A coexistência, no mundo atual, de inúmeros Estados soberanos enseja, muitas vezes, o surgimento de acordos (tratados) internacionais sobre as mais variadas matérias, inclusive tributárias. Geralmente, esses tratados internacionais de conteúdo tributário estabelecem limites em que estes Estados poderão tributar sem que surjam conflitos fiscais e situações de injustiça para os contribuintes. Os tratados internacionais podem, inclusive, estipular isenções tributárias.
É de conhecimento geral, que a União celebra tratados internacionais versando sobre tributos e relações decorrentes destes. Na grande maioria, estes tratados têm por objeto impostos sobre a renda, disciplinando, em especial, sobre a eliminação ou atenuação da bitributação da renda auferida por pessoas físicas ou jurídicas. Alguns destes ajustes, porém, acabam por alcançar tributos de competência estadual, distrital ou municipal.
Assim, este trabalho discorrerá sobre a possibilidade da União conceder isenções referentes a tributos estaduais, distritais ou municipais, em tratados internacionais.
O artigo 96, do CTN, prevê que "a legislação tributária compreende as leis, os tratados e as convenções internacionais, os decretos e as normas complementares, que versem, no todo ou em parte, sobre tributos e relações jurídicas a eles pertinentes".
Destarte, integram a legislação tributária nacional, quaisquer tratados internacionais que versam sobre matéria tributária. São considerados, então, como fontes do Direito Tributário, quando tiverem conteúdo específico ligado à competência fiscal dos respectivos Estados signatários e adquira eficácia interna, na forma determinada pelo ordenamento jurídico. Mas, em que consiste um tratado internacional?
Nos ensinamentos do autor Roque Antonio Carrazza, Curso de Direito Constitucional Tributário, 19º edição, malheiros editores, pág.: 203:
"O tratado internacional, na conceituação clássica de Lafayette Rodrigues Pereira, é o "consentimento recíproco de duas ou mais nações para constituir, regular, modificar, alterar ou extinguir um vínculo de direito". Mais conciso, Clóvis Beviláqua considera-o "um ato jurídico, em que dois ou mais Estados concordam sobre a criação, modificação ou extinção de um direito".
É por meio dos tratados internacionais que duas ou mais pessoas de direito público internacional (Estados soberanos, organizações internacionais, Santa Sé etc.) manifestam formalmente suas vontades, com o fito de produzir efeitos jurídicos, bem assim impor conduta única para o atendimento de pontos de interesse comum. Os tratados internacionais podem, pois, ser bilaterais ou multilaterais (coletivos), conforme envolvam duas ou mais parte contratantes."
Ressalte-se ainda que, os tratados internacionais ocupam relevante posição no Direito Tributário Brasileiro, haja vista que conforme preceitua o art. 98 do CTN, "os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna e serão observados pela que lhes sobrevenha".
Dessa forma, o art. 98 do CTN expressa claramente a hierarquia do tratado internacional em face da legislação tributária interna antecedente ou superveniente. Ou seja, o tratado prevalece sobre o direito interno, alterando a lei anterior, mas, a princípio, não poderia ser alterado por lei superveniente.
Feita essas breves considerações, passemos a discorrer sobre o tema central do trabalho, qual seja se pode a União, por meio de tratados internacionais, dispor sobre tributos estaduais, distritais e municipais.
Com advento da Constituição da República de 1988, que proibiu expressamente à União de conceder isenções de tributos estaduais, distritais e municipais (art. 151, III, CF), algumas posições doutrinárias se pronunciaram no sentido de que os efeitos dos atos internacionais (por serem celebrados por órgãos da União) deveriam limitar-se, tão somente, aos tributos federais.
Segundo, Carrazza, na obra já acima citada, pág 775:
"Nesse sentido temos que receber com cautela o art. 7º do Tratado de assunção, mas conhecido com Tratado do Mercosul – Mercado Comum do Sul, quando estabelece que, em matéria de impostos, taxas e outros gravames internos, os produtos originários do Estado-parte gozarão, nos outros Estados-partes, do mesmo tratamento que se aplique ao produto nacional.
