5 O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE NOS TRIBUNAIS BRASILEIROS E A SUA APLICAÇÃO AOS CASOS DE ADOÇÃO À BRASILEIRA
Não dá para se falar em Direito sem falar em sociedade, visto que ambos estão intrinsecamente ligados e não se pode falar em sociedade sem se falar em família, uma vez que esta é a base daquela. É o pilar de sustentação que vêm sofrendo diversas e cada vez mais rápidas mudanças, de modo que os legisladores, juristas e operadores do Direito não podem ficar omissos as transformações que ocorrem no seio da sociedade, cabendo-lhes trabalhar em prol da oxigenação das normas, através de sua atualização e adequação ao comportamentos sociais em voga.
Para começar a entender o conceito de família para o Direito, vale trazer inicialmente o entendimento subjetivista de Maria Berenice Dias:
A sociedade só aceitava o conceito de família instituído sob uma base matrimonial, por isso o ordenamento jurídico brasileiro só dissertava sobre casamento, as relações de filiação e o parentesco. As relações extramatrimoniais só começaram a ingressar no ordenamento por jurisprudência. (DIAS, 2010, p. 33).
Os conservadores, que são muitos em nosso país, não conseguem enxergar com bons olhos as muitas transformações ocorridas na sociedade – ou a forma como a regramento como um todo vem agindo para dirimir conflitos legais persistentes, o que os faz propagar que o instituto familiar encontra-se em decadência, do que discorda veemente a digníssima Maria Berenice Dias:
A família, apesar do que muitos dizem, não está em decadência. Ao contrário, é o resultado das transformações sociais. Houve a repersonalização das relações familiares na busca do atendimento aos interesses mais valiosos das pessoas humanas: afeto, solidariedade, lealdade, confiança, respeito e amor. Ao Estado, inclusive nas suas funções legislativas e jurisdicionais, foi imposto o dever jurídico constitucional de implementar medidas necessárias e indispensáveis para a constituição e desenvolvimento das famílias. (DIAS, 2010, p. 33).
A família natural, instituída pela Igreja Católica, que consumou o casamento em instituição sacralizada e indissolúvel vem perdendo espaço nas mais recentes doutrinas e jurisprudência, até mesmo pela própria norma, por dois quesitos muito mais inquinados e apropriados à realidade: o afeto e a dignidade da pessoa humana.
Para Maria Helena Diniz:
Família no sentido amplíssimo seria aquela em que indivíduos estão ligados pelo vínculo da consanguinidade ou da afinidade. Já a acepção lato sensu do vocábulo refere-se àquela formada além dos cônjuges ou companheiros, e de seus filhos, abrange os parentes da linha reta ou colateral, bem como os afins (os parentes do outro cônjuge ou companheiro). Por fim, o sentido restrito restringe a família à comunidade formada pelos pais (matrimônio ou união estável) e a da filiação. (DINIZ, 2008, p. 9).
Ora, família é onde há amor, cuidado, lealdade, confiança, no seu aspecto mais significativo, um LAR: Lugar de Afeto e Respeito, expressão trazida por Maria Berenice Dias (2015, p. 29) e, mais uma vez, pertinente falar desse instituto pois a sua ressignificação permite, mediante os preceitos constitucionais, falar da possibilidade de se flexibilizar o instituto da adoção em casos de adoções à brasileira.
A partir dessa explanação, fica evidente a importância da afetividade e do afeto nas relações familiares da atualidade. É, pois, o princípio da afetividade o fundamento utilizado, ao lado dos princípios da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criança, para embasar a constitucionalidade das decisões que validam a adoção à brasileira.
Apesar de todo medo e insegurança que as famílias substitutas enfrentam, a jurisprudência pátria já está consolidada no sentido de garantir a possibilidade desse tipo de adoção, que apesar de ilegal, é sim válida, afinal, o ordenamento jurídico brasileiro não é composto apenas de leis, mas os princípios são também fontes a serem seguidas, e os já mencionados ao longo deste artigo servem de base para que os Tribunais de 2º grau e os Tribunais Superiores decidam de modo favorável a essa prática.
