiça, absolvendo o réu. Também da fórmula meritíssimo (que tem muito mérito) pode-se usar em referência ao juiz[7]. Abreviadamente: MM.
A petição, lembra o insigne Pontes de Miranda, “há de ser escrita respeitosamente, atenta a prerrogativa da dignidade judiciária e das instituições”[8]. Repugna, assim, à gravidade inerente às coisas da justiça o emprego de palavras ou frases que denotem falta de decoro, desprimor de linguagem ou, o que fora muito de sentir e deplorar, incorram em a nota de doesto e convício. Daqui a razão por que o legislador processual civil lhes atalhou o curso, in verbis: “É defeso às partes e seus advogados empregar expressões injuriosas nos escritos apresentados no processo (…).”[9]
Suposto não constitua crime de injúria ou difamação a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pelo advogado, conforme dispõe o art. 142, nº I, do Código Penal, será sempre violação grave do código de urbanidade, cujos mandamentos a gente que se preza e respeita faz timbre de guardar.
IV – Tratamento devido ao adversário
Sem mentir à confiança do cliente que se encomendou a seu patrocínio, deve o advogado manter com o colega “ex adverso” relacionamento que evidencie, em tudo, respeito e consideração. (Não é para esquecer que natural espírito de solidariedade associa aqueles que pertencem à ínclita profissão; pelo que, haja sempre entre eles tratamento cordial). A pessoa do advogado é mister que fique abroquelada dos tiros que, no debate da causa, venha a desfechar-lhe a dialética veemente do antagonista. A questão agitada entre as partes perante o juiz não houvera jamais de extrapassar as raias do litígio e atingir seus patronos. É apenas um simulacro de guerra, não é uma guerra a em que se empenham no teatro forense. Os advogados, importa que levem a mira em fazer triunfar as próprias razões contra as do adversário, não em vencê-lo.
O trato afável, justamente encarecido entre os advogados, não haverá inibi-los, porém, de recorrer àquela que passa pela mais temível arma de combate no campo das ideias: a ironia. Desta figura de retórica disse tudo quem a definiu como “forma elegante de ser mau”[10].
Até os mais acabados modelos de caráter e fidalguia serviram-se dela quando se lhes ajeitou ensejo. Assim com Eurico Sodré, advogado polido e culto como os que mais o foram, não se correu de molhar na tinta da ironia sua pena, em certa demanda cujo ponto controverso eram os danos que, nos primórdios do século passado, causavam no calçamento das vias públicas paulistanas os bondes elétricos da Light (sua cliente), o que não sucedia ao tempo em que eram trazidos por animais (burros). Foi o caso que o advogado contrário lhe saíra, na petição de agravo, com esta pilhéria escarninha: que a Light havia recolhido “para o seu serviço interno, os muares que empregara em seus serviços externos”. E a coartada de Eurico veio, sobre irônica, demolidora: “Quanto ao aproveitamento dos muares que puxavam os bondes peremptos, pode a agravada afirmar, com ênfase e convicção, que a nenhum conservou em seu serviço e que, tendo-se desfeito deles, não curou de verificar as carreiras que seguiram (…)”[11]. Exemplo é também de impiedosa ironia a daquele representante do Ministério Público para com o grande criminalista italiano Henrique Ferri, num julgamento célebre: “Quando o doente recorre a um médico de fama é porque sente a saúde muito abalada!”[12]
V – Palavra, imagem da alma
Sendo verdade inelutável que toda obra revela seu autor, não permita o advogado que seus arrazoados forenses reflitam um caráter ignóbil e um coração empedernido. Para tanto, olhe que suas ideias sejam elevadas, o estilo circunspecto e a locução nobre e escorreita; não descaia em licença; tampouco afronte o pudor da gramática. Expunja do escrito as expressões contumeliosas, advertindo que “a injúria é sempre um mau argumento”[13].
Em tudo o que escrever, diligencie por alcançar padrão profissional tão lisonjeiro e eminente, que lhe quadre este soberbo e acaso inexcedível louvor de um espírito de escol, que foi Laudo de Camargo, Ministro do Supremo Tribunal Federal: “O nome de certos advogados debaixo de uma petição é meia prova feita do que está pedindo”[14].
