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A supressão de previsão normativa de protesto como pressuposto do direito de ação do portador contra o primeiro endossante da duplicata

01/02/2001 às 00:00
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1. Para o correto entendimento desta exposição, é necessário que sejam consideradas três situações distintas que comumente ocorrem na prática comercial e acabam por chegar aos nossos tribunais, avolumando o número de processos que abarrotam as prateleiras do Poder Judiciário.

2. Primeiramente, consoante prática largamente disseminada em inúmeras praças de nosso País, com freqüência duas empresas se conluiam no sentido de obter dinheiro fácil e ilícito mediante o saque de duplicatas sem causa legítima, logo utilizados para obter dinheiro líquido, pela circulação quer mediante desconto bancário, quer mediante a caução desses títulos como garantia de empréstimo bancário, quer pelo endosso desse título a uma terceira pessoa. A seguir, a "compradora", sacada dos títulos, "devolve" as mercadorias, numa devolução tão simulada quanto o fora a própria venda e, alegando em juízo uma absurda "inexistência de causa" (absurda, pois tal causa existia quando do saque das duplicatas pela vendedora, visto que a compra e venda se aperfeiçoa com o consenso, cf. art. 191 do Código Comercial), obtém, com facilidade, a sustação do protesto de que o portador necessita para poder voltar-se regressivamente contra a sacadora-tomadora-endossante dos títulos.

O Poder Judiciário, ante o risco de dano na mora prestacional, e constatando a existência de distrato (devolução consensual) ou rescisão unilateral da compra e venda (devolução unilateral), não vê outra alternativa que não a de conceder a cautela liminar, a despeito de, muitas vezes, o Magistrado que a concede suspeitar que o Poder que nobremente representa está sendo dolosamente utilizado para a consecução de um fim ilícito, qual seja, o de engessar o exercício do direito do credor, sob a premência de ter de evitar o protesto, apresentado como um "dano irreparável", na iminência de ser sofrido por um dos parceiros conluiados.

Impondo a lei ao portador a imperiosa e inafastável necessidade de protestar o título, desse protesto intimando-se o sacado, para poder exercer seu direito cartular contra o sacador, que é obrigado regressivo, vê-se o portador na seguinte contingência: - alcançou ao endossante da duplicata determinado valor em moeda ou em mercadorias em troca do título de crédito sacado de combinação contra terceiro, o qual, logo a seguir, contra ele investe em juízo, onde, a pretexto de não querer sofrer prejuízo, enleia o credor nos aranhéis processuais que o impedem de prontamente exercer seu crédito contra o outro parceiro que, assim, logra obter um empréstimo sem garantias verdadeiras e sem pagamento durante dois ou três anos, tempo que o credor demora para desvencilhar-se das tais "ações declaratórias", - isso quando não vê seu direito substancial de crédito ferido de morte pela sentença final, e sempre tendo de pagar custas e honorários pelo "ilícito" consistente em ... ter praticado um ato que a lei lhe impõe como pressuposto para poder exercer um direito ...

E o juiz acaba por presenciar a utilização do processo, ou seja, a utilização da própria atividade jurisdicional, como injusto instrumento de perpetração desse dano.

Essa situação não pode perdurar. Ela encoraja a obtenção de dinheiro ilícito através do processo, e auxilia a congestionar o Poder Judiciário com causas desta natureza. É preciso agir para desestimular a redução da nobre atividade jurisdicional ao triste papel de instrumento posto a serviço de tão degradante finalidade.

3. Por segundo, tem-se a seguinte situação: após o saque de duplicata, decorrente de uma verdadeira compra e venda de mercadorias a prazo, o sacador-tomador endossa o título não aceito com a finalidade de mobilizar o seu crédito para realizar outros negócios. O terceiro portador de boa fé, na data do vencimento, procura a pessoa do sacado para que ele pague o valor mencionado no título. O sacado, porém, em resposta, afirma que o sacador não lhe entregou as mercadorias que deveria ter-lhe entregue, ou que estas possuíam defeitos e foram devolvidas, razão pela qual ele, o sacado, recusa-se a pagar o valor mencionado no título.

Ao portador não resta outra opção, por imperiosa determinação legal, que não a de apresentar o título a protesto para resguardar os direitos regressivos contra os endossantes e seus respectivos avalistas. Contudo, desse protesto é intimado o sacado, que, prontamente, propõe ação cautelar de sustação de protesto, com a finalidade de evitar o dano de incerta ou difícil reparação consistente nos nocivos efeitos que o protesto causa em sua aexistimatio publica. O juiz, munido do poder geral de cautela que o Código de Processo Civil lhe confere, defere o pedido liminar de sustação de protesto e, mais uma vez, tem o credor engessado o exercício de seu direito de crédito contra os devedores regressivos, que nada têm a ver com o sacado.

