1. INTRODUÇÃO
A criminologia é a ciência que estuda o crime juntamente com a reação social a ele, estuda também a vítima e o autor, não ficando somente na interpretação e aplicação das leis. Nas palavras de Shecaira (2004), criminologia
É um nome genérico designado a um grupo de temas estreitamente ligados: o estudo e a explicação da infração legal; os meios formais e informais de que a sociedade se utiliza para lidar com o crime e com atos desviantes; a natureza das posturas com que as vítimas desses crimes serão atendidas pela sociedade; e, por derradeiro, o enfoque sobre o autor desses fatos desviantes.
A música "100% feminista", que será analisada nessa pesquisa, retrata a realidade da violência doméstica contra a mulher no Brasil, traz o movimento feminista como empoderador e tenta tirar a sociedade da cegueira branca - não uma cegueira física, mas sim um estado de alienação onde é impossível enxergar a realidade ao redor. (SARAMAGO, 1995).
2. DESENVOLVIMENTO
A violência doméstica contra as mulheres "é tudo que tira os direitos humanos numa perspectiva de manutenção das desigualdades hierárquicas existentes para garantir obediência, subalternidade de um sexo a outro” (SAFFIOTI, 2001), caracterizando-se, assim, como uma forma de dominação permanente. É reflexo de uma ideologia de gênero produzida e reproduzida por homens e mulheres, onde o homem é a figura dominante e faz com que a mulher, dominada, perca a sua autonomia, sua liberdade de pensar, querer, sentir e agir por vontade própria. Essa ideologia naturaliza a mulher como inferior devido à maternidade, que torna a mulher um ser para os outros.1(CHAUÍ, 1985). Assim, a mulher se torna um ser dependente, sem voz; o que resultará em desigualdades hierárquicas. Na música, os versos "Mulher oprimida, sem voz, obediente” e "Me ensinaram que éramos insuficientes” retratam essa condição de inferioridade das mulheres em relação aos homens.
Segundo Pierre Bourdieu (1998), a dominação do homem é possível porque
A ordem social funciona como uma imensa maquina simbólica, tendendo a ratificar a dominação masculina na qual se afunda: é a divisão social do trabalho, distribuição muito restritiva das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu lugar, seu momento, seus instrumentos…
Sendo assim, a mulher sofre uma violência simbólica, que naturaliza sua condição de inferioridade.
Violência simbólica, violência suave, insensível, invisível à suas próprias vítimas, que se exerce, essencialmente, pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em ultima instância, do ‘sentimento’. (BOURDIEU, 2012, p. 8, negrito nosso).
A violência simbólica vai além da violência física, psicológica ou sexual. Ela está dissolvida nas praticas sociais, incorporada ao habitus, de forma tão sutil e enraizada que a vitima reproduz os padrões sociais da classe dominante como se fossem sua própria verdade - uma sociedade mergulhada na cegueira branca. A violência simbólica naturaliza a cultura, as ideias e os valores dos dominantes como se fossem universais, legitimando a superioridade masculina. Os versos "Eu tinha uns cinco anos, mas já entendia que mulher apanha se não fizer comida” e "Tentam nos confundir, distorcem tudo que eu sei” da música "100% feminista” retratam a incorporação da ideologia dominante como sendo a correta, a natural.
Para que ocorra a manutenção da violência simbólica e para que as relações de poder entre os gêneros sejam mantidas e fortalecidas, é necessário o uso de alguns instrumentos, como a violência física, que “é estrutural, constitutiva dos sistemas de dominação e exploração, e sua utilização é um dos mecanismos também empregados para conservar as relações de poder” (ROCHA, 2007, p. 13).