VI – Da concisão e da brevidade
Outra qualidade essencial, de que não poderá carecer o arrazoado forense, é a concisão. Último grau da arte de bem escrever, consiste em dizer muito em pouco. Da rara estima que dela fazem os autores de nomeada, para logo se mostra nisto de havê-la um engenho feliz apelidado “alma do espírito”[15].
A consequência da concisão é a brevidade. O texto conciso por força que será breve. Com dizer muito em poucas palavras, o advogado, ou fale ou escreva, necessariamente não irá além da marca. Ao demais, atenderá, avisado, ao venerando preceito horaciano: “Esto brevis et placebis”[16].
Ficará ao prudente arbítrio do advogado, segundo lho reclame a importância ou a natureza do assunto, dilatar ou contrair as lindas de sua petição.
Os longos arrazoados jurídicos, bem que muito comuns outrora, não se podem hoje sofrer. É que a angústia do tempo retirou aos espíritos o ócio indispensável às extensas leituras. Além disso — e não há supor atrevimento onde só a verdade discreteia —, escrever alguém muito e prolixamente é aventurar-se a não ser lido sequer por aquele que, primeiro que julgue o réu, está na obrigação de ouvi-lo: o juiz da causa.
A razão disto no-la deu o clássico Manuel Bernardes: “Memoriais longos e compostos até a Deus desagradam”[17].
Notas
[1] Lourenço Trigo de Loureiro, Teoria do Processo, 1850, p. 91.
[2] Barão de Ramalho, Postilas de Prática, 1872, p. 86.
[3] Ernesto Carneiro Ribeiro, Serões Gramaticais, 1955, p. 797.
[4] Instituições Oratórias, 1790, t. II, p. 48; trad. Jerônimo Soares Barbosa.
[5] “Considera-se inepta a petição inicial quando da narração dos fatos não decorrer logicamente a conclusão” (art. 295, parág. único, nº II, do Cód. Proc. Civil).
[6] Cf. Napoleão Mendes de Almeida, Gramática Metódica da Língua Portuguesa, 29a. ed., p. 174.
[7] Vem aqui a talho de foice a lição de Eliasar Rosa: “Em meritíssimo (forma de tratamento reservada aos juízes) o grau superlativo comunica à forma de tratamento um acentuado teor de respeitabilidade, de reverência e, mesmo, de solenidade que deve cercar a pessoa do magistrado, em obséquio de suas funções. Evite-se o meretíssimo de certas petições. E, muito mais, evitem-se o meretríssimo e o meritríssimo dos leigos” (Os Cem Erros mais Comuns nas Petições, 1a. ed., p. 54). Advogado houve que, num petitório, chamou de meritríssimo o juiz. Ao que este despachou: “O requerente trocou o repetido tratamento vestibular por um prostibular. Volte-lhe portanto o processo, para que nele fale com o acatamento que se deve a um juiz e com o respeito devido à nobre profissão dos advogados” (Fernando Caldeira de Andrada, O Pitoresco na Advocacia, 1a. ed., p. 178).
[8] Teoria e Prática do “Habeas Corpus”, 1961, p. 409.
[9] Art. 15 do Código de Processo Civil.
[10] Berilo Neves; apud Folco Masucci, Dicionário Humorístico, 2a. ed., p. 134. Igualmente faz ao propósito aquilo do discreto Francisco Manuel de Melo: “O mais terrível artifício que inventou a malícia é ofender com louvores” (Apólogos Dialogais, 1920, p. 82).
[11] Cf. Revista da Academia Paulista de Direito, 1973, nº 2, p. 18.
[12] Henrique Ferri, Discursos de Defesa, 5a. ed., p. 10; trad. Fernando de Miranda.
[13] Eliézer Rosa, Novo Dicionário de Processo Civil, 1986, p. 46.
[14] Idem, A Voz da Toga, 1983.
[15] William Shakespeare, Hamlet, ato II, cena II; trad. Carlos Alberto Nunes.
[16] Arte Poética, v. 355. Em vulgar: Sê breve e agradarás.
[17] Nova Floresta, 1726, t. IV, p. 420.