HABEAS CORPUS. ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. MEDIDA LIMINAR PROTETIVA DE ACOLHIMENTO DE CRIANÇA EM ABRIGO. GRAVE SUSPEITA DA PRÁTICA DE "ADOÇÃO À BRASILEIRA" EM DUAS OCASIÕES DISTINTAS. INDÍCIOS DE ADOÇÃO DE CRIANÇA MEDIANTE PAGAMENTO. AUSÊNCIA DE CONFIGURAÇÃO DE RELAÇÃO AFETIVA. GRAVIDEZ FALSA. INDUZIMENTO A ERRO. AMEAÇA GRAVE A OFICIAL DE JUSTIÇA. CIRCUNSTÂNCIAS NEGATIVAS. MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. ABRIGAMENTO. EXCEPCIONALIDADE. NÃO OCORRÊNCIA DE DECISÃO FLAGRANTEMENTE ILEGAL OU TERATOLÓGICA. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. 2. A jurisprudência desta eg. Corte Superior tem decidido que não é do melhor interesse da criança o acolhimento temporário em abrigo, quando não há evidente risco à sua integridade física e psíquica, com a preservação dos laços afetivos eventualmente configurados entre a família substituta e o adotado ilegalmente. Precedentes. (BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Terceira Turma. Data do julgamento: 05/12/2017. HC 418431/SP. Ministro Moura Ribeiro). (Brasil. Superior Tribunal De Justiça. Recurso De Habeas Corpus. Anulação De Registro De Nascimento. Habeas Corpus Nº 418.431 - SP (2017/0251482-4), Da 3ª Turma, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 05/12/2017).
Na mesma linha de entendimento estão sendo os julgados dos Tribunais inferiores, não condenando a tal prática “ilegal” de adoção, prezando sempre por, além do melhor interesse do menor, levando em consideração a criação do vínculo socioafetivo:
APELAÇÃO CÍVEL - DIREITO DE FAMÍLIA -APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE REGISTRO CIVIL. ADOÇÃO À BRASILEIRA E PATERNIDADE SOCIOAFETIVA CARACTERIZADAS. RECURSO IMPROVIDO. 1. O reconhecimento voluntário de paternidade, com ou sem dúvida por parte do reconhecente, é irrevogável e irretratável (arts.1609e 1610do Código Civil), somente podendo ser desconstituído mediante prova de que se deu mediante erro, dolo ou coação, vícios aptos a nulificar os atos jurídicos em geral. (AC Nº 70040743338, TJRS). 2. Caracterizadas a adoção à brasileira e a paternidade socioafetiva, o que impede a anulação do registro de nascimento da ré pelo pai registral, mantém-se a improcedência da ação. (BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PIAUÍ. Apelação Civil nº 201000010064408 PI 201000010064408. Relator Desembargador Brandão de Carvalho. Data do julgamento: 26/05/2015).
A maior finalidade do Estado é garantir, além do bem-estar social do menor, todos os demais direitos elencados no artigo 227, da Constituição Federal de 1988, valendo ressaltar o “direito à convivência familiar e comunitária, além de colocá-las a salvo de toda forma de negligência (...), crueldade e opressão”, o que não vem sendo priorizado pelas entidades responsáveis, haja vista que a atual Lei de Adoção não se mostrou eficaz para sanar os déficits existentes no instituto da adoção.
É em razão disso que Maria Berenice Dias, a maior referência utilizada ao longo deste trabalho, uma vez que dedica sua vida ao Direito das Famílias como nenhum outro o faz, tanto que, enquanto vice-presidente do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, junto à colegas juristas, criaram o intitulado “Anteprojeto do Estatuto da Adoção”, que não possui consonância com a Lei do Governo Federal (Lei Federal n.º 12.010/2009), como bem deixa evidenciado a advogada supracitada: “O [Anteprojeto] que está tramitando no Congresso não vai solucionar esses problemas [apontados na proposta do IBDFAM]. Portanto, não vejo em que isto poderia melhorar, até porque a [atual] Lei da Adoção é tão ruim, que não tem como ser consertada. Indispensável é que se faça uma nova norma”. (IBDFAM, 2017).
Transcorrida esta etapa, resta-se demonstrado como a jurisprudência tem buscado se adaptar a realidade dos fatos, afastando a ilicitude do ato, prezando pela legalidade e ansiando pela desburocratização a fim de melhor atender as necessidades dos que buscam o reconhecimento judicial deste vínculo familiar preexistente.