Não temos dúvidas em proclamar que, em relação aos tributos federais, é inegável que existem isenções entre produtos que circulam do Brasil para a Argentina, para o Uruguai e para o Paraguai (demais países signatários do predito Tratado, celebrado em 26 de março de 1991).
Mas, em relação aos tributos estaduais, municipais e distritais continuamos entendendo, data venia, que tais isenções não valem. Os Estados-membros, os Municípios e o Distrito Federal, em que pese aos elevados objetivos deste Tratado, não estão obrigados a respeitar o que, neste ponto, foi pactuado pela União e referendado pelo Congresso Nacional."
Ocorre que, posições contrárias a esse entendimento surgiram, ao argumento de que não é a União, enquanto ordem jurídica parcial central, que firma o tratado internacional, mas, sim, a República Federativa do Brasil, enquanto ordem jurídica global - o Estado Brasileiro.
Nos dizeres de José Afonso da Silva, em seu livro Curso de Direto Constitucional Positivo, 21ª edição, Malheiros editores, págs.: 100 a 101:
"No estado federal há que se distinguir soberania e autonomia e seus respectivos titulares. Houve muita discussão sobre a natureza jurídica do Estado Federal, mas, já está definido que o Estado Federal, o todo, como pessoa reconhecida pelo Direito Internacional, é o único titular da soberania, considerada poder supremo consistente na capacidade de autodeterminação. Os Estados federados são titulares tão-só de autonomia, compreendida como governo próprio dentro do círculo de competências traçadas pela Constituição Federal.
(...) Apresenta-se, pois, como um Estado que, embora aparecendo único nas relações internacionais, é constituído por Estados-membros dotados de autonomia, notadamente quanto ao exercício de capacidade normativa sobre matérias reservadas à sua competência."
Assim se pronuncia, a respeito do assunto, a professora Silvia Maria Benedetti Teixeira, em seu artigo Tratados Internacionais e a integração tributária no Mercosul, publicado no Juris Síntese nº 36 – julho/agosto de 2002:
"Para o direito internacional existe só um Estado – o Estado Brasileiro – que representa, no plano internacional, toda a República Federativa do Brasil. Para o direito interno, o Estado é a União, Estados, Distrito Federal e Municípios."
Como quem firma tratado é o Estado Brasileiro, que representa a federação brasileira – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios – no plano internacional e, não havendo restrições na Constituição Nacional á matéria sobre a qual verse o tratado, pode este disciplinar os tributos estaduais, distritais ou municipais, bem como conceder desonerações tributárias.
A vedação constitucional contida no art. 151, inciso 111 está referindo à União como ente de direito público interno, no contexto de uma República Federativa, formada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, que possuem perfeitamente delimitadas as respectivas competências na Constituição Federa. Assim a possibilidade dos tratados internacionais disciplinarem matéria tributária não fere o disposto na Constituição Federal, da mesma forma, o art. 98 do Código Tributário Nacional, não está em desacordo com a Constituição Federal."
Note-se que ambas as posições doutrinárias, mesmo que divergentes sobre o assunto, possuem coerência e um ótimo respaldo jurídico. Todavia, na hora que se atenta para aplicação prática desses posicionamentos no dia-a-dia da Administração Pública, confronta-se com algumas inconsistências deles decorrentes.
Com a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal, o ente federado não pode mais encarar a competência tributante como uma faculdade, e, sim, com uma obrigação. O art. da LRF, determina claramente que o ente federado possui a obrigação de instituir e de arrecadar os tributos da sua competência. Em outras palavras, o ente está obrigado a instituir por lei os tributos da sua competência originária e, a posteriore, proceder a sua efetiva arrecadação.
Ressalte-se ainda, que o administrador público poderá incorrer em crime de improbidade administrativa, se for negligente na arrecadação dos tributos.
Outra observação importante é que as isenções são consideradas, para efeito da LRF, renúncia de receita, devendo ser tomadas pela Administração às medidas previstas no art. 14 do referido diploma legal. In verbis:
Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições:
I - demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do artigo 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;
II - estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.
