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Ônus da prova nas ações coletivas

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21/08/2019 às 17:03
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As ações coletivas acompanham, na maior parte das vezes, as regras gerais do ônus da prova, inclusive as divergências a respeito do tema, das quais fazemos um apanhado.

RESUMO: O ônus da prova é tema há muito estudado, mas que sofreu grandes alterações com o novo Código de Processo Civil (CPC; Lei federal 13.105, 2015), o que torna ainda mais importante a retomada do assunto. Nas ações coletivas, o ônus probatório segue, em boa parte, o regramento geral introduzido pelo Código de Processo Civil. Justamente por isto, o presente estudo tratou inicialmente do conceito de prova, o que envolve a análise de sua definição propriamente dita, finalidade, objeto e natureza jurídica, para, enfim, e a partir disto, adentrar, ainda antes da análise das especificidades que envolvem a temática posta, ao estudo geral do ônus da prova no processo civil brasileiro. Revelou este estudo inicial que as alterações introduzidas pelo novo diploma, e há muito reclamadas por parte considerável dos processualistas, impactaram profundamente na percepção do ônus probatório, tendo com elas sido ressaltado o aspecto subjetivo em predominância ao objetivo. Sanaram-se, enfim, dúvidas antes existentes, como ocorre com o momento em que deve haver a inversão judicial do ônus probatório, mas remanescem presentes outras dúvidas, em especial no tocante a certas especificidades próprias da ação coletiva, cuja solução possível, longe de se propor, é ora investigada por meio de breve pesquisa doutrinária e jurisprudencial. Percebeu-se, portanto, que diversos pontos ainda são alvo de acirrada discussão, como ocorre com a aplicação do art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor a ações coletivas que não tenham por objeto a defesa do consumidor, a possibilidade de inversão do custeio da prova e a existência do dever jurídico de exibição da prova documental. O presente trabalho investigou tais pontos e algumas das correntes deles originada.

PALAVRAS-CHAVE: Prova. Ação coletiva. Aspectos do ônus probatório. Atribuição. Inversão. Custeio. Dever jurídico.


1 INTRODUÇÃO

O estudo do ônus da prova envolve inúmeras controvérsias, renovadas com as alterações legislativas recentemente realizadas e, naturalmente, com a evolução da Ciência do Direito. A própria ideia, aliás, de prova, bem como de seus respectivos objeto, finalidade e natureza jurídica são alvos de acirrada discussão, sem consenso doutrinário.

O estudo do ônus da prova passa, portanto, pela tentativa de compreensão da própria prova, e da posterior diferenciação entre ônus e dever jurídico, ponto a partir do qual já nascerão dúvidas, pois o ônus probatório, ao contrário de outros ônus processuais, não traz ao onerado, caso descumprido, consequências prejudiciais imediatas.

O tema em discussão sofreu profundas alterações com o Código de Processo Civil de 2015, o qual, inspirado pela cooperação, igualdade e adequação, incorporou a teoria da carga dinâmica, tendo dado maior relevância ao aspecto subjetivo do ônus da prova. Longe de serem a fundo abordadas todas as questões que envolvem o ônus da prova, não resta dúvida de que a compreensão de tal ônus nas ações coletivas envolve um breve exame de tais questões, com destaque às sobreditas alterações legislativas.

Feitos os preliminares estudos, é possível, então, analisar as especificidades do ônus probatório nas ações coletivas. E neste tema, as controvérsias não são menos acirradas, havendo dissenso quanto a diversos pontos, tais como, dentre outros, a aplicação ou não do art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor a todas as ações coletivas (independentemente de seu objeto), a possibilidade de inversão do custeio da prova e a presença da verossimilhança nas demandas coletivas propostas por entes públicos.

Busca-se no presente momento analisar as diversas correntes que se formaram a respeito de parte dos pontos em dissenso, com exposição das soluções possíveis, sem que, dados os restritos limites do trabalho, se almeje soterrar as dúvidas existentes.                       


2 PROVAS: DEFINIÇÃO, FINALIDADE, OBJETO E NATUREZA JURÍDICA

Em sentido jurídico o termo “prova” é, sem dúvida, equívoco, pois como bem lembra Moacyr Amaral Santos (1983, p. 2),

O vocábulo é empregado em várias acepções:

Significa a produção dos atos ou dos meios com os quais as partes ou o juiz entendem afirmar a verdade dos fatos alegados (“actus probandi”; significa ação de provar, de fazer a prova). Nessa acepção se diz: a quem alega cabe fazer a prova do alegado, isto é, cabe fornecer os meios afirmativos da sua alegação.

Significa o meio de prova considerado em si mesmo. Nessa acepção se diz: prova testemunhal, prova documental, prova indiciária, presunção.

Significa o resultado dos atos ou dos meios produzidos na apuração da verdade. Nessa acepção se diz: o autor fez a prova da sua intenção, o réu fez a prova da exceção.

CARNELUTTI (2005, p. 85) definia prova como “o processo de determinação dos fatos controvertidos por parte do juiz”, definição ainda hoje perfeitamente aplicável à luz do sistema processual vigente. Não por outro motivo, SANTOS (1983, p. 02) pondera que provar é o “meio pelo qual a inteligência chega à descoberta da verdade”[1].

Para DINAMARCO (2017, p. 49), “prova é um conjunto de atividades de verificação e demonstração, mediante as quais se procura chegar à verdade quanto aos fatos relevantes para o julgamento”.

A prova é instituto de direito processual[2], não apenas por ser dentro do processo que produzirá seus efeitos, mas, sobretudo, porque tem por destinatário o juiz: “a natureza processual da prova é intimamente associada à identificação do juiz como seu destinatário. A produção da prova não é prerrogativa inerente à estrutura dos direitos, mas ao exercício da jurisdição, da ação e da defesa” (DINAMARCO, 2017, p. 51).

A prova busca reconstruir, para o juiz, por meio da percepção ou da representação, os fatos que sustentam as alegações controvertidas e relevantes trazidas ao processo pelas partes. Por isto, “a prova visa, como fim último, incutir no espírito do julgador a convicção da existência do fato perturbador do direito a ser restaurado” (SANTOS, 1983, p. 6).

Embora seja corriqueira a afirmação de que no processo civil não se busca a verdade real e sim a verdade formal (como se fosse possível haver duas verdades), certo é que a imposição constitucional da tutela justa determina que se alcance a maior proximidade possível entre a realidade fenomênica e a determinação dos fatos no processo.

Não há mais espaço, de acordo com a Constituição Federal de 1988, para que se admita ser o fim da prova, no processo civil, a mera determinação formal dos fatos, sem preocupação com a realidade. Se no passado entendia-se, como dizia CARNELUTTI (2005, p. 49), que a coincidência entre a determinação formal e a realidade era “contingente e não necessária diante da ordem jurídica, que prescreve a posição de um fato na sentença, não quando seja verdadeiro, senão quando tenha sido determinado com os meios legais”, hoje a busca por tal coincidência é, repita-se, um imperativo constitucional.

A prova, portanto, serve para a formação de um juízo de certeza[3], ou seja, para a convicção judicial de que há “relação de conformidade entre o nosso pensamento e a realidade palpável e inteligível” (SANTOS, 1983, p. 6). Por evidente não se pretende aqui imaginar seja possível alcançar a verdade absoluta. A reconstrução dos fatos é falha, de modo que “a certeza e a verdade nem sempre coincidem” (SANTOS, 1983, p. 4). Porém, deve-se ter em mira a maior proximidade possível com a realidade.

As provas têm por objeto alegações controvertidas, desde que sejam capazes de influenciar nos julgamentos realizados ao longo do processo e/ou no julgamento final do mérito.

CARNELUTTI (2005, p. 42) já ponderava que as provas recaem sobre os fatos controversos, assim entendidos como sendo aqueles “afirmados tão somente por uma ou alguma das partes, ou seja, fatos afirmados, porém não admitidos, que podem existir ou não”. A lição do mestre de Udine merece ser recebida com certa cautela, pois para Carnelutti estaria o juiz impedido de considerar como não verdadeiro fato afirmado por ambas as partes (incontroverso), de modo que haveria para estas uma autorização para a manipulação da verdade, o que, atualmente, não é mais admissível, dada, sobretudo, a iniciativa probatória do juiz (poder-dever do juiz de produzir provas).

Em síntese, e ainda na esteira dos ensinamentos de DINAMARCO (2017), constitui objeto da prova as alegações controvertidas e que se refiram a fatos relevantes.

