Demarcação e desmarcação de terra indígena

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01/07/2019 às 16:22
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Terra indígena demarcada deve ser desmarcada quando perder esta característica. Um território indígena não o é ad eternum, a não ser enquanto a população ali existente puder ser comprovadamente atestada como indigena.

1. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

Terra indígena deve ser demarcada e, quando o caso, desmarcada ao perder esta característica. Um território indígena não o é ad eternum, a não ser enquanto a população ali existente puder ser comprovadamente atestada como indígena, pois na eventualidade desta desaparecer aquele segue o mesmo destino.

Com efeito, demarcar parte do território nacional, reservando-o ao uso exclusivo de uma determinada categoria de pessoas, a saber, indígenas, só se justifica quando estas podem assim ser qualificadas.

A qualificação deve seguir os preceitos impostos pelo Estatuto do Índio, que tutela o indígena enquanto mantido nesta condição.

O indígena faz jus à exclusividade de território para viver ali segundo sua cultura originária e tradição, preservando-a, o que decorre de preceito constitucional expresso (art.231/CF).

Assim, identificado o povo indígena e o território a que faz jus, é dever da União proceder à demarcação pertinente.

Se a demarcação se justifica em favor do indígena, não é menos certo que a desmarcação se impõe quando o povo, originariamente atendido, perder as características que de início lhes assegurou o território exclusivo.

A desmarcação, no caso, poderá ser total ou parcialmente realizada a depender da realidade fático-jurídico verificada.

Se a população indígena inicialmente beneficiada sofrer o processo, diga-se de passagem, comum aos povos, de extinção pura e simples, quer pela morte dos seus componentes, quer pela perda da identidade em face da assimilação de outra cultura (integração à comunhão nacional) ou mesmo migração, reduzindo-se drasticamente seu quantitativo, a área inicialmente reservada deverá, em termos de extensão, adequar-se ao novo contingente populacional.

De se ponderar que a mesma União que está obrigada a demarcar terra para o índio, também se obriga a desmarcá-la quando o indígena como tal deixar de existir ou diminuir no território que lhe foi reservado.

Afinal, se assim não ocorrer pode se chegar ao absurdo de uma terra demarcada manter-se reservada a uma determinada tribo que no tempo desapareceu, seja porque razão for, como a própria história já registrou tal fenômeno segundo relata o sítio da Funai[1]:

“Desde 1500 até a década de 1970 a população indígena brasileira decresceu acentuadamente e muitos povos foram extintos. O desaparecimento dos povos indígenas passou a ser visto como uma contingência histórica, algo a ser lamentado, porém inevitável. No entanto, este quadro começou a dar sinais de mudança nas últimas décadas do século passado. A partir de 1991, o IBGE incluiu os indígenas no censo demográfico nacional. O contingente de brasileiros que se considerava indígena cresceu 150% na década de 90. O ritmo de crescimento foi quase seis vezes maior que o da população em geral. O percentual de indígenas em relação à população total brasileira saltou de 0,2% em 1991 para 0,4% em 2000, totalizando 734 mil pessoas. Houve um aumento anual de 10,8% da população, a maior taxa de crescimento dentre todas as categorias, quando a média total de crescimento foi de 1,6%.” (gn)

Não é de somenos importância asseverar que o ato demarcatório não pode ser tido como ato sagrado e, como tal, imodificável, mesmo porque ele somente se justifica quando existe quem dele possa se beneficiar nos termos constitucionais assegurados, a saber, o índio.

Se o índio, como índio existe, demarque-se, mas se deixa de existir, desmarque-se.

2. SINGULARES AO ESTATUTO DO ÍNDIO

O Estatuto do Índio, a saber, a Lei 6.001/73, ao tempo em que se propõe a assegurar a preservação da cultura indígena, também objetiva integrar o silvícola à comunhão nacional, num processo que deve ser harmonioso, porém progressivo, nos termos em que está previsto no seu art. 1º[2].

O processo educacional do índio rumo à comunhão nacional é orientado para a efetiva integração do educando, o que deve nortear a ação da Autoridade competente, segundo sobressai claramente do art. 5º[3] do destacado Estatuto.

Estando na esfera de interesse do próprio Estatuto a integração do índio à comunhão nacional, o órgão federal que a tanto se presta deve laborar no sentido de traçar a política indigenista de modo a se mostrar eficaz nesse propósito, ao tempo em que respeitosamente trata o silvícola.