6 ANÁLISE DE CASO CONCRETO
Buscando proporcionar um melhor embasamento, pertinente é a apresentação de um caso concreto referente ao tema.
In casu, no ano de 2009, no estado do Rio Grande do Sul, a então apelante (genitora do menor), entregou, assinando, para tanto, um Termo de Compromisso Particular atestando a sua vontade em fazê-lo. Transcorridos 5 (cinco) anos do fato, demonstrou-se arrependida e tentou reaver a criança. Os então apelados (os pais socioafetivos), entraram na justiça com o pedido de adoção da criança, que se constituiria em adoção à brasileira.
Ainda que diante dos motivos alegados pela mãe biológica, quais sejam, de que sempre teve vontade de criar o filho, todavia, não possuía condições financeiras para tal, que havia sido pressionada durante o puerpério para entregar a criança e que esta deveria ser criada junto à irmã – que nasceu três anos depois – não foi sentenciado em seu favor pelo entendimento de que não cabia a desconstituição do laço que foi construindo ao longo dos cinco anos como bem demonstrará o trecho a seguir do julgado:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ADOÇÃO. MENOR QUE ESTÁ SOB A GUARDA FÁTICA DOS AUTORES DESDE O NASCIMENTO. ARREPENDIMENTO MATERNO. ADOÇÃO À BRASILEIRA. VÍNCULO AFETIVO CONSOLIDADO. MELHOR INTERESSE E PROTEÇÃO INTEGRAL À CRIANÇA. Não merece reparo a decisão que destituiu o poder familiar, e concedeu a adoção do menor, que convive com os autores desde tenra idade. Em que pese o arrependimento materno, o infante, atualmente com 5 anos de idade, está adaptado à família adotante, reconhece-os como pai e mãe, já consolidado o vínculo afetivo. Manutenção deste arranjo familiar, considerando o melhor interesse da criança. RECURSO DESPROVIDO. (BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70062283361. Relatora Liselena Schifino. Data do julgamento: 26/11/2014).
À criança foram providos todos os direitos decorrentes do poder familiar pelos pais socioafetivos, aquela está adaptada à família na qual foi inserida desde que veio ao mundo, reconhece-os como pai e mãe, e o vínculo afetivo se consolidou, logo, afastá-lo desse meio seria demasiado prejudicial, tornando o Estado falho na real busca da prestação jurisdicional no caso.
Vê-se que está consolidada, como já demonstrado anteriormente, nos diversos Tribunais, a prática da adoção à brasileira que, mesmo tida como ilegal, não é desclassificada como adoção e muito menos passível de punição quando se pode atestar a boa-fé voluntária do agente que pratica tal conduta e, principalmente, o melhor interesse do menor, que é o pilar de toda a discussão.
7 CONCLUSÃO
Explanando brevemente, mas tentando demonstrar os aspectos mais importantes da evolução legislativa do instituto da adoção, pôde-se perceber o quão remoto ele é, tendo relatos tão antigos quanto a humanidade conseguiu registrar. Desde a sua intensão grotesca, qual seja, a de ser uma alternativa somente quando não havia a possibilidade de conceber um filho naturalmente até quando, em Roma, começa a ganhar um conceito mais humanitário.
Ato contínuo, viu-se que no Brasil, embora a adoção já fosse sutilmente tratada pelo Código Civil de 1916 foi somente com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, mediante a abordagem humanista proporcionada pela Constituição Federal de 1988 que foi possível vislumbrar o instituto tomando forma para conseguir se aproximar do que é hoje. Antes, era gerado tão somente um mero parentesco civil entre adotando e adotado, não se prolongava à família extensa, tampouco se conseguia falar em igualdade entre filhos biológicos e adotivos.
As reais mudanças começaram a ser vislumbradas quando o Código Civil, projetando os fundamentos Constitucionais trazem significância para o princípio da afetividade que, como visto, não está expresso na legislação, e antes não era sequer pensado. A valorização do ser sobre o ter, o Novo Direito é baseado muito mais na afetividade – ao lado dos princípios da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criança – do que na estrita legalidade.
