No Brasil, quando se fala em crédito é comum a adição do adjetivo "público". Significa que o crédito tem interesse público, e isso não se contesta, na medida em que se entenda público em sentido amplo.
A questão não é substantiva, é adjetiva. Público é o crédito no sentido de que interessa à sociedade civil, enquanto elemento da reprodução das relações socioeconômicas levadas a efeito pelo universo empresarial. Não se trata do equivocado uso do adjetivo "público", na acepção que o vincula ao aparato estatal, distorção que, no Brasil, desde a Proclamação da República, contribui para enroscar o desenvolvimento da vida econômica nos tentáculos de um Estado obeso e impermeável.
O crédito é público porque é um instrumento de mobilização de pessoas, coisas e valores que, imbricados pela teleologia de uma vida melhor para todos, tem condições de implementar uma convivência mais saudável entre o capital e o trabalho. Em princípio, não se trata de crédito público só porque se insere no espectro de interesses do Estado. Se, de fato, isso acaba acontecendo, debite-se o fenômeno ao encargo mediador que o Estado anuncia e deveria desempenhar.
Não é novidade que o papel do Estado passou por significativas transformações, no decorrer do século XX, de modo que, hoje, o antes imperativo e altaneiro "mal necessário" se vê na contingência de assumir as funções de mero coordenador da sociedade civil e, por conseguinte, das relações socioeconômicas. A persecução do bem comum tem como certo que este não é um ideal ou uma aspiração que se perfaz por virtude de incisos e parágrafos, mas pelo provimento concreto de expectativas. E nesse desiderato, o Estado pode e deve contribuir, sob os parâmetros legais vigentes.
Afinal, por que essas considerações são pertinentes com a nova Lei de Recuperações e Falência de Empresas (LRE)?
Pelo que foi dito e muito que se poderia escrever, a legislação concursal brasileira de 1945 ainda está amarrada à Economia orientada pelo Estado "paizinho" da primeira República e ao sabor dos diversos "ismos" que o ornamentaram. Em outras palavras, a chamada Lei de Falências e Concordatas traduz uma intervenção pseudo-corretiva do Estado no domínio das relações empresariais, por meio do Direito, com perfil nitidamente punitivo, desconstrutivo e alienado. Isso explica uma concordata sobre a qual ninguém concorda, um elenco de crimes falimentares revogado pela realidade e, o que é pior, um regramento falencial que transforma, morosamente, as empresas debilitadas em mausoléus de ativos abandonados, quando não dilapidados; credores titulares de pretensões insatisfeitas; devedores vilipendiados; empregados desempregados; e, enfim, haveres fiscais nem parcialmente solucionados. Faz-se justo o processo concursal só porque opera o nivelamento de todos mediante a perda de tudo. Todos ficam iguais em face da quebra: sem nada ou quase nada.
De outra parte, a concordata é o corredor da morte da empresa ou é o passe de mágica de grandes estelionatos econômico-financeiros, danificando o mercado, desmerecendo o crédito e promovendo expectativas de uma reestruturação negocial só prometida, enquanto redige o atestado de óbito da empresa, como unidade produtiva.
A LRE vem com o propósito de modificar essa escrita. No quadro de uma nova formatação econômica, sugere a devolução à esfera privada das pendências oriundas das relações creditícias inexitosas. Remete a terapêutica das sindromes de deficiência financeira das empresas para a órbita das próprias empresas, ensejando que as defesas do organismo empresarial mobilizem seus efetivos para debelar crises oriundas da má gestão, da má programação ou da falta de ambas. Sinaliza à inteligência empresarial e à participação dos credores nas decisões sobre o destino do empreendimento em crise, afastando o quanto possível a necessidade de subsídios estatais que não os estritamente ligados à chancela da oficialização. As soluções são negociadas pelos interessados tendo em vista o soerguimento da empresa em crise, na medida em que se evidencia como social e economicamente viável.
Sem dúvida, a LRE não é uma fada inusitada, porque sempre acaba incorporando um pouco do que já existia na LFC. É uma normação transitória e pedagógica. Transitória, no sentido de que será modificada pelas correções que sua própria vivência suscitar. Pedagógica porque, ao restituir ao segmento empresarial o deslinde de seus próprios "piripaques", transmite-lhe, ao mesmo tempo, a responsabilidade pelas opções decisórias que adotar.
