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Ônus da prova nas ações coletivas

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21/08/2019 às 17:03
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4 CONCLUSÃO

A prova consiste, em termos gerais, no processo (ou conjunto de atividades) de reconstrução dos fatos, tendo o juiz por destinatário e a busca da verdade como objetivo concreto. O encargo de produzir a prova (que não se confunde com dever jurídico, salvo na exibição de documentos), é entendido sob dois aspectos: subjetivo e objetivo. O primeiro constitui elemento de incentivo às partes, norteando-as na atividade de produzir as provas, já o segundo serve como regra de julgamento (verdadeira “regra de desempate”), obstando o “non liquet” e servindo de diretriz ao julgador.

Ordinariamente, a lei atribui o ônus da prova (atribuição estática e prévia), de acordo com o a posição e interesse da parte em sua produção. Há situações, no entanto, nas quais se admite a inversão do ônus probatório, consistente isto no abandono de sobredita regra estática, como forma de se impedir situações de desequilíbrio e injustiça.

Neste sentido, o Novo Código de Processo Civil, fundado no dever de cooperação, incorporou pleito já antigo da doutrina, passando a prever de forma expressa a distribuição dinâmica, sempre que a produção da prova se mostrar impossível ou de extrema dificuldade a uma das partes, mas, em contrapartida, possível à parte adversa. O artigo 373, §1º, do CPC, embora guarde importância solar, não revogou o art. 6º, VIII, do CDC, o qual, conforme entendimento que parece predominante, aplica-se a todas as ações coletivas, independentemente do respectivo objeto, pois constitui norma de direito processual.

Vantajosa é a aplicação deste último dispositivo aos autores da ação coletiva, pois não exige ele que a parte contrária (réu na ação coletiva), tenha melhores condições de produzir a prova, muito embora haja entendimento de que tal exigência é aplicável em todo o caso, por força de interpretação sistemática.

As ações coletivas acompanham, na maior parte, as regras gerais do ônus da prova, inclusive as divergências existentes a respeito do tema. Há, no entanto, especificidades que importam em não menos controvérsias. Ponto aqui sempre lembrado consiste na compreensão e limites dos requisitos trazidos pelo art. 6º, VIII, do Estatuto Consumerista (hipossuficiência e verossimilhança), sendo sua delimitação precisa alvo de intermináveis discussões.

A hipossuficiência, embora pairem controvérsias, é predominantemente entendida como carência técnica, ou seja, falta de conhecimento e informações específicas para a prova de determinado fato, podendo restar tal requisito presente em relação a qualquer um dos autores coletivos. 

A verossimilhança, por seu turno, decorre da utilização, pelo juiz, das regras de experiência e presunções simples, por meio das quais conclui pela existência de um fato não provado a partir de outro fato provado, pois aquele é deste consequência ou pressuposto. Não há aqui propriamente inversão, mas sim alteração do critério judicial de avaliação das provas.

Possível é, ainda, a inversão convencional do ônus da prova, porém nas ações coletivas deve isto ocorrer sempre em favor do autor coletivo. Outra possibilidade aventada pela jurisprudência consiste na inversão do custo financeiro da prova, medida que resolveria a isenção deferida pelos artigos 87 do Código de Defesa do Consumidor e 17 da LACP, muito embora neste ponto a divergência seja ainda maior, dada a falta de norte legal.

Percebe-se que o ônus da prova nas ações coletivas, não obstante tenha por base, como dito, as regras gerais que norteiam todo o ônus da prova no processo civil, apresenta importantes peculiaridades, bem como discussões próprias, já que específicas à respectiva temática.

O presente trabalho, longe de solucionar as tantas questões trazidas, buscou expor, de forma resumida (considerando a abrangência restrita do estudo), as correntes existentes e soluções propostas.


REFERÊNCIAS

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CARPES, Artur. Ônus da prova. 1ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010

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DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de Direito Processual Civil: Teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 13ª ed. Salvador: Juspodivm, 2018.

DIDIER JUNIOR, Fredie (Coord.). Provas. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016.

DONIZETTI, Elpídio; CERQUEIRA, Marcelo Malheiros. Curso de Processo Coletivo. São Paulo: Atlas, 2010

DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2017, vol III.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, vol II.

LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2017.

MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Processo Coletivo. 2ª ed. São Paulo: Método

NOGUEIRA, Tânia Lis Tizzoni. A Prova no Direito do Consumidor, 1ª ed. Curitiba: Juruá, 1998

PACÍFICO, Luiz Eduardo Boaventura. O ônus da Prova. 2ª ed. Coleção de Estudos Enrico Tullio Liebman – vol 44. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

SANTOS, Moacyr Amaral. Prova Judiciária no Cível e Comercial. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1983, Vol 1.

SOUZA, Motauri Ciocchetti. Ação Civil Pública e Inquérito Civil. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 57ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, Vol I.


Notas

[1] SANTOS (1983, p. 8) conceitua prova a partir de seu sentido objetivo e subjetivo. Para ele, prova, em sentido subjetivo, consiste na “crença da certeza dos fatos alegados em juízo” (convicção da verdade sobre os fatos relevantes e controvertidos) e em sentido objetivo “nos meios admitidos ou impostos pela lei para chegar-se a essa convicção”. Após análise de ambos os aspectos, o autor traz, enfim, um conceito uno de prova: “prova é a soma dos fatos produtores da convicção, apurados no processo” (1983, p. 13).