Alegações controversas, como já visto, são aquelas alegadas por uma parte, porém contrárias a outra alegação feita nos autos pela parte adversa. A controvérsia pode decorrer da negativa pura e simples (quando , v.g., o réu nega, em ação de cobrança, a existência do débito)  ou mesmo de uma versão contraposta (o que ocorre, exemplificativamente, quando, em ação indenizatória fundada em acidente automobilístico, o réu confirma a existência do evento, mas traz dinâmica diversa daquela que fundamenta a inicial).

Há, no entanto, fatos incontroversos, mas que dependem de prova, sendo eles: I- fato a cujo respeito não for admissível a confissão (direitos indisponíveis); II- ato cuja prova demanda documento público; III- fatos lastreados em alegações impossíveis, improváveis ou inverossímeis.

Há, ainda, excepcionalmente, alegações controversas, mas que, em contrapartida, não dependem de prova, aqui se enquadrando: I- aquelas alegações sobre as quais recai presunção legal (em tal hipótese a não ocorrência do fato pode, entretanto, ser objeto de prova, falando-se, aqui, ordinariamente, em inversão do ônus probatório); II- alegações concernentes a fatos notórios, as quais, entretanto, não prescindem da prova da notoriedade.

Fatos relevantes, por sua vez, são aqueles capazes, por si, de influenciar no julgamento, possuindo, assim, a desejada capacidade constitutiva do direito do autor (ou do réu, em se tratando de pedido reconvencional ou contraposto) ou, em contrapartida, capacidade modificativa, extintiva ou impeditiva do direito postulado pela parte “ex adversa”.

Os fatos circunstanciais, assim compreendidos como sendo aqueles que não integram a causa de pedir ou o núcleo da defesa, podem ser irrelevantes “a priori” ou assim se tornar após ou ao longo da instrução. Deste modo, se o réu alega, em ação indenizatória movida por seu vizinho, que os danos a este causados, fundamentos do pedido inicial, foram causados por vazamento advindo da unidade do andar imediatamente superior, provando-se, ao longo da instrução, que tais danos não provêm de seu próprio imóvel, mostra-se a partir de então irrelevante saber se a origem está, de fato, no apartamento do andar superior.


3 ÔNUS DA PROVA: DEFINIÇÃO E NATUREZA JURÍDICA

Vitor de Paula Ramos traz definição clara e completa do que se deve entender por ônus:

Ônus pode ser definido da seguinte forma: (a) é uma situação passiva subjetiva, com estado de sujeição “brando”; (b) atribuído por regra jurídica imperativa; (c) que descreve comportamento (positivo ou negativo) “apreciado” pelo Direito, mas não categoricamente exigido; (d) que dá ao sujeito onerado a possibilidade de escolha entre as opções igualmente lícitas, fazendo com que a não adoção do comportamento “desejado” não seja, portanto, ilícita; (e) que não permite que o direito utilize sua força, seja mediante técnicas coercitivas, seja mediante técnicas sub-rogatórias, para forçar o sujeito a adotar o comportamento “desejado”, já que; (f) a consequência jurídica para a adoção ou não da adoção do comportamento estará prevista na própria regra[4].

 Percebe-se, portanto, que, não obstante etimologicamente ônus signifique carga, fardo ou peso, não se pode de modo algum confundir ônus com obrigação ou dever jurídico:

no ônus, o sujeito é livre para adotar a conduta prescrita pela norma, não estando juridicamente vinculado ao seu cumprimento em favor de outro, como ocorre na obrigação. O não exercício de um ônus não configura ato ilícito e não é sancionado, enquanto a violação de uma obrigação é ilícita e sancionada. A norma estatuidora de um ônus tutela interesse do próprio onerado, ao passo que a norma portadora de uma obrigação tutela interesse do titular do direito subjetivo correspondente, que pode exigir o seu cumprimento. A obrigação é uma situação jurídica passiva, enquanto o ônus é uma situação jurídica ativa, manifestação do poder no qual se manifesta a liberdade de agir do sujeito onerado (PACÍFICO, 2011, p. 52).

Não se trata de um dever jurídico. Mesmo porque não existe um direito que lhe seja correlato, nem propriamente qualquer sanção pelo seu não-cumprimento. Trata-se apenas de dever no sentido de interesse, necessidade de produzir a prova para formar-se a convicção do juiz a respeito dos fatos alegados (SANTOS, 1983, p. 93).

Ocorre que a inobservância do ônus da prova (ao contrário de outros ônus processuais, como é o caso da arguição da incompetência relativa ou da oposição da suspeição da testemunha) não implica em consequências detrimentosas imediatas, inevitáveis. Por isto, Vitor de Paula Ramos (op. cit., p. 271) pontua que o denominado “ônus da prova” não é na essência um ônus:

não parece adequado considerar o “ônus” da prova como um verdadeiro ônus jurídico, em sentido técnico. Isto justamente porque a escolha da parte, pelo sim ou pelo não (a atividade ou a não atividade probatória), não traz automaticamente qualquer consequência jurídica

Ainda assim, entende-se de forma amplamente predominante pela existência de um “ônus” da prova, mesmo que se trate de um ônus imperfeito, pois, reitere-se, a consequência detrimentosa à parte omissa é apenas eventual.

Neste ponto, e pelas razões acima, não se pode atualmente acompanhar a lição de Chiovenda que, nas palavras de SANTOS (1983, p. 93), entendia o ônus probatório como sendo uma “condição para a vitória e não um dever jurídico”. Ora, não obstante não se esteja diante de um dever jurídico, como já antes aqui exposto, é, no mínimo, duvidoso ser o ônus da prova uma condição para a vitória, na medida em que, vale repetir, poderá a parte sagrar-se vencedora mesmo tendo descumprido o ônus probatório que, em abstrato, a ela competia. 

Afastada a equiparação entre ônus e dever jurídico, é possível partir para a definição de “ônus da prova”. Nas palavras de THEODORO JUNIOR (2016, p. 893), “o ônus da prova refere-se à atividade processual de pesquisa da verdade acerca dos fatos que servirão de base ao julgamento da causa”. DINAMARCO (2017, p. 77), em sentido similar, conceitua ônus da prova como sendo o “encargo, atribuído pela lei a cada uma das partes, de demonstrar a ocorrência dos fatos de seu próprio interesse para as decisões a serem proferidas no processo”. Tais definições bastam diante dos restritos limites do presente trabalho, sendo de maior relevância investigar-se, a partir delas, a natureza jurídica do ônus da prova, matéria já embrionariamente antes vista quando se tratou da natureza jurídica da própria prova.

De fato, bastante controvertida é a natureza jurídica das normas que tratam do ônus da prova. Há quem entenda ser norma mista, pois de um lado volta-se (tem por objeto material de estudo) a fatos jurídicos (direito material) e de outro tem aplicabilidade processual (direito processual). Há, entretanto, quem a limite a norma processual e outros que até mesmo defendem ser questão afeta unicamente ao direito material. A presente controvérsia, que voltará a ser tratada no item 3.3.4, parece acompanhar a divergência a respeito da natureza jurídica da própria prova (tema já abordado de forma breve), pois são os mesmos os argumentos que fundamentam cada qual dos posicionamentos.

Embora prevista no livro do processo de conhecimento e cumprimento de sentença, as regras do ônus da prova aplicam-se aos procedimentos especiais e leis extravagantes, inclusive, se não colidentes com o microssistema, ao processo coletivo.

Costuma-se analisar o ônus da prova por dois enfoques: subjetivo e objetivo. Neste momento, importa analisar, rapidamente e de forma separada, cada um dos enfoques mencionados.

3.1 Aspecto subjetivo: ônus da prova como regra de procedimento

É o ônus da prova, sob o enfoque subjetivo, a faculdade concedida às partes de produzir provas aptas à comprovação dos fatos que alegam e que são suficientes para influenciar no julgamento da demanda a seu favor.

Para DINAMARCO (2017, p. 79), “o princípio do interesse é que leva a lei a distribuir o ônus da prova pelo modo que está nos dois incisos do art. 373 do Código de Processo Civil, porque o reconhecimento dos fatos constitutivos aproveitará ao autor e o dos demais, ao réu”. Ainda para o prelecionado autor (2017, p. 82), “o interesse probatório é sempre daquele que, sem a prova, não obteria o reconhecimento dos pressupostos fáticos de sua pretensão”.

O ônus subjetivo volta-se, assim, à necessidade de as partes produzirem as provas dos fatos relevantes que lhes favorecerão. Ele orientará o comportamento das partes de acordo com as suas expectativas, servindo como estímulo psicológico para a produção das provas que lhes interessam, pois permite “dar conhecimento a cada parte de sua parcela de responsabilidade na formação do material probatório destinado à construção do juízo de fato” (CARPES, 2010, p. 52).