Podemos perceber que foi o princípio da afetividade que tornou possível a jurisprudência tratar de assuntos que antes pareciam mera utopia, como direitos homossexuais, reconhecimento da paternidade socioafetiva, reparação civil em decorrência do abandono afetivo. Todos eram temas muito distantes na realidade do século passado. O que não seria diferente para com a adoção à brasileira se não existisse o olhar mais humano para as tantas realidades sociais que temos conhecimento, que acabou fazendo surgir uma Constituição Federal tão rica em cidadania.
A concepção dos princípios se dá mediante as abstrações realizadas pelos intérpretes, a partir de normas, costumes, aspectos políticos, econômicos e sociais, doutrina e jurisprudência, ou seja, sua função é vital para a sociedade, logo, para o Direito. Trago isso para frisar que foram o afeto e o princípio da dignidade da pessoa humana que permitiram a repersonalização das relações famílias, que nada mais é do que a retirada da excessiva preocupação com os interesses patrimoniais que matizaram o direito de família tradicional por outros interesses de cunho pessoal ou humano, que é tipificado por nada menos que a afetividade, não deixando dúvidas quanto ao seu tão importante papel.
Embora trate de diversos pontos ao longo do trabalho, fica evidente que não poderia ser diferente uma vez que para tratar da significância de repensar a adoção, em particular a adoção à brasileira, foi preciso trazer todo esse contexto histórico da evolução legislativa do direito da família como um todo.
A adoção é, sem dúvidas, além da busca por satisfazer um desejo pessoal, qual seja, o de ser pai e/ou mãe, é, sobretudo, um ato honroso. Quando você coloca no campo de busca do Google (site de pesquisas) “a nobreza da adoção” todos os links vão te remeter a adoção à brasileira, isso em razão do debate que existe por ser considerada pelo Código Penal um crime, como já dissemos anteriormente, então, surge o questionamento: seria a adoção à brasileira um ato nobre ou ilegal?
Vimos que a jurisprudência vem concedendo o perdão judicial em razão da prática do ato, como também vem negando o direito que assistiria aos genitores ante circunstância diversa, com fundamentação no princípio do melhor interesse da criança e a constituição do vínculo afetivo com a família substituta, como bem demonstramos quando trouxemos no capítulo seis do presente trabalho e em outros momentos, diante do exposto, nota-se que a nobreza tem sobressaído perante a ilegalidade.
Mas é preciso ir mais adiante, ora, acontece que no curso dos julgamentos dos pedidos de adoção, a fim de respeitar o procedimento legal exigido hoje, diga-se de passagem, extremamente burocrático e moroso, os tribunais, por exemplo, retiram do convívio familiar aqueles que até mesmo já conviviam, mesmo que em posição “ilegal”, mantendo vínculo afetivo há meses ou anos. Isso não existe. O que se busca ao permitir a incidência do presente instituto está muito além de propiciar àquela família a satisfação do seu desejo de ampliar a prole, mas sim que aquelas crianças que tanto carecem de atenção possam viver em harmonia com pessoas que as queiram, que possam proporcionar-lhes uma boa educação, valores que os tornem seres humanos dignos, que consigam prosperar na vida. Quem melhor do que aqueles com quem já conviviam, que conseguia dar-lhes não só o já citado, mas também carinho, amor, atenção, cuidado?
É o clássico ditado popular de “pai é quem cria”. Ao longo da nossa vida buscamos por relações – em qualquer âmbito que seja – que nos somem, que acrescentem valores, façam bem, que nos façam prosperar. São as pessoas com quem mantemos vínculos de afeto, de cuidado que realmente significam algo para nós, que temos o instinto de proteger e nos fazem sentir em família. Não adianta o simples fator biológico existir para que possamos dizer que nos importamos, que queremos aquela pessoa presente em nossa vida.
A busca pela desburocratização nada mais é do que almejar um processo mais célere, que consiga garantir o respeito aos direitos inerentes aos menores, que quando haja a vontade, a convivência e o vínculo entre os pretendentes à adoção, que não seja encarado como um desleixo no procedimento ou levado a rigor pelo Código Penal, mas como um ato humano, que busca legalizar, com a maior presteza possível, o vínculo afetivo quando se reste demonstrado. A adoção precisa parar de ser tratada como uma última opção, pois, para estes pequenos largados à própria sorte por quem supostamente os deveria proteger, aquela é, talvez, a única alternativa de ser família.