4. Por terceiro, freqüentemente ocorre o saque de duplicata decorrente de compra e venda de mercadorias a prazo; mercadorias, essas, que são entregues em perfeitas condições pelo sacador-tomador ao sacado. Essa duplicata, ainda não aceita, circula e vai parar em mãos de um terceiro portador de boa fé, que, no dia do vencimento, procura o sacado para que pague o valor mencionado no título. Entretanto, ao portador o sacado demonstra que não possui condições financeiras para saldar o título. Mais uma vez, ao portador não resta outra opção: se não apresenta o título para protesto, decairá do direito regressivo contra os endossantes e seus respectivos avalistas, e em suas mãos restará um título que não contém nenhuma obrigação. Assim, apresenta o portador o título a protesto, do qual é intimado o sacado, que, tempestivamente, propõe ação cautelar de sustação de protesto, argumentando que a lavratura do protesto lhe acarretará enormes danos ao seu já abalado crédito e, por conseqüência, se tirado o protesto, dificilmente poderá saldar a dívida documentada na duplicata e, também, outras que estão por vencer, de modo que terá de requerer sua auto-falência, ou aguardar que outro credor seu o faça. Ao juiz não resta outra opção senão determinar a sustação do protesto, face ao perigo na mora da prestação jurisdicional e a verossimilhança das alegações. Desse modo, outra vez, o portador tem o exercício de seu crédito imobilizado, pois, com o protesto sustado, não pode promover ação regressiva contra os endossantes e seus avalistas.

5. Assim, em qualquer das situações acima propostas, por um lado, a lei impõe ao portador a imperiosa necessidade de protestar, sob pena de não mais ter contra quem voltar-se regressivamente, ficando com um papel inútil nas mãos; por outro, a divulgação desse protesto acarreta um efeito não previsto pelo legislador, que é o de lesar o crédito do protestado.

Face a esses dois valores, ambos relevantes, a jurisprudência foi trilhando um seguro caminho evolutivo, sublimando cada vez mais suas decisões no sentido de poupar o sacado dos dissabores acarretados pelo protesto de que necessitava o portador para poder demandar os endossantes do título.

A jurisprudência moderna encontrou engenhosa solução ao impasse entre esses dois interesses conflitantes: passou a conceder o protesto, mas impedindo sua divulgação. O juiz, sem dúvida, dispõe desse poder. O moderno Código de Processo, que o muniu do poder cautelar geral na evitação de dano de difícil ou incerta reparação, faculta-lhe determinar ao oficial que lavre um instrumento de protesto, entregando-o ao portador para que, de posse desse instrumento, possa regularmente voltar-se contra o sacador-tomador-endossante. Mas determina-lhe, igualmente, que tal protesto não pode ser objeto de divulgação, a não ser a requerimento do próprio devedor, ou a mando do juiz. Exercido que seja o direito de regresso, cancela-se o protesto, que não deve atingir a quem não aceitou o título. No dizer de WALDEMAR FERREIRA, a não aceitação do título não é desdouro: é expressivo sinal da legítima repulsa do sacado em vincular-se cambiariamente, por não se entender devedor. Não deve ele sofrer os efeitos nocivos do protesto por não ter aceito. O portador, por outro lado, é credor de quantos houverem assinado no título, o que não é o caso do sacado, que nele não apôs seu aceite, mas é o caso, sem dúvida, do sacador-tomador, que o endossou ao portador, em troca de vantagem econômica, a qual se transformará em ilícito enriquecimento, se o portador contra ele não puder voltar-se.