O aspecto subjetivo somente é relevante nos processos nos quais prepondera o princípio dispositivo, pois “nos processos dominados pelo princípio inquisitório, dada a necessidade de o próprio órgão judicial aclarar o estado de coisas, não haveria responsabilidade das partes com relação à reunião do material probatório” (PACÍFICO, 2011, p. 160). Justamente por isto, nos processos coletivos há, sem dúvida, forte mitigação do aspecto subjetivo do ônus da prova, pois há neles inequívoco poder-dever do magistrado de produzir as provas que vislumbrar necessárias na busca pela verdade, na medida em que o objeto de tais demandas tem presumida relevância social, sendo indisponível:

“há situações em que as omissões probatórias das partes seriam capazes de comprometer direitos sobre os quais não têm disponibilidade alguma, ou não tem uma disponibilidade plena” [...] “Assim são também as relações de massa, envolvendo comunidades ou grupos mais ou menos amplos, o que também tem por consequência as repercussões “erga omnes” ou ao menos “ultra partes” daquilo que vier a ser julgado – como sucede nas causas relacionadas com o meio ambiente, valores culturais ou históricos, consumidores (CDC, art. 103) etc.”. [...] o mesmo ocorre “nas ações coletivas, especialmente quando promovidas por associações, as quais nem sempre são patrocinadas adequadamente” (DINAMARCO, 2017, p. 58, grifo nosso)

Há quem entenda, cabe frisar, pela inexistência da dimensão subjetiva do ônus da prova, pois

“de um lado, no sistema brasileiro, não importa quem trouxe a prova (mas somente que alguém trouxe a prova), e, por outro lado, a atividade probatória não traz qualquer garantia de resultado favorável, como poderia o legislador “prometer” a uma parte que, mediante o exercício de uma atividade probatória, venceria a demanda? Ou, pelo contrário, que sem o exercício, perderia?”[5].

Não obstante, a convivência de ambos os aspectos do ônus da prova não somente é possível e salutar, mas sobretudo é ponto predominante no entendimento doutrinário e jurisprudencial, com as ressalvas da redução do aspecto subjetivo nas demandas coletivas, pelos motivos analisados acima.

3.2 Aspecto objetivo: ônus da prova como regra de julgamento

O ônus da prova, segundo seu enfoque objetivo, consiste em regra de julgamento e visa evitar o “non liquet” (recusa de julgamento):

As regras do ônus da prova, em sua dimensão objetiva, não são regras de procedimento, não são regras que estruturam o processo. São regras de juízo, isto é, regras de julgamento: conforme se viu, orientam o juiz quando há um non liquet em matéria de fato – vale observar que o sistema não determina quem deve produzir a prova, mas sim quem assume o risco caso ela não se produza (DIDIER; BRAGA; OLIVEIRA, 2018, p. 129)

Assim, ao julgar, o magistrado, diante de uma insanável incerteza (dúvida) sobre determinado fato controvertido, não deixará de proferir, por isto, sentença de mérito, mas decidirá contra aquele a quem competia o ônus da prova, de modo que aqui tal ônus figura como verdadeira regra de desempate.

O ônus da prova, como regra de julgamento, é eventual, pois somente incidirá quando houver incerteza, sendo, de certo modo, excepcional, já que o magistrado deve, de ofício, no mais das vezes, determinar a produção das provas necessárias a busca da verdade.

PACÍFICO (2011, p. 158) defende que a essência do ônus da prova está justamente em seu aspecto objetivo, ou seja, nessa busca em orientar o juiz diante de uma dúvida insanável, até porque o comportamento das partes (em produzir ou não a prova) não gerará por si consequências jurídicas, pois, como visto, pode ser que, mesmo inerte a parte interessada, a alegação que lhe caberia provar reste, ao final, comprovada, seja em vista de provas trazidas pela própria parte contrária, por terceiro interveniente ou pelo Ministério Público (quando age como fiscal da lei), seja diante da iniciativa probatória do juiz.

Alerta o referido autor, entretanto, que a conclusão por ele trazida não significa que deva ser desconsiderado o aspecto subjetivo, pois “embora a regra de julgamento constitua a essência do fenômeno, os riscos da insuficiência de provas para a formação de convicção judicial projetam-se sobre as partes, estimulando-as à produção” (PACÍFICO, 2011, p. 163).

Também defensor da preponderância do aspecto objetivo, LEONEL (2017, p. 437) pondera que as normas que versam sobre o ônus da prova trazem “regras de julgamento, direcionadas predominantemente ao juiz, estabelecendo parâmetros a serem observados, ao final da instrução, para aferição do material probatório e equacionamento da demanda”.

Há entre os aspectos objetivo e subjetivo, no entanto, conforme transcrita lição de PACÍFICO e como já antes asseverado, uma necessária convivência, de modo que um não exclui o outro.

3.3 Distribuição do ônus da prova

A distribuição do ônus da prova pode encontrar expressa previsão legal, ser realizada judicialmente ou, ainda, ser objeto de convenção entre as partes. A primeira, ou seja, a atribuição feita pelo legislador, “é prévia e estática (invariável de acordo com as peculiaridades da causa); a distribuição feita pelo juiz ou pelas partes é considerada dinâmica, porque feita à luz de uma situação concreta” (DIDIER, BRAGA e OLIVEIRA, 2018, p. 126). As duas últimas são verdadeiramente hipóteses de inversão (ou redistribuição) do ônus da prova, justamente porque, como se verá, alteram a distribuição prevista, de acordo com a posição e interesse das partes, de forma prévia e estática pela lei.

Passa-se, neste momento, a analisar as “formas” de atribuição/inversão do ônus da prova, de maneira individualizada para maior e melhor compreensão.

3.3.1 Distribuição Estática do ônus da prova

Dispõe o artigo 373 do Código de Processo Civil: “O ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor”.

A distribuição estática tem remota origem, já sendo adotada pelo direito romano, para o qual “semper onus probandi ei incumbit qui dicit”. De modo geral, portanto, acompanha-se neste ponto a doutrina clássica, segundo a qual a afirmação ou negação que serve de fundamento para o pedido ou para a exceção deve ser provada por quem a alega.

Considera-se aqui a posição da parte em juízo e a espécie do fato a ser provado. Deste modo, segundo o critério estático (rígido) previsto no CPC, o autor tem o ônus de provar os fatos constitutivos de seu direito e o réu, por sua vez, tem o ônus de trazer prova de sua defesa indireta (consistente em fatos novos que sejam modificativos, extintivos ou impeditivos do direito do autor).

O réu tem o ônus de provar, em verdade, a nova situação jurídica trazida na exceção, ou seja, a situação jurídica por ele alegada na contestação e que é diversa daquela que serve de fundamento à inicial. Não cabe ao réu, desta forma, o ônus de provar a simples contrariedade, de modo que se limitada sua defesa à negação dos fatos articulados na inicial, ou à mera alteração da respectiva dinâmica, o ônus da prova continua a ser unicamente do autor.

Aliás, neste ponto cabe lembrar a lição de CHIOVENDA (1969, p. 379), já que, como decorrência do exposto, é forçoso concluir que

a posição do réu é, nesse sentido, até cômoda, dentro do processo, vez que sobre ele só recairá o ônus de provar quando demonstrado o fato constitutivo do direito pelo autor, Sem prova do fato gerador de seu direito, o autor inevitavelmente sucumbe – independentemente de qualquer esforço probatório do réu[6].

 O réu, em palavras diversas, somente terá o ônus da prova se assumir a versão fática trazida pelo autor e, em paralelo, acrescentar um fato superveniente que anule ou altere as consequências que normalmente adviriam dos fatos que compõem a causa de pedir que identifica a ação. É justamente o que ocorre quando alegado pelo réu o pagamento do débito objeto da ação de cobrança: admite ele, em tal hipótese, a existência da dívida, mas acrescenta um fato superveniente (quitação do débito), capaz de, por si, anular as consequências pretendidas (condenação ao pagamento de quantia certa).

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Observa-se, neste ponto, que o artigo 373 do Código de Processo Civil alude a autor e réu, embora o mais correto seria falar em demandante e demandado, o que incluiria fases distintas do processo, além da fase de conhecimento. Assim, o impugnante, na impugnação ao cumprimento de sentença, tem o ônus de comprovar os fatos que fundamentam sua insurgência à pretensão executória. O liquidante tem, do mesmo modo, o ônus de comprovar a pretendida extensão do “quantum debeatur” e o executado, alegando que a penhora realizada no curso da execução recaiu sobre bem de família, tem o ônus de provar a presença dos requisitos previstos no artigo 1º da lei federal 8.009, de 1990, ou seja, tem o encargo de demonstrar que o imóvel objeto da constrição serve de residência para si e sua família.