À medida que o índio é integrado à comunhão nacional, a assistência que o Estado lhe defere deixa de ser prestada, a qual somente é devida às comunidades indígenas não alcançadas pelo processo integrativo, conforme facilmente se observa do contido no inciso II do art. 2º do Estatuto[4].

O advérbio ainda empregado pelo legislador no dispositivo em questão induz ao entendimento de que a partir do momento em que a integração à comunhão nacional acontece, não há mais razão para que a assistência continue a ser prestada pelo Estado a alguém que, pressupõe-se, tem como gerir-se a si mesmo.

Se o Estado for diligente e cumprir o desiderato prescrito pelo Estatuto de integrar o índio à comunhão nacional, é possível prever que com o passar do tempo a população realmente indígena tenderá a diminuir em expressão numérica, ainda que muito de sua cultura possa ser preservada por aqueles que passaram a um novo status jurídico-social.

No entanto, uma coisa é cultura indígena e outra, bem diferente, o indígena propriamente dito, pois um índio que não esteja mais sob a tutela do Estatuto em face de sua integração à comunhão nacional pode muito bem preservar sua cultura originária naquilo que não está incompatível com a realidade que esteja experimentando na comunhão nacional.

É necessário, pois, atentar para tais questões visto que somente o índio, genuinamente índio, como tal reconhecido o silvícola que vive isolado, ou em vias de integração consoante previsto em Lei, e como tal posto sob a tutela do Estatuto, é que goza da proteção insculpida no art. 231 da Constituição Federal, relativamente ao direito de viver em terra demarcada.

É no art. 4º, respectivamente, nos seus incisos I e II[5] que o Estatuto define o índio isolado e o índio em vias de integração.

Referentemente aos índios integrados, consoante sobressai do inciso III do mesmo art. 4º[6], estes devem ser considerados como não-índios para os fins do Estatuto, passando ao regime jurídico de cidadão comum, com tratamento isonômico perante a lei, como é próprio de todo aquele que faz parte da comunhão nacional, o que salta aos olhos de sua leitura mais atenta.        

Se de modo diferente proceder o Estado dando ao índio integrado à comunhão nacional, leia-se, à sociedade civilizada, um privilégio maior do que aquele dispensado ao brasileiro que dela participa, notadamente assegurando-lhe direito à terra nos moldes previstos no art. 231 da Carta Magna, ou seja, exploração gratuita de suas riquezas, estar-se-á dispensando tratamento diverso a iguais, em afronta direta ao caput do art. 5º[7] da Constituição Federal, onde a igualdade de todos perante a lei é absoluta.

Deste modo se o Estado vem cumprindo seu dever de prestar educação ao índio para integrá-lo à comunhão nacional, conforme previsto no citado Estatuto, é de se se supor que passadas mais de 4 décadas de sua vigência (1973-2019), boa parte da comunidade indígena já tenha migrado para o status de índio integrado, perdendo assim a proteção legal para viver em terras demarcadas.

Sendo assim, é preciso que o Estado examine se as áreas demarcadas estão efetivamente sendo ocupadas por índios tutelados, ou seja, por índios não integrados à comunhão nacional, inclusive para confirmar se a quantidade deles presente nessas terras justifica a extensão demarcada inicialmente pois, exemplificativamente falando, se a população existente ao tempo da demarcação era de 20 mil índios e agora não chega 5 mil, a quantidade de hectares de terra demarcada deve ser reajustada à realidade da nova quantidade de habitantes.

Por final, vale lembrar que o Estatuto do Índio, promulgado sob a regência da Constituição de 1967[8], foi econômico em termos de conceituação de terra indígena, o que diferentemente o fez a Constituição de 1988 em seu art. 231[9].

É mister, pois, que a Lei 6.001/73 seja lida e interpretada à luz da Constituição vigente.

3. A DEMARCAÇÃO DE TERRA INDÍGENA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Considerando que o tema demarcação de terra indígena decorre de preceito assegurado pela Constituição, é mister examinar o texto Superior para preservar, em favor do silvícola, o direito que o constituinte moderno entendeu por bem, e com justiça ao tutelado, ali inscrever.

INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO[10] escreve:

“Advertindo-se que são aplicáveis aos indígenas os princípios da ordem social em geral, com o acréscimo, apenas, do que chamaríamos de princípio da proteção da identidade, é de acrescentar que a maior preocupação do constituinte com esse segmento social concentrou-se na preservação do seu hábitat natural, isto é, das terras por eles tradicionalmente ocupadas, como condição necessária, embora não suficiente, para o reconhecimento, constitucionalmente assegurado (CFB, art. 231, caput), da sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.”

3.1 Conforme dispõe o inciso XI do art. 20[11] da Constituição Federal são bens da União, dentre outros, as terras “tradicionalmente ocupadas pelos índios”.    

Dois pontos devem ser destacados do referido dispositivo para sua boa compreensão e correta aplicação.

O primeiro diz respeito ao tempo de ocupação da terra, visto que a redação do dispositivo não deixa dúvida quanto à sua atualidade, o que se depreende do termo “ocupadas”, o que significa dizer que terras em estado de ocupação pelos índios são bem da União.

Ou seja, não são da União as terras que foram ocupadas por índios, mas sim as terras que estão sendo ocupadas por silvícolas, posto que se assim não fosse todas as terras do território nacional seriam de propriedade da União, já que em tese um dia foram por eles ocupadas.

Portanto, para reconhecimento de área como sendo terra indígena é preciso que sua ocupação esteja acontecendo (presente contínuo) e não simplesmente que tenha acontecido (passado).

O segundo ponto a destacar é que, além da ocupação da terra ser uma realidade facilmente verificável no presente, é necessário que ela venha ocorrendo ao longo de um tempo razoável, o que se depreende do advérbio “tradicionalmente”.

Tradição envolve, necessariamente, práticas levadas a efeito num período razoável de tempo, já que não se pode cogitar de tradição iniciada no dia de ontem.

Se assim não fosse bastava uma ocupação nova ou ocasional para que uma área se tornasse terra indígena e como tal se apresentasse como bem da União, fato que a Constituição parece não endossar.

Assim, são terras da União as áreas que estão ocupadas por índios e não as terras que foram ocupadas por silvícolas e cuja ocupação, além de atual, deve ser tradicional, ou seja, ter um prazo de duração distendida no tempo pretérito.

3.2 Verificada tal base jurídico-constitucional que dá a União o direito de ser proprietária de terras no País, é preciso atentar para os preceitos que apontam para a demarcação dessas áreas em favor de índios tendo em vista o que dispõe o art. 231[12] da Carta Federal.

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É preciso pontuar desde logo que as terras demarcadas e transmitidas aos silvícolas, garantem-lhes o uso direto, pessoal e intransferível, de modo que em terras indígenas não pode haver a presença de não indígena, quiçá de índio que passou a integrar a comunhão nacional.

Ao se dirigir, objetiva e diretamente, “aos índios” a proteção constitucional em questão só a estes deve ser aplicada.

Para se entender o que o dispositivo quer dizer sobre ocupação tradicional da terra, é mister atentar para o contido no seu parágrafo primeiro, como mais adiante segue, onde o constituinte se ocupou em prestar definições pertinentes.

De qualquer forma, é relevante destacar que por terra indígena deve se entender o local onde o índio tem o direito e a oportunidade de viver como índio, já que o objetivo da demarcação é justamente separar uma parte do território dentro do território nacional para que nele seus ocupantes vivam conforme sua cultura originária determina, preservando-a.

Com efeito, não há razão para se demarcar grandes áreas de terras para índios ali habitarem como índios se estes já tiverem incorporado uma nova cultura diferente daquela que inicialmente caracterizou sua própria identificação como índio.

Se ocorreu uma metamorfose cultural a ponto de serem outros os usos e costumes do silvícola, de modo que somente através da observação de certos traços físicos é que se pode denominar o povo como indígena, pois tudo o mais indica tratar-se de povo não mais da selva natural, mas da selva de pedra, certamente que a este a exclusividade de território não pode mais ser deferida ou, se já deferida, mantida.

Noutras palavras, índio que ocupa terra demarcada vivendo nela com cultura (usos e costumes) própria da civilização que o circunda, já não a ocupa validamente.

3.3 O parágrafo 1º do art. 231[13] da Constituição Federal preceitua deve ser observada com afinada atenção, quando estão presentes no referido dispositivo os seguintes pontos que qualificam a área como terra demarcável:

1º) deve ser habitada pelo índio em caráter permanente, afastando a ideia de habitação transitória ou casual.

        Ao dizer terra habitada fica afastada a ideia de terra por onde o indígena, por alguma razão, passou por sem o ânimo de nela viver de forma duradoura.