Sai a concordata, agora apenas um dos "n" meios de recuperação empresarial, e abre-se espaço para a criatividade de credores e devedores. Se o objeto de toda atividade empresarial é a reprodução da empresa, como organização de interesses que afeta toda a sociedade civil, a preservação do crédito e da unidade produtiva são os horizontes que presidem a nova conjuntura. Os instrumentos de reestruturação previstos na LRE não integram um elenco exaustivo, mas, simplesmente enumerativo. Destrava-se, gradativamente, o procedimento recuperatório de suas algemas burocráticas, não com o fito de "deixar como está para ver como é que fica", mas almejando "ver como é que fica, sem deixar como está".
Qualquer leitura diferencial da LRE e da LFC deixa à calva a significativa redução do papel do Estado na solução das crises econômico-financeiras empresariais. É atenuada a intervenção judiciária, restrita à necessária homologação das recuperações extrajudiciais e condução das recuperações judiciais. Estas só se entremostram numa perspectiva que pressupõe a impossibilidade daquelas, proporcionando espaço para deslindes informais e acordanças que traduzem o que deveria ser, se é que outrora já não foi, a concordata preventiva.
O preventivo das recuperações está informado pela representação da sobrevida empresarial e sacrifica o idealismo retórico em benefício do critério de viabilidade. Previne-se o risco de exício empresarial do objeto viável. E viável não é só o que tem aptidão para permanecer, mas o que, permanecendo, tem condições de servir à estrutura social, ou seja, o que é necessário para o equilíbrio econômico da formação social brasileira. Viável deve ser a empresa, nem sempre seus administradores congênitos.
Há muito para se corrigir na LRE? A ordem classificatória dos créditos atende muito mais às prescrições dos organismos internacionais? Prefere-se os créditos com garantia real aos créditos fiscais? É relativamente duvidosa a justiça do "quantum" preferencial conferido aos créditos sociais?
Sem embargo do calibre de credenciadas críticas a vários aspectos da LRE, não é o momento de se atacá-la. Não parece atitude muito prudente, senão pouco inteligente, agredir uma tentativa de otimização tão reivindicada por empresários, economistas e juristas. Não se deve avalizar tudo, é claro, mas não se pode criticar tudo. As perguntas sobre suas virtudes e deficiências são ditadas, no plano formal, pelas inovações jurídicas que introduz e, materialmente, pelas incertezas alimentadas no bojo de um núcleo empresarial que sempre arcou com os caprichos do Estado onisciente e suas guinadas político-econômicas formalizadas em pacotes que, da noite para o dia, sacudiam qualquer esquema programático. As relações entre as empresas e o Estado brasileiro não autorizam que se cultive uma confiança recíproca irrestrita.
Muitos fatores devem ser levados em conta, antes de se arriscar quaisquer respostas às indagações sobre a nova lei concursal: a globalização em andamento, o fato de que o Brasil não pode perseverar isolado das atuais legislações concursais, uma reengenharia incontornável das regras de direito creditício, o emagrecimento compulsório do aparato administrativo do Estado, a reforma judiciária, as mudanças no direito trabalhista, a redefinição das prioridades tributárias, a necessidade de equalização entre o preço do crédito e os resultados de sua aplicação, e sobretudo, uma crescente tendência à superação da dicotomia capital-trabalho, processo em que a mediação estatal pode contribuir muito se partir do princípio que deve interferir não mais que o necessário, sempre por meio da lei, não por medidas provisórias.
A LRE não é uma poção miraculosa. Contudo é mais um ingrediente disponibilizado ao incansável laboratório das relações empresariais, permitindo que, em harmonia com outros sais e sob a manipulação de químicos conscientes, o mercado sofra menos o impacto das crises setoriais e as empresas se refaçam de sucessivos pesadelos alimentados pelo recrudescimento da insolvência, porque esta inflaciona o custo do crédito e semeia juros elevados, desemprego, economia de guerra, perda de qualidade, obsolescência instrumental, improvisação administrativa e, sobretudo, ineficácia social.
Pior que a insolvência é um regime jurídico de insolvência ultrapassado. Se a nova lei concursal contribuir para desembaraçar os procedimentos pertinentes às crises financeiras das empresas viáveis estará, no mínimo, restituindo à expressão "crédito público" seu verdadeiro significado, como pressuposto da previsibilidade empresarial, sem a qual nenhuma formação social se equilibra e nenhuma política econômica funciona.