 De qualquer modo, conforme pondera DINAMARCO (2017, p. 80), aplica-se o dispositivo aqui em comento a todos os sujeitos do processo, observando-se que: o assistente terá o mesmo ônus do assistido; “o Ministério Público, quando atua na condição de fiscal da ordem jurídica, sem portanto ser autor ou assistente, terá o encargo de provar os fatos que houver alegado”.

A lição acima é de especial relevância para o presente trabalho, considerando que o artigo 5º, §1º, da Lei da Ação Civil Pública (Lei Federal 7.347, de 1985) torna obrigatória a intervenção do Ministério Público em todas as ações civis públicas, havendo a mesma obrigação em relação às ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos por força do artigo 92 do Código de Defesa do Consumidor (Lei federal 8.078, de 1990).

Vale aqui breve ressalva no sentido de que referida intervenção somente ocorrerá se o objeto da ação coletiva for direito indisponível:

Ao legislador ordinário somente é possível criar hipóteses de intervenção do Ministério Público dentro dos limites gizados pelo art. 127 da CF. Em outras palavras, a lei somente poderá impor a atuação do Parquet na defesa de interesses indisponíveis, sob pena de violar os princípios constitucionais citados.

Dessa forma, a interpretação a ser dada ao art. 5º, §1º, da LACP é a de que a intervenção do Ministério Público como fiscal da lei nas ações civis públicas propostas pelos demais legitimados ativos será obrigatória desde que na demanda esteja sendo tutelado um interesse indisponível.

Caso disponível o objeto da ação, ao Ministério Público não é dado nela intervir, em face dos princípios constitucionais que regem a sua atuação (SOUZA, p. 81).

A distribuição estática do ônus da prova, tal como prevista nos incisos I e II do art. 373 do CPC, somente será observada no momento da sentença e, como já dito, desde que remanesça incerteza sobre determinado fato controvertido e relevante. Não é preciso que o juiz indique, no saneador, o ônus de acordo com o critério estático, somente tendo o dever de alertar as partes sobre o ônus probatório se houver inversão da “ordem natural”.

3.3.2 Inversão legal do ônus da prova:

As inversões do ônus da prova, ou seja, as hipóteses nas quais não se adota a distribuição estática, podem ser legais, judiciais ou convencionais.

A inversão legal consiste em “uma técnica de redimensionamento das regras do ônus da prova, em homenagem ao princípio da adequação” (DIDIER, BRAGA e OLIVEIRA, 2018, p. 133), sendo, desta forma, ainda na esteira dos ensinamentos dos referidos autores, “determinada pela lei, aprioristicamente, isto é, independentemente do caso concreto e da atuação do juiz. A lei determina que, numa dada situação, haverá a distribuição do ônus da prova diferente do regramento comum previsto no art. 373 do CPC” (op. cit. mesma página).

Na medida em que as regras são fixadas, como visto, aprioristicamente, é forçoso concluir não se estar diante, propriamente, de hipótese de inversão do ônus, mas sim de atribuição legal diferenciada: “rigorosamente não há aí qualquer inversão; há tão somente, uma exceção legal à regra genérica do ônus da prova” (DIDIER, BRAGA e OLIVEIRA, 2018, mesma página).  

Ainda assim, ordinariamente fala-se em inversão legal do ônus probatório, sempre que, como visto, for abandonado o critério estático. Ocorrerá isto quando se estiver diante de uma presunção legal relativa, sendo o que ocorre, v.g., na hipótese do artigo 324 do Código Civil: “A entrega do título ao devedor firma a presunção do pagamento”.

A prova do pagamento compete, em regra, ao devedor (réu na ação de cobrança), já que constitui o pagamento forma direta de extinção da obrigação e, portanto, fato extintivo do direito do credor (autor da ação de cobrança). No entanto, se o título estiver na posse do devedor, inverte-se o ônus probatório trazido abstratamente em lei, pois, a posse do título, faz presumir o pagamento, de modo que o credor passa a ter o encargo de provar não ter ocorrido a quitação.

Cabe neste momento destacar que a inversão em comento jamais se verificará na presunção absoluta, pois esta concerne com exclusividade ao direito material, sem qualquer relação, portanto, com a temática do ônus da prova. Sendo assim, a vulnerabilidade do consumidor, presumida de forma absoluta pelo Código de Defesa do Consumidor, independente de prova, relacionando-se ao direito material, sem vínculo com as regras que tratam do ônus probatório. A lei cria, na presunção absoluta, uma ficção “intransponível”, o que, assim, afasta o debate acerca do ônus da prova.

Há certa celeuma acerca da existência de verdadeira inversão legal do ônus da prova em alguns preceitos legais, envolvendo a essência da discussão, ao que parece, o fato de não se ter como possível, como já acima antevisto, técnica e rigorosamente falando, uma inversão apriorística legal do ônus probatório, pois esta implicaria em verdadeira atribuição diferenciada do ônus e não propriamente em uma inversão. São exemplos de discussão reiterada os artigos 12, §3º, 14, §3º e 38, todos do Código de Defesa do Consumidor.

Dispõe o artigo 12, § 3º, do Código de Defesa do Consumidor que “o fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar: I - que não colocou o produto no mercado; II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro”. Em sentido similar, dispõe o art. 14, §3º, também do Estatuto Consumerista que “o fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro”.

Há quem defenda a existência, em ambos os dispositivos, de uma presunção legal relativa, o que implicaria na consequente e inafastável presença de hipótese legal de inversão do ônus da prova: “Examinando-se o disposto no art. 12, parece certo que se presume, tendo em vista o dano, que exista o defeito, invertendo, assim, o CDC o ônus da prova e o impondo aos fornecedores de bens” (MARQUES, BENJAMIN e MIRAGEM, 2013, p. 435).

Também neste sentido há amplo entendimento jurisprudencial, valendo por ora citar exemplificativamente o seguinte julgado:

CONSUMIDOR. VENDA DE MEDICAMENTO DIVERSO DO RECEITADO PARA ANIMAL DE ESTIMAÇÃO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. PEDIDOS JULGADOS PARCIALMENTE PROCEDENTES. RECURSOS DE APELAÇÃO. CONDENAÇÃO MANTIDA. FATO DO PRODUTO (ACIDENTE DE CONSUMO). MORTE DE ANIMAL DE ESTIMAÇÃO. PRESENÇA DE NEXO DE CAUSALIDADE. A VENDA DE MEDICAMENTO DIVERSO DO RECEITADO IMPLICA NA RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO FORNECEDOR ANTE OS DANOS SUPORTADOS PELO CONSUMIDOR. ALÉM DISSO, A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NO ACIDENTE DE CONSUMO (FATO DO PRODUTO OU DO SERVIÇO) É OPE LEGIS E NÃO OPE JUDICIS, CABENDO AO FORNECEDOR A PROVA DA NÃO COLOCAÇÃO DO PRODUTO NO MERCADO, A INEXISTÊNCIA DE DEFEITO OU A CULPA EXCLUSIVA DO CONSUMIDOR OU DE TERCEIRO. INTELIGÊNCIA DO ART. 12 § 3° E ART. 14 § 3° AMBOS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS (R$5.000,00) MANTIDAS. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA REAFIRMADA. AUTOR QUE SUCUMBIU PARCIALMENTE NÃO APENAS QUANTO AOS DANOS MORAIS, MAS TAMBÉM NO TOCANTE AOS DANOS MATERIAIS. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 326 DO STJ. HONORÁRIOS RECURSAIS. MAJORAÇÃO. RECURSOS DO AUTOR E DA RÉ NÃO PROVIDOS. (TJSP;  Apelação 1003190-68.2017.8.26.0224; Relator (a): Alfredo Attié; Órgão Julgador: 26ª Câmara de Direito Privado; Foro de Guarulhos - 10ª Vara Cível; Data do Julgamento: 04/09/2018; Data de Registro: 04/09/2018, grifo não original)

Diferentemente, parcela da doutrina e da jurisprudência defende que a lei não traz, em ambos os dispositivos acima transcritos, hipótese de inversão do ônus da prova, mas simplesmente dispensa a culpa como elemento da responsabilidade civil, bem como dispensa, igualmente, a prova do defeito ou do vício pelo consumidor. Justamente por isto, cabe ao fornecedor, desde sempre (independentemente de decisão judicial neste sentido), comprovar que o defeito (ou vício) inexiste, pois, “o Código de Defesa do Consumidor explicitamente atribui o ônus da prova aos fornecedores nos arts. 12, 14 e 38” (CARVALHO NETO, 2002, p. 147, grifo nosso).

A hipótese seria, portanto, de atribuição do ônus da prova e não de sua redistribuição (inversão), conforme assim advertem MARINONI, ARENHART e MITIDIERO (2015, p. 271) ao comentarem os dispositivos em exame:

Tais normas afirmam expressamente que o consumidor não precisa provar o defeito do produto ou do serviço, incumbindo ao réu o ônus de provar que esses defeitos não existem. Não há, aí, portanto, inversão ou modificação do ônus da prova. O que há é simples atribuição legal do ônus da prova.