2º) deve ser utilizada pelo índio para suas atividades produtivas (isto é, aquilo que o índio produz diretamente e conforme suas práticas culturais);

O menos afeito ao estudo da cultura indígena é capaz de asseverar que a atividade produtiva do índio em nada se assemelha à atividade produtiva do homem civilizado, de modo que somente aquela e não esta pode ali ser desenvolvida.

3º) deve ser tida como imprescindível à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar;

        Se a terra não oferece recursos ambientais ou naturais para este fim, não pode ser considerada como área imprescindível ao indígena.

4º) deve ser necessária a sua reprodução física e cultural.

Fica patente que a terra demarcada deve valer para o índio viver ali de acordo com seus usos, costumes e tradições indígenas, e não com usos e costumes adotados pelo contato mantido com outras civilizações, desfigurando sua tradição índia.

Em suma, indígena sem tradição indígena não pode ser considerado para os fins da proteção constitucional, pois somente o índio que como índio se apresenta é que goza do referido privilégio.

O índio que deixar de ser índio, afastando-se da tradição indígena, perde a tutela do próprio Estatuto, mesmo porque índio já não é e, consequentemente, o apoio constitucional no tocante à demarcação de terra não mais lhe socorre.

3.4 Olhando agora para o disposto no parágrafo 2º do art. 231[14] da Carta Magna é possível perceber que o constituinte também se mostrou zeloso no que diz respeito ao traçado sobre o uso da terra demarcada, conquanto expressamente consignou que ao índio é dado o “usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.

Deste modo, não pode o índio, em área demarcada, fazer uso da terra para outra finalidade que não aquelas de cunho eminentemente natural, já que a lógica é que o indígena não vive da indústria, do comércio menos ainda da exploração mineral, mas sim daquilo que espontaneamente a terra e os rios produzem.

Ademais, se o objetivo da demarcação de terra indígena é dar ao índio um local para nele viver segundo suas tradições, e não faz parte da tradição indígena a exploração da terra nos termos comerciais como o homem civilizado faz, nada mais coerente do que a Constituição indicar expressamente a quanto se presta a terra demarcada em favor daquele que nela vive.

3.5 Dando um passo adiante a Constituição, ao oportunizar ao índio ter uma porção de terras para nela viver conforme seus usos e costumes e tradição, no parágrafo 4º do art. 231[15] criva de inalienável e indisponível a terra demarcada.

Além de estabelecer a inalienabilidade e indisponibilidade da terra indígena pelo índio, a Constituição ainda dispôs no parágrafo 6º do mesmo artigo 231[16] a nulidade e extinção dos atos que tenham como objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo”.

4. DO USO LIMITADO DA TERRA DEMARCADA NO TEXTO CONSTITUCIONAL

É fato que, se por um lado, a Constituição Federal assegurou aos índios o direito de terem um território, como diz o poeta, para chamar de seu, de outro lado não é menos certo que a mesma Carta limitou ao índio o direito sobre o território demarcado.

Se o índio resiste ao processo de integrar-se à comunhão nacional, onde deve disputar com os outros cidadãos um lugar ao sol, preferindo viver como índio no território demarcado, deve saber que ali há restrições no seu uso da terra em vários sentidos, mesmo porque não é proprietário do imóvel onde habita e perambula.

Assim, é importante observar os seguintes pontos:

        4.1 – USUFRUTO DE TODOS

A terra demarcada é de uso dos índios, no plural, e não do índio, no singular, de modo que nenhum índio tem a posse pessoal e individual da terra. A demarcação da terra é para beneficiar a coletividade indígena e não o indivíduo índio. Deste modo é de se entender que há um tipo de composse indivisível onde todos os índios que vivem numa determinada área demarcada têm direito a toda a área.

4.2 -  INALIENABILIDADE DA TERRA INDÍGENA

Sendo inalienável e indisponível a terra demarcada, os índios que vivem na área não podem ceder seu uso a ninguém, nem mesmo a índios de outras terras, menos ainda a não-índios, seja a que título for, conforme se lê do parágrafo 4º do art.231[17] da Constituição Federal, de modo que nem na forma de arrendamento ou parceria pode a terra ser explorada por outrem segundo dispõe o art. 18[18] do Estatuto.