Com soluções análogas, ou semelhantes, as mais altas cortes do País vêm ministrando essa equitativa justiça. É o quanto se ilustra pelo acórdão proferido pelo egrégio Superior Tribunal de Justiça, por sua colenda 3ª. Turma, no RE nº. 2.166-RS (90.1290-2), em 29.5.90, v.u., transcrito em Julgados, 79/323, de seguinte ementa: "Duplicata não aceita. Endosso. Protesto. Pedido de nulidade fundado em inadimplemento da obrigação assumida pelo sacador. A irregularidade na emissão da duplicata ou a inadimplência do emitente poderá ser utilmente argüida entre as partes originais. Endossado, entretanto, o título, cuja validade condiciona-se à observância dos requisitos de forma e não à regularidade do saque, poderá o endossatário exercer amplamente os direitos dele emergentes. No caso, o direito de regresso contra o endossante. Protesto. Direito de regresso. Juridicamente o protesto em nada afeta a posição do sacado que não aceitou. Entretanto, não podem ser ignoradas as enormes conseqüências que o comércio lhe empresta. Em atenção a isso, mantém-se o impedimento ao protesto, reconhecendo-se a inexistência da obrigação do sacado para com o emitente, mas ressalva-se, expressamente, o direito de regresso do endossatário." No caso, preferiu a Excelsa Corte sacrificar não propriamente a divulgação do protesto, mas o próprio protesto, impedindo sua lavratura, assegurado porém o direito de regresso.

6. Assim, para que possa o portador exercer seu direito de crédito contra aqueles que cambiariamente se obrigaram sem que esse exercício cause o dano difuso que o protesto acarreta na aura creditícia do protestado, é necessário que se movimente todo o aparato judiciário, para concluir com uma decisão que, de uma forma ou de outra, garante o direito regressivo do portador contra os endossantes, mas, ao mesmo tempo, assegura ao sacado a evitação do protesto ou de sua divulgação.

Essas soluções encontradas por nossos tribunais (seja garantir o direito de regresso evitando-se a lavratura do protesto, ou evitando a sua divulgação), conquanto realizem uma equitativa distribuição da Justiça, afastam, cada vez mais, a verdadeira natureza do ato público e solene que é o protesto.

Desde seu surgimento no medievo italiano e até nossos dias, pouco se modificou o protesto. Sua função é registrar, por quem tem fé pública, a recusa do aceite ou do pagamento pelo sacado, para que o portador possa, quando se voltar contra os coobrigados regressivos, comprovar que a pessoa por quem os endossantes haviam garantido tanto o pagamento como a aceitação do título havia se recusado a aceitar ou pagar. Por esse motivo é que deve o portador realizar o protesto em tempo hábil sob pena de decair do direito de regresso.

Contudo, a jurisprudência está cada vez mais a afastar essa principal função do protesto, qual seja, a de comprovar publicamente a recusa do sacado em efetuar o aceite ou pagamento, para torná-lo simplesmente o objeto de uma demanda que irá ser concluída de uma das maneiras acima elencadas, pois ou o protesto será tirado mas não será divulgado, ou não será tirado, e o portador poderá, mesmo assim, voltar-se regressivamente contra os endossantes.

Desse modo, o protesto, de ato público e solene de que depende o exercício do direito regressivo do portador contra os endossantes, passa a ser objeto de litígio de incontáveis demandas que tramitam no Poder Judiciário, que terão por desfecho decisão que garantirá o direito de regresso sem que se tire ou divulgue o protesto, ou seja, conserve-se a ação regressiva e ignore-se o protesto.

7. Na duplicata, a pessoa do sacador confunde-se com a do tomador e do primeiro endossante. Para instrumentalizar seu crédito decorrente de uma compra e venda a crédito, o vendedor (=sacador) saca uma duplicata contra o comprador (=sacado) em seu próprio favor (=tomador). Assim, o esquema do saque da duplicata se assemelha ao do saque da letra de câmbio sacada à própria ordem. Se a pessoa do sacador e a do tomador forem distintas, aquele, ao sacar a letra de câmbio, realiza promessa indireta ao tomador, pois ele garante ato de terceiro, ou seja, garante o aceite e o pagamento pelo sacado. É o que claramente estabelece o art. 9º., primeira alínea, da Lei Uniforme de Genebra: "O sacador é garante tanto da aceitação como do pagamento da letra". Mas isto tão-somente ocorre se a pessoa do sacador for distinta da pessoa do tomador. Contudo, na duplicata, isto jamais acontecerá, pois sempre a pessoa do sacador terá identidade com a do tomador. "O vendedor emitente da duplicata assume afinal uma posição correspondente ao sacador de uma letra de câmbio à sua própria ordem; o comprador assume posição correspondente à do sacado de uma letra de câmbio e, desde que reconheça a exatidão da duplicata, assume posição correspondente à de um aceitante. O vendedor mobiliza, portanto, o seu crédito, endossando a duplicata, o que pode fazer antes do reconhecimento desta" (Ensaios e pareceres, Túlio Ascarelli, Saraiva, São Paulo, 1.952, p. 35).