A mesma discussão existe em relação ao parágrafo único do artigo 38 do Código de Defesa do Consumidor, segundo o qual “o ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina”. Para DIDIER, BRAGA e OLIVEIRA (2018, p. 133), este seria um bom exemplo de inversão “ope legis”.

Entretanto, frisa-se também aqui a existência do entendimento segundo o qual a atribuição do ônus da prova, neste ponto, ao fornecedor, é decorrência do disposto no parágrafo único do art. 36 do referido diploma: “o fornecedor, na publicidade de seus produtos ou serviços, manterá, em seu poder, para informação dos legítimos interessados, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem”. Deste modo, o fornecedor, “se acionado, tem o ônus de provar a veracidade da informação” (CARVALHO NETO, 2002, p. 156).

Portanto, assim como o art. 12, §3º e art. 14, §3º, também o art. 38 do CDC traria, segundo esta última corrente, norma que atribui o ônus da prova diretamente ao fornecedor, não havendo aqui hipótese de inversão propriamente dita: “essas três hipóteses, em que pese a maioria dos doutrinadores só relacionar a hipótese do art. 38 como regra, são no nosso entender regras explícitas que impõem o ônus da prova ao fornecedor” (CARVALHO NETO, op cit, mesma página, grifo nosso).

Além da inversão legal (que, como visto, defende-se não ser propriamente uma inversão), há a inversão judicial do ônus da prova, o que ocorrerá nas presunções criadas pelo juiz em seus julgamentos ou por determinação direta do julgador quando autorizado por lei.

MARINONI, ARENHART e MITIDIERO (2015, p. 265) defendem que a inversão judicial não está adstrita às hipóteses legais, devendo ocorrer sempre que assim determinar o direito material em litigio:

A regra do ônus da prova decorre do direito material, algumas situações específicas exigem o seu tratamento diferenciado. Isso pela simples razão de que as situações de direito material não são uniformes. A suposição de que a inversão do ônus da prova deveria estar expressa na lei está presa à idéia de que essa, ao limitar o poder do juiz, garantiria a liberdade das partes

Dado o limitado alcance deste trabalho, serão analisadas apenas algumas das hipóteses de inversão judicial autorizadas por lei.

3.3.3 Distribuição dinâmica do ônus da prova: artigo 373, §1º do CPC

Em determinados casos, a rigidez na partilha do ônus probatório levará a uma solução injusta, distante da verdade. Justamente por isto, o Código de Processo Civil (além de outros diplomas, como o Código de Defesa do Consumidor), previu, para situações específicas, a possibilidade de o juiz distribuir de forma diferenciada o ônus da prova. Neste sentido, dispõe o §1º do art. 373 do CPC, com nossos grifos:

Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.

A distribuição dinâmica preserva a igualdade entre as partes, afastando distorções: “a técnica é a consagração do princípio da igualdade e do princípio da adequação. Visa-se o equilíbrio das partes (art. 7º, CPC): o ônus da prova deve ficar com aquele que, no caso concreto, tem condições de suportá-lo” (DIDIER, BRAGA e OLIVEIRA, 2018, p. 143). Também no mesmo sentido:

No processo civil, a técnica do ônus dinâmico da prova concretiza e aglutina os cânones da solidariedade, da facilitação do acesso à Justiça, da efetividade da prestação jurisdicional e do combate às desigualdades, bem como expressa um renovado due process, tudo a exigir uma genuína e sincera cooperação entre os sujeitos na demanda (STJ, REsp 883656/RS, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, j. 09.03.10, RSTJ vol. 239 p. 1141).

Assim, o juiz (lembre-se que se está diante de uma hipótese de inversão judicial) inverterá[7] o ônus da prova quando a parte que tinha o encargo, a princípio, de provar determinado fato esteja impossibilitada de fazê-lo ou se para ela a atividade probatória for de excessiva dificuldade. Mas inversão só haverá, neste caso, se a parte contrária, que normalmente não teria o ônus da prova, tiver maior facilidade de obtenção daquela específica prova (a inversão implicará na atribuição da carga probatória àquele que tem melhores condições de provar determinado fato)[8]. Por consequência, a inversão ocorrerá, em tal caso, apenas quanto à prova “unilateralmente diabólica, isto é, impossível (ou extremamente difícil) para uma das partes, mas viável para a outra” (DIDIER, BRAGA e OLIVEIRA, 2018, p 135).

Fala-se em distribuição dinâmica, pois não está atrelada a pressupostos prévios e abstratos (estáticos), sendo considerado o dinamismo fático, ou seja, a realidade concreta posta em juízo.

Há aqui uma aproximação clara à doutrina de BENTHAM, para quem, nas palavras de SANTOS (1983, p. 99), “a obrigação da prova, ao menos em um sistema de justiça franco e simples, deve ser imposta, em cada caso, à parte que puder satisfazê-lo com menores inconvenientes, isto é, menor perda de tempo, menores incômodos e menores despesas”[9]. Também há uma adesão parcial ao posicionamento de DEMOGUE, defensor, igualmente, da ideia de que a prova compete a quem está em melhores condições de produzi-la.

Há limites para a distribuição dinâmica, podendo assim ser sinteticamente relacionados: a) limites materiais: o litigante onerado deve estar em situação privilegiada; deve a inversão ocorrer para evitar a prova diabólica e não para suprir a omissão da parte inicialmente onerada; b) limites formais: a inversão deve ser determinada por decisão fundamentada, com prévia ciência às partes.

A distribuição dinâmica, se preenchidos os requisitos legais, é direito da parte e deve ser realizada pelo juiz. Seu fundamento está no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988 e, justamente por isto, há quem defenda que já era ela possível ainda na vigência do CPC anterior (Lei 5.869, de 1973), mesmo que este último diploma não trouxesse qualquer disposição legal expressa a respeito.

Existe controvérsia a respeito de exigir a distribuição dinâmica a presença da verossimilhança, ou seja, e em outros termos, discute-se se há necessidade de que a versão fática trazida pela parte a ser favorecida pela inversão seja verossímil. Humberto Theodoro Junior (2016) defende a existência de tal requisito, mas há posicionamento em sentido diverso, justamente porque o legislador não condicionou a inversão, no caso, à verossimilhança, ao contrário do que fez, v.g., no artigo 6º, VIII, do CDC.

A inversão judicial em comento recairá apenas sobre o fato cuja prova for de difícil ou impossível prova à parte que tinha, segundo o critério estático, o ônus probatório. A inversão, portanto, é parcial, vedada, como regra, a inversão da prova em relação a todos os fatos controvertidos.

Em verdade, e como lembra THEODORO JUNIOR (2016), a distribuição dinâmica do ônus probatório, assim como ocorre na inversão prevista no CDC, implicará no encargo do réu de provar sua tese defensiva e não, propriamente, de provar os fatos constitutivos do direito do autor. Assim, v.g., na ação de responsabilidade do fornecedor fundada em vício do produto, o réu deverá provar sua versão defensiva, demonstrando que inexiste o vício e que o problema decorreu, p. ex., de mau uso do produto pelo consumidor (culpa exclusiva da vítima) e não, por certo, comprovar a tese inicial, segundo a qual o produto está acometido de vício ou defeito.

A inversão do ônus da prova poderá ocorrer de ofício (sem provocação) ou a pedido de uma das partes. O juiz a determinará em decisão interlocutória fundamentada (como será oportunamente visto, isto ocorrerá no saneador ou em decisão posterior, mas sempre antes da sentença para evitar surpresa), assegurado o contraditório, de modo que antes de determinar a inversão deve ouvir as partes a seu respeito.

Mostra-se elogiável a adoção da distribuição dinâmica, pois, como relacionada Eduardo Cambi, “i) pressupõe uma visão cooperatória e publicista do processo civil; ii) busca promover a igualdade, em sentido material, das partes; iii) fundamenta-se nos deveres de lealdade e de colaboração das partes no processo civil”. Aliás, ainda na esteira dos ensinamentos do prelecionado autor, “por consolidar uma visão amplamente solidarista do ônus probandi, supera a visão invididualista (e patrimonialista) do processo civil clássico e, destarte, permite facilitar a tutela judicial dos bens coletivos” (grifos nossos).

Há, no entanto, quem a critique, já que

a dinamização do ônus da prova, além de causar problemas de segurança jurídica, mormente no aspecto calculabilidade, não apresenta ganhos reais; isso porque as partes, com ou sem dinamização, sem um dever de provas, acabam levando aos autos somente as provas que lhes favorecem. Assim, a dinamização não promove a maior completude do material probatório, não parecendo vantajosa a sua adoção pelo novo CPC (RAMOS)[10].