4.3  IMPOSSIBILIDADE DE MUDAR O OCUPANTE DA ÁREA DEMARCADA

Uma vez que a demarcação deve ser em favor de índios que tradicionalmente ocupem a terra, a área demarcada não poderá ser objeto de ocupação por outros índios que não aqueles que a ocupavam por longo tempo.

Deste modo não é possível transportar para aquele território índios que vivem em outros lugares por não preencherem o requisito constitucional de serem tradicionais habitantes do local.

Portanto, índios, comunidades ou tribos não podem migrar de um território a outro para ocupar área demarcada.

O local demarcado só pode ser ocupado, pelo princípio da tradicionalidade, pela comunidade do local demarcado.

5. DESMARCAÇÃO DE TERRA INDÍGENA

Se a demarcação de terra indígena pressupõe a existência de povo indígena para ali viver segundo seus usos e costumes, cultura e tradições, inclusive para preservar tudo isto, nada mais certo do que desmarcar a área quando o povo indígena deixar de existir ou, se continuar a existir, for constatada uma diminuição significativa do número de indígenas.

No primeiro caso a desmarcação é total e, no segundo, somente proporcional ao novo grupamento.

O que é fato que uma área demarcada para ser ocupada por um contingente populacional, por exemplo, de 100 mil índios, não pode ser mantida para um beneficiar somente um remanescente de 10 ou 20 mil indígenas, sob pena do território excedente, ao se mostrar ocioso, não colaborar para o bem do País.

Ademais, não se pode desmerecer o fato de que terra de ninguém num determinado momento pode se tornar em terra de alguém, seja a que título for.

Para desmarcar, total ou parcialmente, a terra indígena é mister atentar para os seguintes fatos que devem ser suficientemente comprovados:

5.1 CENSO – DIMINUIÇÃO DA POPULAÇÃO INDÍGENA

A população indígena de uma área demarcada deve ser recenseada no momento da demarcação e levantado o censo de certo em certo tempo, para ver se há proporcionalidade entre a área demarcada e o número de ocupantes do território, o que está no âmbito da competência da FUNAI, conforme sobressai do inciso ... do art. 2º do Decreto 9010/2007[19].

Se o censo comprovar que houve diminuição significativa na população indígena, onde um pequeno número de habitantes passou a ocupar extensão de terra incompatível com a sua necessidade, a redução se impõe.

5.2 ÍNDIO INTEGRADO À COMUNHÃO NACIONAL

A posse da terra demarcada somente pode ser garantida aos índios que nela vivem como verdadeiros índios em termos de usos e costumes e tradição.

Deste modo, índios que se integraram à comunhão nacional (Estatuto do Índio), perdem direito ao território exclusivo.

Quem não tem usos e costumes e tradições especiais e inconfundíveis com as do homem civilizado para serem preservados, não precisa de território específico para viver conforme uma cultura que agora é comum a todos os demais brasileiros.

A se pensar de modo diferente a União estaria patrocinando um território dentro do território nacional a uma categoria de brasileiro que a Constituição não reconhece com tal direito, a saber, o índio integrado à comunhão nacional, que não mais está sob a tutela do Estatuto do Índio.

Índios que deixaram de ser índios por sua integração à comunhão nacional devem ser tratados como brasileiros entre brasileiros sem qualquer privilégio em termos de território exclusivo.

Terras indígenas demarcadas devem ser desmarcadas na proporção em que a população indígena inicialmente beneficiada se integra à comunhão nacional.

5.3 -  PERDA DO OBJETIVO DA DEMARCAÇÃO

O objetivo único e, portanto, central da demarcação de terras para o índio é que este disponha de um território exclusivamente seu, onde possa viver conforme seus usos e costumes, bem assim de acordo com suas tradições que, como se sabe, são totalmente distintas dos usos e costumes e das tradições dos não-índios.

A leitura do art. 231 da Constituição faz saber que o objetivo da demarcação é estabelecer um lugar específico onde os índios, que ali vivem por longo tempo, possam ter um lugar mais do que adequado para terem sua sobrevivência tanto física, quanto cultural efetivamente protegida.

Em suma, é terra para índio viver como índio e não mais do que isto.

Enseja desmarcação da terra demarcada o fato da população indígena adotar uma cultura diferente da sua cultura originária.

CONCLUSÃO

O índio que vive em terra demarcada não poderá fazer uso dela senão nos estreitos limites impostos pela Constituição.