[2] Há divergência a respeito, servindo de argumento a trazer ainda mais celeuma o fato de a prova ser tratada também pelo Código Civil. Neste sentido, SANTOS (1983, p. 42) defende a natureza mista do direito probatório, aduzindo que “na sistemática do direito brasileiro, que no tocante se filia ao sistema do direito francês, belga e italiano, os princípios referentes à prova se incluem no direito material e no direito formal. Entram na esfera do direito civil a determinação das provas e a indicação tanto do seu valor jurídico quanto das condições de sua admissibilidade. Ao direito processual cabe estabelecer o modo de constituir a prova e de produzi-la em juízo”.

[3] e para isto é fundamental a adoção do princípio da liberdade objetiva das provas.

[4] Em: Provas. DIDIER JUNIOR, Fredie (Coord.), 2ª ed, Salvador: Juspodivm, 2016, p. 271

[5] Provas. DIDIER JUNIOR, Fredie (Coord.), 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 272

[6] A lição tem sido recebida com ressalvas, considerando a possibilidade de o autor sagrar-se vencedor em vista de provas colhidas de ofício pelo juiz.

[7] A teor da discussão já vista, a distribuição dinâmica, para alguns, não é propriamente inversão, “porque só se poderia falar em inversão caso o ônus fosse estabelecido prévia e abstratamente. Não é o que acontece com a técnica da distribuição dinâmica que se dá no caso concreto” (Eduardo Cambi, Provas. Coordenador Fredie Didier Jr, 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 537). No mesmo sentido: “enquanto a primeira (distribuição dinâmica) é uma via de mão dupla, dependente da análise criteriosa das condições fáticas das partes, a segunda (inversão), muito embora dependa do caso concreto, é uma via de mão única, é dizer, a inversão só pode ser feita uma única vez e em um único sentido” (MACEDO, Lucas Buril; PEIXOTO, Ravi Provas. Coordenador Fredie Didier Jr, 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 598).

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[8] Justamente por isto adverte Humberto Theodoro Junior (2016, p. 912) que a inversão ocorrerá somente sobre as provas subjetivamente difíceis (casos em que a dificuldade decorre da condição da parte) e não sobre as provas objetivamente difíceis (quando a dificuldade decorre da natureza da coisa ou do evento).

[9] Moacyr Amaral Santos (1983), entretanto, traz críticas à doutrina de Bentham, pois implicaria ela em uma inexistência de norte à repartição do ônus e, ainda, na supressão do princípio dispositivo.

[10] Vitor de Paula Ramos: Provas. Coordenador Fredie Didier Jr, 2ª ed, Salvador: Juspodivm, 2016, p. 275

[11] Em sentido contrário ao ora defendido, pontuam DONIZETTI e CERQUEIRA (2010, p. 307): “justamente por pressupor a vulnerabilidade do consumidor, o art. 6º, VIII, do CDC deve ser visto como norma de direito material-processual, devendo ter sua aplicação restrita a causas de consumo (individuais ou coletivas). Assim, salvo no tocante às relações de consumo, não concordamos com o enquadramento do referido dispositivo como norma do microssistema processual coletivo”.

[12] LEONEL, Ricardo de Barros. Manual de Processo Coletivo, 4ªª ed. São Paulo: Malheiros, p. 449.

[13] MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa Dos Interesses Difusos em Juízo, 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 725

[14] O STJ tem entendimento em sentido contrário: “É entendimento pacificado no STJ que a inversão do ônus da prova é faculdade conferida ao magistrado, não um dever, e fica a critério da autoridade judicial conceder tal inversão quando for verossímil a alegação  do consumidor ou quando for ele hipossuficiente” (AgInt no REsp 1569566/MT, Rel. Ministro Herman Benjamin DJe 27/04/2017, grifo nosso)

[15] O  Superior  Tribunal  de  Justiça  entende que em matéria ambiental  o princípio da precaução implica na inversão  do  ônus  probatório, independentemente dos requisitos do art. 6º, VIII, do CDC  (STJ, AgRg no AREsp 183.202/SP, Rel. Ministro   RICARDO   VILLAS  BÔAS  CUEVA,  TERCEIRA  TURMA,  DJe  de 13/11/2015; AgInt no AREsp 779250/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA   TURMA,  DJe  de  19/12/2016)

[16] DINAMARCO (2017. P. 90) fala em hipossuficiência organizacional: “esse foi um benefício autorizado pelo estatuto consumerista em atenção à presumida hipossuficiência organizacional dos consumidores finais de bens ou produtos, vindo depois a servir de modelo e inspiração para o novo Código de Processo Civil” (grifo não original).

[17] Neste sentido: LEONEL, 2017, p. 450.

[18] “Art. 357.  Não ocorrendo nenhuma das hipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, em decisão de saneamento e de organização do processo: [...] III - definir a distribuição do ônus da prova, observado o art. 373...”

[19] Pende análise do recurso apresentado contra a rejeição do projeto pela CCJ da Câmara dos Deputados

[20] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Processo Coletivo. 2ª ed. São Paulo: Método, 2014.

[21] Pela possibilidade de utilização dos valores do Fundo: STJ, RMS 30.812/SP, Rel Ministra Eliana Calmon, j. 04.03.2010

[22] P. 728.

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Sobre o autor
Thomaz Corrêa Farqui

Juiz de Direito. Mestre em Direito pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARQUI, Thomaz Corrêa. Ônus da prova nas ações coletivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5894, 21 ago. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75616. Acesso em: 26 abr. 2024.

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