§ 1º A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.
§ 2º Se o ato de concessão ou ampliação do incentivo ou benefício de que trata o caput deste artigo decorrer da condição contida no inciso II, o benefício só entrará em vigor quando implementadas as medidas referidas no mencionado inciso.
§ 3º O disposto neste artigo não se aplica:
I - às alterações das alíquotas dos impostos previstos nos incisos I, II, IV e V do artigo 153 da Constituição, na forma do seu § 1º;
II - ao cancelamento de débito cujo montante seja inferior ao dos respectivos custos de cobrança.
Assim ensinam, os autores Flávio C. Toledo Jr. e Sérgio Ciquera Rossi, sobre renúncia de receita, em sua obra Lei de Responsabilidade Fiscal, 1ª edição, editora NDJ, págs. 85 e 86:
"Enunciam-se no § 1º os tipos de renúncia de receita que se devem preceder por medidas de cautela fiscal. É o caso da anistia, remissão, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral e redução discriminada de alíquotas e da base de cálculo.
Com advento do novo direito financeiro, todas essas desistências fiscais demandam não apenas previsão na LDO e em lei específica autorizativa; solicitam mais: no interesse da disciplina fiscal, precisam atender às condições que se seguem:
_ estimativa do impacto orçamentário financeiro da renúncia fiscal, durante três exercícios financeiros;
_declaração de que a renúncia não afeta as metas fiscais da LDO; e/ou
_ aumento compensatório de tributo diretamente arrecadado pelo Município."
Daí, surgem as seguintes questões:
-como poderá a União conceder isenções de tributos estaduais e municipais, em tratados internacionais, sendo que o Estado e o Município são obrigados a tomar essas medidas prévias concernentes à renúncia de receita, antes de conceder isenções tributárias? Os tratados internacionais, de natureza tributária, poderão ferir um dispositivo de lei complementar que verse sobre outra matéria?
- como ficará a situação destes entes que terão uma baixa na sua arrecadação, sem a devida previsão do impacto nas suas finanças? Como o ente poderá tomar as medidas de compensação, tendo vista que ao instituir ou aumentar um tributo, somente poderá cobra-los no exercício subseqüente (princípio da anterioridade)?
O próprio Supremo considerou que o tratado internacionaltem força de lei ordinária, não podendo em hipótese alguma contrariar disposição constitucional ou dispositivo de Lei Complementar, tal como a Lei de Responsabilidade Fiscal. Nesse sentido, tem-se a seguinte jurisprudência:
27195772 – HABEAS CORPUS – PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL – TRATADO INTERNACIONAL – PREVALÊNCIA DA NORMA CONSTITUCIONAL – REGULARIDADE – A despeito da r. posição do ilustre desembargador plantonista, entende-se que o tratado internacional ratificado pelo Brasil tem força de Lei ordinária e, portanto, não poderia prevalecer sobre dispositivo constitucional expresso, que permite, em nosso país, a prisão civil do depositário infiel. A rigor, poder-se-ia dizer, ao reverso, que inconstitucional seria a adesão à norma alienígena incompatível com nossa Constituição. Por outro lado, aqui se verifica a legalidade do decreto de prisão, não configurada qualquer irregularidade que viesse a comprometê-la. Ordem denegada, revogando-se a liminar. (TJRS – HC 70004067344 – 10ª C.Cív. – Rel. Des. Luiz Ary Vessini de Lima – J. 27.06.2002)
Como se não bastasse a questão que envolve a hierarquia das leis, considerado o status de Lei Ordinária atribuído ao Tratado Internacional, deve-se, ainda, discutir sobre a questão que envolve a estruturação da República Federativa do Brasil.
Dispõe nossa Lei Maior, em seu art. 1° que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal. Com a promulgação da Carta de 1988, os Municípios foram erigidos à categoria de entes federados, dotados, pois, de autonomia no que concerne aos Estados e à União.