Portanto, fere preceito constitucional o fato de índio fazer uso de terra demarcada para desenvolver atividade que não seja compatível com sua tradição indígena originária.

Não há dúvida de que o direito do índio na terra demarcada é explorar o que é natural na área, ou seja, o que nela existe e não o que nela por ele possa ser incorporado ou acrescentado, menos ainda incrementado.

À luz do contido no inciso IX do art. 2º do Estatuto do Índio [20] à União e aos demais entes da Federação é dever garantir aos índios e comunidades indígenas, nos termos da Constituição, a posse permanente das terras que habitam, reconhecendo-lhes o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes.

No entanto, é patente que o índio que faz jus à referida garantia é aquele que ainda não se integrou à comunhão nacional.

À comunidade indígena e ao silvícola integrados não pode ser garantido o direito de permanência na área demarcada, posto que esse território não comporta, juridicamente falando, a presença do não-índio e da comunidade não indígena.

A demarcação de terra indígena se justifica quando satisfeita a base jurídico-constitucional de beneficiar índios que tradicionalmente a ocupem para ali viverem conforme seus usos e costumes e tradição.

Se ao longo do tempo índios que ocupam área demarcada integram a comunhão nacional, a terra anteriormente demarcada deverá ser desmarcada para ser aproveitada de outra forma que não aquela prevista no art. 231 da Constituição Federal. 

Desaparecida, por qual razão for, a comunidade indígena que ensejou a demarcação ou desviada de sua tradição em termos de usufruto da área, o ato demarcatório perde sua juridicidade, posto não haver base legal constitucional de manter demarcada ou restringida uma parte do território nacional para ocupação por quem não tem o necessário amparo constitucional para dela tirar proveito com exclusividade.

Se, no entanto, for o caso de 80% da comunidade indígena passar a integrar a comunhão nacional ou se ficar reduzida a 20% da população que ao início justificou a demarcada da área naquela totalidade, neste percentual deverá ser reduzido o território demarcado para não haver ociosidade de terra que em nada colabora para o desenvolvimento do País.

Portanto, desaparecido o objetivo da demarcação há de cessar a própria demarcação.

Para manter a ordem e a boa ocupação do território nacional, é preciso que os órgãos competentes afetos à política indigenista fiscalizem as áreas demarcadas para atestar se estão sendo efetivamente ocupadas por aqueles que constitucionalmente têm o direito de permanecer nos seus limites, inclusive para constatar se a terra está sendo usufruída dentro do permissivo presente na Carta Federal.

Se a Autoridade se mostrar relapsa nesta verificação, isto poderá dar enseja ao fato da União patrocinar o uso de suas terras por pessoas estranhas à ordem legal especial ou mesmo permitindo sua exploração por atividade incompatível com o desiderato da demarcação.

Como todo ajuntamento humano sofre modificações que no tempo são capazes de lhe dar uma conformação totalmente nova, quer pela morte, quer pela migração, imigração ou emigração, a população indígena do País não está imune a estes fatores de alterações.

Sendo assim, não seria demais supor que os silvícolas, notadamente aqueles que há algum tempo já se encontram em vias de integração, tenham incorporado um estilo de vida diverso da dos seus ancestrais, apresentando uma conformação antropológica e sociológica diversa daquela atestada num determinado período.

A ausência ou o retardo desta verificação pelo órgão federal competente não ajuda o País a crescer. Da mesma forma não labora em favor da Nação o fato do órgão federal deixar de emprestar efetivo trabalho e desenvolvimento de políticas apropriadas ao processo de integração do índio à comunhão nacional.

Lutero de Paiva Pereira - Advogado especializado em direito do agronegócio em Maringá/PR. Pós-graduado em Direito Agrofinanceiro. Doutrinador na área do agronegócio. Membro do Comitê Europeu de Direito Rural (CEDR) e Membro Honorário do Comitê Americano de Direito Agrário (CADA). Contato: www.pbadv.com.br / [email protected]

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Sobre o autor
Lutero de Paiva Pereira

Advogado especialista em Direito do Agronegócio. Fundador da banca Lutero Pereira & Bornelli Advogados Associados. Pós-graduado em Direito Agrofinanceiro. Coordenador de cursos online no site Agroacademia. Membro do Comitê Europeu de Direito Rural (CEDR) e Membro Honorário do Comitê Americano de Direito Agrário (CADA). Autor de 18 livros publicadas na área de Direito do Agronegócio.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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