Não vemos, no entanto, insegurança jurídica, já que o CPC determinou que a inversão ocorra antes da instrução probatória, podendo as partes, assim, calcular os riscos de sua inércia. E no mais, não há dúvida de que ao saber, de forma inequívoca, que a prova compete a si, a parte tenderá a produzi-la.

A distribuição dinâmica é excepcional, pois a regra é a distribuição estática. Assim, não sendo aplicada a distribuição dinâmica, dispensa-se, como já antes dito, decisão acerca da atribuição do ônus probat´roio.

3.3.4 Inversão do ônus da prova no CDC:

Outra hipótese recorrente de inversão judicial do ônus da prova é aquela tratada no art. 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor. Prevê este dispositivo a inversão sempre que as alegações do consumidor forem verossímeis ou for ele hipossuficiente.

Apesar da existência de divergências, por razões já antes analisadas, predomina o entendimento de que o dispositivo mencionado constitui, no mínimo de forma predominante, norma de direito processual, pois, seja visto como regra de procedimento, seja visto como regra de julgamento, o ônus da prova tem repercussões imediatas no processo e serve de norte para a postura das partes, bem como para o julgamento a se realizar ao final. Por isto, aplica-se o mencionado dispositivo legal não apenas às demandas (individuais e coletivas) de consumo, mas a todas as demais ações coletivas (independentemente do respectivo objeto)[11], por força do microssistema que rege tais demandas:

A inversão do ônus da prova não se aplica somente às demandas individuais fundadas em relações de consumo, mas a todas as demandas coletivas, desde que presentes no caso específico os pressupostos que determinam a incidência da regra: verossimilhança da afirmação do autor ou hipossuficiência em decorrência do monopólio da informação (LEONEL, 2017, p. 449)[12];

Como sabemos, o art. 6º, VIII, do CDC permite expressamente a inversão do ônus da prova em favor do consumidor. A norma tem evidente caráter processual, ainda que não inserida no Título III do CDC. Ora, a mens legis consiste em integrar por completo as regras processuais de defesa de interesses transindividuais, fazendo da LACP e do CDC como que um só estatuto. Dessa forma, a inversão pode ser aplicada, analogicamente, à defesa judicial de quaisquer interesses transindividuais (MAZZILLI, 2017, p. 725)[13].

Não é outro o entendimento adotado pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça:

A inversão do ônus da prova, prevista no art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, contém comando normativo estritamente processual, o que a põe sob o campo de aplicação do art. 117 do mesmo estatuto, fazendo-a  valer, universalmente, em todos os domínios da Ação Civil Pública, e não só nas relações de consumo (REsp 1049822/RS, Rel. Min. Francisco Falcão,  Primeira Turma, DJe 18.5.2009).

 DINAMARCO (2017, p. 90), no mesmo sentido, defende a extensão da regra a todas as ações coletivas, embora restrinja sua aplicação às associações desprovidas de recursos financeiros:

Essa regra aplica-se tanto às ações individuais dos consumidores quanto às coletivas promovidas por associações legitimadas, quando desprovidas de recursos suficientes para arcar com as despesas da prova (CDC, art. 81, incs I-III). Sendo autor o Ministério Público ou algum outro ente estatal, todavia, por não serem eles hipossuficientes, nesses casos o ônus probatório não deve ser invertido por ato do juiz.

A ressalva feita pelo prelecionado autor, no sentido de ser necessária a hipossuficiência financeira, encontra resistência por parte daqueles que entendem ser a hipossuficiência a que se refere o inciso VIII do art. 6º, do CDC, técnica e não financeira (como logo se verá). Também há forte entendimento no sentido de que a inversão do ônus da prova poderá favorecer não apenas as associações, mas também os demais legitimados, sobretudo o Ministério Público:

CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. JULGAMENTO MONOCRÁTICO. LEGALIDADE. ART.  557  DO  CPC.  POSSIBILIDADE DE AGRAVO INTERNO.  AÇÃO CIVIL PÚBLICA.  MINISTÉRIO PÚBLICO.  INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. POSSIBILIDADE. 1.  Não há óbice a que seja invertido o ônus da prova em ação coletiva - providência que, em realidade, beneficia a coletividade consumidora -, ainda   que se cuide de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público. 2.  Deveras, "a defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas" - a qual deverá sempre ser facilitada, por exemplo, com a inversão do ônus da prova - “poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo" (art. 81 do CDC). 3. Recurso especial improvido. (STJ, REsp 951785/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, DJe 18/02/2011, RJTJRS vol. 280 p. 64).

No mesmo sentido, entendendo possível a inversão para todo e qualquer legitimado, MAZZILLI (2017, p. 725) justifica que “é o lesado que tem de ser hipossuficiente, não seu substituto processual”. Adotando entendimento até mesmo mais abrangente, o Ministro Herman Benjamin firmou o posicionamento, nos autos do REsp 1235467/RS (Dje 17.11.16) segundo o qual “na relação jurídica em que há substituição processual, a hipossuficiência deve ser analisada na perspectiva do substituto processual ou dos sujeitos-titulares do bem jurídico primário, qualquer uma das duas hipóteses bastando para legitimar a inversão do ônus da prova” (grifo nosso).

O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, em acórdão da lavra do Ministro Gurgel de Faria, foi ainda mais além, asseverando que, proposta a ação pelo Ministério Público, sequer há de se falar em hipossuficiência, sendo esta, portanto, presumida: “Na ação consumerista deflagrada pelo Ministério Público, não se indaga  de hipossuficiência do demandante para a inversão do ônus da prova,  pois  a  presença  do  Parquet como substituto processual da coletividade assim o justifica” (AgInt no AREsp 222660/MS, j. 28/09/17, Dje 19/12/17, grifo nosso).

Pela literalidade do artigo 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, a inversão far-se-á possível ainda que para o réu a prova seja de difícil produção. MARQUES, BENJAMIN e MIRAGEM (2013, p. 292), neste sentido, asseveram que, além da hipossuficiência e da verossimilhança,

não há qualquer outra exigência no CDC, sendo assim facultado ao juiz inverter o ônus da prova inclusive quando esta prova é difícil mesmo para o fornecedor, parte mais forte e expert na relação, pois o espírito do CDC é justamente de facilitar a defesa dos direitos dos consumidores e não o contrário, impondo provar o que é em verdade o “risco profissional” ao vulnerável e leigo – consumidor.

Em sentido diverso, DINAMARCO entende vedada a inversão que torne impossível ou muito difícil a prova para o fornecedor, justificando para tanto que,

sendo o processo do consumidor um microssistema integrante do sistema regido pelo Código de Processo Civil, as restrições contidas neste aplicam-se também aos processos entre fornecedores e consumidores de bens ou serviços – até porque o contrário implicaria ultraje à garantia constitucional do “due processo of law”

De fato, o artigo 6º, VIII, do Estatuto Consumerista não trouxe a ressalva prevista no §2º do art. 373 do Código de Processo Civil (“A decisão prevista no § 1o deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil”). Defensável, por isto, embora se reconheça controverso, o entendimento de que a inversão seja possível, em qualquer ação coletiva, mesmo que isto implique dificuldades quanto a produção da prova para o réu.

Cabe ressaltar que, presentes os pressupostos legais, é a inversão direito da parte-autora[14], podendo operar-se a pedido do interessado ou mesmo de ofício, por se estar diante de norma de ordem pública. Deste modo, não há na inversão discricionariedade judicial, tratando-se de dever do juiz, uma vez preenchidos os requisitos, determina-la: “a inversão ou não do ônus não fica a critério do juiz, pois estando indicadas nos autos quaisquer das hipóteses, ele terá o dever de assim proceder” (NOGUEIRA, 1998, p. 124).

A discricionariedade existente restringe-se à avaliação da presença dos requisitos legais, pois “a inversão é sempre uma decisão do juiz, que deverá considerar as peculiaridades do caso concreto” (DIDIER; BRAGA; OLIVEIRA, 2018, p 150). Entretanto, concluindo o julgador pela verossimilhança das alegações iniciais ou, ainda, pela hipossuficiência do consumidor, outra via não tem que não a de inverter o ônus probatório, o que deve fazer sempre em favor do consumidor, jamais contra este.