Por outro lado, sabe-se que os Tratados Internacionais, para que possam surtir seus efeitos, dependem do referendo do Congresso Nacional (CF, art. 84, VIII).
O Congresso Nacional, por seu turno, na forma do que dispõem os artigos 44, 45 e 46, da Constituição Federal se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, cuja composição admite, apenas, representantes dos Estados, dos Territórios e do Distrito Federal, ou seja, sem representação dos Municípios.
Logo, a vontade formada pela manifestação do Congresso Nacional subtrai aos Municípios qualquer possibilidade de insurgência contra tratados internacionais que sejam contrários aos seus interesses, fazendo surgir a figura da autonomia subordinada, banida de nosso ordenamento pátrio com a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Admitir que os tratados internacionais, referendados pelo Congresso Nacional, possam impor benefícios tributários sobre tributos de competência municipal corresponde a indiscutível quebra do pacto federativo, face à ausência de manifestação dos municípios sobre o assunto, sem falar na ofensa ao princípio da segurança jurídica, princípio este que decorre do próprio conceito de Estado de Direito, exigindo maior estabilidade das situações jurídicas.
Assim, considerando todas as argumentações aqui expendidas, em que pese a divergência doutrinária existente sobre o assunto, este estudo filia-se à corrente segundo a qual os Municípios não estariam obrigados a acatar aquilo que fora pactuado pela União em Tratado Internacional quando referido pacto representar a concessão de benefícios tributários cuja competência está expressamente atribuída aos Municípios. E as razões para tal filiação são várias:
a)a Constituição Federal, em seu art. 151, III, ao disciplinar acerca da proibição da União conceder isenção de tributos de competência dos Estados e dos Municípios, por certo, tem por objetivo coibir a renúncia fiscal por outro ente que não o próprio titular da competência tributária. Sabe-se, mais, que a República Federativa do Brasil não se manifesta por si só, fazendo-o por intermédio da União. Desta forma, os pactos firmados em nível internacional o são pela União, e não pela abstrata República Federativa do Brasil;
b)um dos sustentáculos de nossa Constituição Federal, em termos de organização do Estado, é a autonomia atribuída aos Municípios, surgindo, em virtude de referida autonomia, um pacto federativo que há de ser respeitado pela União, mesmo que esta pretenda, em determinados momentos, travestir-se em República Federativa do Brasil. Para que pudéssemos entender que o pacto (tratado internacional) fora firmado pela República Federativa do Brasil, necessário seria a participação da representatividade de todos os entes federados, sendo certo que o referendo ocorre por representantes apenas dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, sem qualquer manifestação de vontade dos Municípios;
c)faz-se necessário estabelecer o mínimo de segurança jurídica aos governantes municipais, em respeito a tal autonomia que a própria Constituição Federal assegura aos Municípios. Não podem estes ser pegos de surpresa por medidas envidadas pelo Governo Federal, suprimindo-lhes a capacidade arrecadadora;
d)finalmente, com o advento da Lei de Responsabilidade Fiscal, mesmo aqueles que defendiam a imposição dos Tratados Internacionais, em matéria tributária, aos Municípios, devem rever seus posicionamentos. Vivemos em uma era cuja legislação preconiza a responsabilidade fiscal, buscando-se, em tempo integral, o equilíbrio orçamentário-financeiro e a diminuição da dívida pública interna. Os Municípios são severamente fiscalizados e punidos quando, atualmente, não assumem medidas saneadoras que visem a obtenção de referido equilíbrio. Impor a observância de referidos tratados aos Municípios corresponde à completa subversão da norma interna, permitindo que a União venha a interferir de forma prejudicial em todo o planejamento municipal, impondo a diminuição das receitas (que já são escassas) públicas municipais.
Bibliografia
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BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 638/644.
RIBEIRO, Maria de Fátima. Comentários ao Código Tributário Nacional. 1ª ed. Rio de Janeiro; Forense, 1997, p. 204/205.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 23ª edição. São Paulo; Malheiros, 2003, p. 88 a 89.