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Assim, do saque da duplicata não resulta obrigação nenhuma ao sacador, que não pode prometer para si e, portanto, obrigar-se consigo mesmo. "Note-se, portanto, que, quanto à duplicata, bem como quanto à letra de câmbio sacada à ordem do próprio sacador, não decorre da ‘declaração’ principal do título nenhuma obrigação" (op. cit., p. 35, nota 11). A doutrina cambiária brasileira parece-nos não ter atentado a esse fato de grande relevância no direito cambiário, tanto que o art. 15, § 1º., da Lei 5.474/68 faz menção ao exercício do direito de regresso contra o sacador.

8. A obrigação do sacador-tomador-primeiro endossante da duplicata decorre, em verdade, da declaração cambial de endosso que faz na qualidade de tomador do título e não na de sacador. "O endosso supõe a passagem da letra de câmbio a outras mãos, ainda quando seja o tomador o próprio sacador. É dele, como tomador, e não como sacador, que o título se afasta" (Letra de Câmbio, Pontes de Miranda, Liv. José Olympio Editora, Rio de Janeiro, p. 197, item n. 1). Assim, a obrigação do sacador-tomador-primeiro endossante advém da declaração cambial de endosso que faz na cártula enquanto tomador.

Na duplicata existem, basicamente, três declarações cambiais: a do saque, que somente a cria, mas não lhe incorpora obrigação alguma; a do endosso, que a faz circular por meio de sucessivas declarações que nela materializam obrigações regressivas; e a do aceite, que lhe incorpora a obrigação direta. Destas declarações, atualmente, é incomum que a duplicata receba a declaração do sacado aceitando, de modo que ela circula e incorpora somente as obrigações dos endossantes. Em verdade, o que se verifica na prática é que a duplicata, em sua vida circulatória, recebe tão-somente uma declaração de endosso, que é a realizada pelo sacador-tomador a um endossatário, que geralmente é uma instituição bancária ou um credor do sacador-tomador.

Assim, no vencimento, para conservar o direito de regresso que o portador tem contra os endossantes (que, via de regra, se resume a uma única obrigação), deve ele protestar o título. Desse protesto é intimado o sacado, que prontamente propõe ação de sustação de protesto, acompanhada por todas aquelas as ações declaratórias e anulatórias acima referidas. E assim, o Poder Judiciário acaba por ter de julgar milhares destas ações para conclui-las, em sua grande maioria, com a garantia do direito de regresso, mas evitando o protesto, ou sua divulgação.

9. Obvia-se todo esse longo percurso se for dispensado o portador de ter de tirar o protesto para acionar o sacador-tomador-primeiro endossante.

Assim, considerados os argumentos da presente exposição de motivos, propõe-se o seguinte projeto de lei que altera a redação do § 1º. do art. 15 da Lei nº. 5.474, de 18.7.68, e inclui o §3º. no art. 15 da Lei nº. 5.474, de 18.7.68:


PROJETO DE LEI

Dispõe sobre a supressão de previsão normativa de protesto como pressuposto do direito de ação do portador contra o primeiro endossante da duplicata, com a alteração da redação do §1º. do art. 15 e acrescenta nesse artigo o §3º., da Lei 5.474, 18.7.68:

Art. 1º. Suprime-se do parágrafo primeiro do art. 15 da Lei 5.474, 18.7.68, a redação da expressão "o sacador," que passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 15. .......:

§ 1º. Contra os endossantes e respectivos avalistas caberá o processo de execução referido neste artigo, quaisquer que sejam as formas e as condições do protesto.

"Art. 2º. Acrescenta-se ao art. 15 da Lei nº. 5.474, de 18.7.68, o parágrafo terceiro, que terá a redação que segue:

" Art. 15. .......:

§ 3º. O portador da duplicata não aceita tem ação contra o primeiro endossante independentemente da lavratura de protesto."

Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

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Sobre o autor
Cássio Machado Cavalli

Professor de Direito da Empresa e Pesquisador FGV DIREITO RIO

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALLI, Cássio Machado. A supressão de previsão normativa de protesto como pressuposto do direito de ação do portador contra o primeiro endossante da duplicata. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 49, 1 fev. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/748. Acesso em: 28 mar. 2024.

Mais informações

Proposta de alteração da lei das duplicatas, que obteve a segunda colocação no Concurso Ensaio Jurídico Des. Bonorino Butelli, promovido pela Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS). Publicado na Revista da AJURIS n.° 78.

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