Como visto, são requisitos legais para a inversão do ônus probatório, a verossimilhança ou a hipossuficiência[15]. A verossimilhança “resulta da avaliação do material probatório disponível, das regras de experiência e das presunções simples pelo juiz” (PACÍFICO, p. 188).  Utilizando-se das regras de experiência e presunções simples, o juiz conclui que um fato (não provado) é consequência ou pressuposto de outro fato (provado), salvo se a parte adversa lograr comprovar o contrário (THEODORO JUNIOR, 2016). Não se trata, por isto, propriamente, de inversão do ônus da prova, mas sim de regra a conduzir a avaliação judicial das provas produzidas, pois

ao permitir a identificação da verossimilhança da alegação, conforme o que ordinariamente acontece, o legislador propicia a aceitação da probabilidade de que a afirmação seja verdadeira, na esteira das regras de experiencia comum, justificando a presunção judicial quanto ao fato afirmado (LEONEL, 2017, p. 440).

A hipossuficiência prevista em lei, segundo entendimento predominante, é técnica (dificuldade concreta de o consumidor/autor coletivo acessar as informações ou conhecimentos técnicos necessários à comprovação do fato alegado)[16]. Reconhece-se, assim, que a hipossuficiência é decorrência do monopólio, pela parte contrária, das informações relevantes à solução da controvérsia. Por consequência, “a inversão deve se operar sobre o fato (ou fatos) a respeito do qual se verifique a assimetria de informação entre o consumidor e o fornecedor” (PACÍFICO, 2011, p. 192), não podendo ir além disto.

Discute-se se os requisitos analisados são alternativos ou cumulativos, predominando o primeiro entendimento, sobretudo porque o legislador empregou, no dispositivo ora comentado, a conjunção alternativa “ou”: “note-se que a partícula “ou” bem esclarece que, a favor do consumidor, pode o juiz inverter o ônus da prova quando apenas uma das duas hipóteses está presente no caso” (MARQUES, BENJAMIN e MIRAGEM, 2013, p. 291).

Aqueles que entendem pela necessidade de cumulação argumentam que a prescindibilidade da verossimilhança poderia implicar na inversão mesmo à luz de alegações do consumidor (ou autor coletivo) absurdas, pouco críveis. Porém, como lembram DIDIER, BRAGA e OLIVEIRA (2018, p 151), “caso a alegação seja absurda, o magistrado formará a convicção de inexistência da ocorrência do fato, sequer havendo a necessidade de inversão do ônus da prova, que depende de um estado de dúvida”.

Há, ainda, corrente intermediária, segundo a qual “a solução só possa ser encontrada nos casos concretos – nuns bastando a hipossuficiência; noutros, sendo necessária a associação dos dois requisitos” (PACÍFICO, 2011, p. 196).

Não há limites quanto aos pontos controvertidos a serem alcançados pela inversão. Como lembra CARVALHO NETO (2002, p. 171),  podem ser objeto da inversão

desde a prova da relação jurídica, que é absolutamente razoável tendo em vista o costume de não se fornecer notas fiscais, cópias de contra e etc., até a existência, o nexo e a extensão do dano, valendo sempre ter em conta a dificuldade da prova por parte do consumidor

O artigo 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor perdeu em grande parte sua inicial importância, considerando a adoção, pelo Novo Código de Processo Civil da teoria das cargas probatórias dinâmicas. Isto porque a maioria dos casos nos quais o autor da ação coletiva ou o consumidor autor da ação individual tem dificuldade na produção da prova, pode ser bem solucionada nos termos do artigo 373, §1º, do CPC.

Entretanto, não houve revogação do art. 6º, VIII, do CDC[17], sobressaindo sua importância, em especial, pela inexistência de exigência de que a prova objeto da inversão seja subjetivamente difícil, de modo que, por meio de tal dispositivo, e a princípio, a inversão ocorrerá mesmo para as provas objetivamente difíceis.

3.3.5 Aspectos relevantes da decisão que inverte o ônus da prova

Muito se discutiu a respeito do momento em que deveria ocorrer a inversão judicial do ônus probatório autorizada em lei. Considerando a prevalência do aspecto objetivo do ônus da prova, parecia mais razoável entender que isto somente se daria ao final, já na sentença.

Entretanto, o novo Código de Processo Civil dirime a dúvida antes existente, ao pontuar expressamente que a inversão em comento deve ocorrer na decisão saneadora (art. 357, III)[18], enaltecendo, com isto, o aspecto subjetivo do ônus da prova, de modo a entende-lo predominantemente como regra de procedimento.

Nada obsta, entretanto, que a inversão ocorra em momento posterior, ou até mesmo antes do saneador (o que se dará na produção antecipada de provas), bastando que o juiz disto alerte as partes de forma prévia e clara, conforme expressa ressalva, neste sentido, do §1º do art. 373 do CPC (“...desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído”).

O momento fixado no CPC para a inversão do ônus da prova aplica-se a qualquer processo:

sendo essa a regência do momento de inversão judicial do ônus da prova segundo esse Código de aplicação geral ao processo civil brasileiro (CPC, art. 1º), o disposto em seu art. 357, inc III, impõe-se em todos os processos cíveis realizados neste país, seja quando regidos por ele próprio, seja quando por outras leis – como é o caso do Código de defesa do Consumidor” (DINAMARCO, 2017, p. 90).

No mesmo sentido entende CAMBI (op cit, p. 546), justificando que o CPC “quer com isso evitar decisões surpresas, que contrariam as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, forçando que o juiz se preocupe com a distribuição da carga probatória a partir da defesa do demandado”.

Modificada a condição fática de uma das partes é possível que o juiz, antes de encerrada a instrução, altere a decisão que distribuiu o ônus da prova. Assim, se a parte que não tinha condições de produzir a prova passar a tê-lo, o juiz a ela imputará o ônus e, diversamente, se a parte a quem foi determinada a prova deixar de ter condições de produzi-la, passando a inexistir, consequentemente, a condição de “hipossuficiência probatória” em relação à parte adversa, retoma-se a distribuição estática:

Uma situação que pode ser imaginada é a possibilidade de alteração da situação fática no decorrer do processo provocar uma nova redistribuição dos encargos probatórios. Ou seja, pode ser que, após realizada a dinamização, a parte que, inicialmente, não detinha condições de arcar com o ônus de provar determinado fato venha a adquiri-lo e a situação contrária, em que a outra parte deixa de possuir a hipossuficiência probatória que legitimou a dinamização. Nas duas situações, seria viável uma nova redistribuição dos encargos probatórios, desde que haja decisão motivada e a oportunização da parte se desincumbir desse novo ônus (DIDIER, BRAGA e OLIVEIRA, 2018, p 149).

Contra a decisão que redistribui o ônus da prova cabe o recurso de Agravo de Instrumento, conforme previsto no artigo 1015, XI, do Código de Processo Civil. Apesar de a redação do mencionado inciso fazer crer que somente cabe o agravo de instrumento contra a decisão que defere a redistribuição, razoável entender-se, por simetria, que o recurso também é cabível caso seja negado o pedido de inversão.

3.3.6 Inversão Convencional do ônus da prova

Dispõe o §3º do art. 373 do CPC: “A distribuição diversa do ônus da prova também pode ocorrer por convenção das partes, salvo quando: I - recair sobre direito indisponível da parte; II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito”.

Como se vê, as partes podem, consensualmente, prever critérios próprios, diferenciados, de distribuição do ônus da prova, desde que o direito seja disponível e, ainda, desde que a alteração acordada não torne excessivamente difícil o exercício do direito de prova a uma das partes.

A alteração constará em negócio jurídico celebrado por instrumento público ou particular, ou mesmo por petição conjunta, antes ou no curso do processo, respeitados os requisitos gerais do negócio jurídico previstos na legislação civil (objeto lícito, agente capaz e forma não vedada em lei). O juiz deverá reconhecer, de ofício, a ausência dos requisitos mencionados, porém lhe é vedado redistribuir o ônus de forma diversa do que fora acordado.

Embora a lei diga que não é cabível a inversão consensual em direitos indisponíveis, o que, a princípio, obstaria que isto ocorresse em ação coletiva, o art. 51, VI, do CDC veda a inversão do ônus da prova apenas em prejuízo do consumidor. A contrário sensu, é possível a inversão convencional que favoreça o autor da ação coletiva, tanto que o Projeto da nova LACP (PL 5.139/09[19]) prevê expressamente a possibilidade de acordo neste sentido.

3.3.7 Inversão do custo financeiro da prova

Por força dos arts. 87 do CDC e 18 da LACP, não se aplica às ações coletivas o disposto no art. 91 do CPC, razão pela qual os autores estão dispensados de adiantar os honorários periciais e outras despesas para a realização da prova.