Na música de Mc Carol e Karol Conka, a violência doméstica física contra a mulher é explicitada nos versos "Presenciei tudo isso dentro da minha família, mulher com olho roxo, espancada todo dia” e "Mulher apanha se não fizer comida”. No Brasil, a Lei Maria da Penha (2006), no seu artigo 7º, tipifica a violência física como uma das formas de violência doméstica, sendo “entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal”. No primeiro semestre de 2015, a Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180 registrou 32.248 relatos de violência contra mulher, sendo 51,16% relatos de violência física. Em 70,71% dos casos, quem cometeu as violências tem ou tinha algum vinculo de afeto com a vitima, seja companheiro, cônjuge, amante.
Com objetivo de empoderar as mulheres e de mudar a sua situação passiva frente à cultura de dominação masculina, surge o movimento feminista.
O feminismo busca repensar e recriar a identidade de sexo sob uma ótica em que o indivíduo, seja ele homem ou mulher, não tenha que se adaptar-se a modelos hierarquizados, e onde as qualidades “femininas” ou “masculinas” sejam atributos do ser humano em sua globalidade. Que a afetividade, a emoção, a ternura possam aflorar sem constrangimentos nos homens e serem vivenciadas, nas mulheres, como atributos não desvalorizados. Que as diferenças entre os sexos não se traduzam em relações de poder que permeiam a vida de homens e mulheres em todas as suas dimensões:no trabalho, na participação política, na esfera familiar, etc… (ALVES; PITANGUY, 1985, p. 9-10, negrito nosso).
O feminismo como forma de libertação da mulher é o cerne da ideia da música, que traz a figura feminina quebrando o habitus e as relações de poder onde o homem é o dominante - "Quando eu crescer eu vou ser diferente. Eu cresci, prazer Carol bandida, represento as mulheres, 100 por cento feminista”, "Eu que mando nessa porra, eu não vou lavar a louça”, "Sou mulher independente não aceito opressão, abaixa sua voz, abaixa sua mão”, "Mais respeito, sou mulher destemida”, "Tô no mar crescente porque eu faço diferente”.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência doméstica contra a mulher vai muito além da violência física. Ela é também uma violência simbólica, que esta diluída na cultura, nas relações de poder, em todos os aspectos sociais, e é reproduzida tanto pelos dominantes quanto pelos dominados. A mulher assume involuntariamente um papel de inferioridade, que pode ser revertido através do empoderamento que o feminismo proporciona. A música "100% feminista” retrata os fatores sociais do crime, reconhece que a violência doméstica está enraizada na cultura e mostra a mulher vitimada quebrando essas barreiras sociais de gênero e se impondo perante seu agressor, exigindo respeito e igualdade.
REFERÊNCIAS
ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1981.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 11.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.
______. O poder simbólico. 7.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
BRASIL. Central de Atendimento a Mulher Ligue 180 - Balanço 1º semestre 2015. 2015. Disponível em: <https://www.spm.gov.br/assuntos/violencia/ligue-180-central-de-atendimento-a-mulher/balanco1sem2015-versao-final.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2017.
______. Lei no 11.340. 2006. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>.
CHAUí, Marilena. Participando do Debate sobre Mulher e violência. apud. SANTOS, Cecilia Macdowell; IZUMINO, Wânia Pasinato. Violência contra as Mulheres e Violência de Gênero: Notas sobre Estudos Feministas no Brasil. Estudios Interdisciplinarios de América Latina y El Caribe. vol.16, 2005. Disponível em: <https://eial.tau.ac.il/index.php/eial/article/view/482/446>. Acesso em: 25 ago. 2017.
MC CAROL; CONKA, Karol. 100% feminista. Rio de Janeiro: Heavy Baile Sounds & Skol Music, 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=W05v0B59K5s>.
ROCHA, Lourdes de Maria L. N. Casas-abrigo: no enfrentamento da violência de gênero. São Paulo: Veras Editora, 2007.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. 11.ed. São Paulo: Moderna, 2001.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. 1.ed. São Paulo: Companhia Das Letras, 1995.
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
Notas
1Definida como esposa, mãe e filha (ao contrário dos homens para os quais ser marido, pai e filho é algo que acontece apenas), são definidas como seres para os outrose não como seres com os outros”. (CHAUÍ, 1895).