A dispensa do recolhimento inviabiliza, em muitos casos, a realização da prova, sobretudo a pericial, pois inimaginável que o “expert” se predisponha a laborar gratuitamente, nem sendo razoável que isto dele se exija. Diante de tamanho impasse, o Superior Tribunal de Justiça inicialmente abandonou, especificamente quanto aos honorários periciais, a isenção prevista nos artigos 87 do Código de Defesa do Consumidor e 17 da LACP, conforme se percebe, dentre outros, dos julgamentos proferidos nos REsp 933.079/SC, REsp 891.743/SP e REsp 733.456/SP. Confira-se, a propósito, a ementa do primeiro julgamento mencionado:

PROCESSO CIVIL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - HONORÁRIOS PERICIAIS  - MINISTÉRIO PÚBLICO - ART. 18 DA LEI 7.347/85. 1. Na ação civil pública, a questão do adiantamento dos honorários periciais, como estabelecido nas normas próprias da Lei 7.347/85, com a redação dada ao art. 18 da Lei 8.078/90, foge inteiramente das regras gerais do CPC. 2. Posiciona-se o STJ no sentido de não impor ao Ministério Público condenação em honorários advocatícios, seguindo a regra de que na ação civil pública somente há condenação em honorários quando o autor for considerado litigante de má-fé. 3. Em relação ao adiantamento das despesas com a prova pericial, a isenção inicial do MP não é aceita pela jurisprudência de ambas as turmas, diante da dificuldade gerada pela adoção da tese. 4. Abandono da interpretação literal para impor ao parquet a obrigação de antecipar honorários de perito, quando figure como autor na ação civil pública. 5. Recurso especial provido. (Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, DJe 24/11/2008, grifo não original).

O entendimento inicial da Corte Superior, no entanto, recebeu fortes críticas doutrinárias e resistência da própria jurisprudência:

Não posso concordar com o “abandono da interpretação” literal dos arts. 87 do CDC e 17 da LACP, pois os honorários periciais constituem uma das principais despesas a serem adiantadas pelas partes, e não tem qualquer sentido lógico ou jurídico a sua exclusão da isenção legal (NEVES, 2014, p. 433)[20].

Solução que se mostra viável e bastante razoável consiste na realização de perícias por órgãos do Estado ou por meio de convênios firmados com Universidades Públicas, conforme sugestão trazida por Daniel Amorim Assumpção Neves (2014, p. 434).

Entretanto, mesmo que adotada a solução proposta, certo é que até o momento inexistem os tais convênios e os órgãos públicos que realizam perícia são escassos em quantidade e recursos. Permanece a dificuldade prática na realização da perícia em ações coletivas. Justamente por isto, formou-se um segundo e aparentemente mais adequado entendimento, no sentido de que, para viabilizar o acesso à tutela coletiva e em se tratando de interesse transindividual, os honorários periciais devem ser adiantados pela Fazenda Pública, vedado o desvio de verbas do fundo previsto no art. 13 da LACP[21]. Assim defende MAZZILLI:

Se a perícia foi determinada em proveito da defesa de interesses transindividuais, e se a lei dispensou o adiantamento de custas nas ações de caráter coletivo, é porque transferiu o ônus para o Estado. Este deverá viabilizar a perícia com seus próprios órgãos, ou, em caso contrário, arcar com seu custo. A responsabilidade tem mesmo de ser da Fazenda, sob pena de a garantia democrática de acesso coletivo à Justiça restar prejudicada[22].

Em relação ao Ministério Público, o Superior Tribunal de Justiça inclusive já decidiu, em sede de recurso repetitivo (Tema 510), que

não é possível se exigir do Ministério Público o adiantamento de honorários periciais em ações civis públicas. Ocorre que a referida isenção conferida ao Ministério Público em relação ao adiantamento dos honorários periciais não pode obrigar que o perito exerça seu ofício gratuitamente, tampouco transferir ao réu o encargo de financiar ações contra ele movidas. Dessa forma, considera-se aplicável, por analogia, a Súmula n. 232 desta Corte Superior ('A Fazenda Pública, quando parte no processo, fica sujeita à exigência do depósito prévio dos honorários do perito'), a determinar que a Fazenda Pública ao qual se acha vinculado o Parquet arque com tais despesas (RESP 1.253.844/SC).

As dificuldades práticas quanto ao custeio da prova pericial nas ações coletivas serviram de mais um elemento a aumentar a divergência já antes existente acerca de estar o ônus financeiro da prova atrelado ao próprio ônus da prova.

Para DINAMARCO (2017, p. 87), “alterado o ônus da prova, altera-se também o encargo financeiro de seu custeio”. PACÍFICO (2011, p. 197), no mesmo sentido, afirma que “ao se sustentar que deva a inversão ocorrer antes da sentença (em geral na decisão de saneamento), também parece lógico inverter o ônus financeiro da prova”. Se há inversão do ônus há consequente inversão do interesse na produção da prova, o que, na presente visão, implicaria em consequente alteração subjetiva do encargo financeiro respectivo.

Neste sentido o entendimento do Desembargador Sérgio Shimura:

PROVA - PERÍCIA GRAFOTÉCNICA - CONSUMIDOR - CUSTEIO – Autora agravante que contesta a assinatura do contrato que alega não ter firmado - Ônus de provar a autenticidade da assinatura que cabe à parte que produziu o documento, no caso, a ré - Inteligência do art. 429, II, do CPC – Relação entre cliente e ré caracterizada como relação de consumo – Inversão do ônus da prova – Regra de procedimento - O ônus da prova compreende o ônus financeiro e o dever de arcar com o custeio da prova técnica – Prevalência da norma específica prevista no art. 429, II, CPC e das normas do CDC sobre os arts. 95 e 373 do CPC/2015 - RECURSO PROVIDO. (TJSP;  Agravo de Instrumento 2150388-51.2018.8.26.0000; Relator (a): Sérgio Shimura; Órgão Julgador: 23ª Câmara de Direito Privado; Foro de São Bernardo do Campo - 7ª Vara Cível; Data do Julgamento: 18/09/2018; Data de Registro: 18/09/2018, grifo não original)

Em sentido diverso, MAZZILLI (2017, p. 713) justifica que a inversão do ônus da prova diz respeito apenas indiretamente ao ônus financeiro: “a inversão do ônus da prova faz com que o réu, se não quiser antecipar as despesas da realização de uma prova, arque com as consequências de não se ter desincumbido da produção de uma prova que passou a ser ônus seu”.

Observo que há grande resistência jurisprudencial à inversão do ônus financeiro da prova, conforme se percebe das ementas abaixo exemplificativamente transcritas:

AGRAVO DE INSTRUMENTO – HONORÁRIOS PERICIAIS – Prova pericial determinada, de ofício, pela D. Magistrada – Artigo 95 do Código de Processo Civil dispõe sobre a repartição dos honorários periciais quando a prova é determinada de ofício – Inversão do ônus da prova que não implica no custeio dos honorários periciais - Precedentes desta Câmara – Decisão reformada - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (TJSP;  Agravo de Instrumento 2081556-63.2018.8.26.0000; Relator (a): Ana Maria Baldy; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro de Sorocaba - 1ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 11/09/2018; Data de Registro: 11/09/2018, grifo não original)

PROCESSUAL CIVIL (CPC/1973). AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. REEXAME DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE.   SÚMULA   7/STJ.  HONORÁRIOS DE PERITO.  CUSTEIO TRANSFERIDO PARA A PARTE RÉ. IMPOSSIBILIDADE. ACÓRDÃO RECORRIDO EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA. SÚMULA 83/STJ. RAZÕES RECURSAIS INSUFICIENTE PARA A ALTERAÇÃO DA CONCLUSÃO DA DECISÃO AGRAVADA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. (STJ, AgRg no REsp 1378152/SP, REL. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, DJe 09/09/2016).

COMPRA E VENDA DE IMÓVEL – Ação de rescisão contratual e indenização por vícios construtivos - Prova pericial – Ordem de pagamento das despesas pelo autor – Manutenção – Previsão expressa do art. 33 do CPC – Inversão do ônus da prova prevista na lei consumerista que não tem condão de carrear ao fornecedor o encargo de custear a produção de prova requerida pelo consumidor ou determinada de ofício, exceto quando presente dificuldade técnica do autor em demonstrar seu direito, aqui não evidenciada – Recurso desprovido, com observação. (TJSP;  Agravo de Instrumento 2045019-39.2016.8.26.0000; Relator (a): Galdino Toledo Júnior; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro de Sumaré - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 12/04/2016; Data de Registro: 12/04/2016, grifo não original)

O Anteprojeto do CPC expressamente previa que a inversão do ônus não implicava a alteração das regras do encargo financeiro, porém o dispositivo original que assim previa não foi incluído na redação final. Permanece, portanto, a divergência no tema presente, sem solução legislativa.

3.4 exibição da prova documental: dever jurídico

No tocante à exibição de documentos discutia-se, na vigência do revogado Estatuto Processual (CPC/73), se havia ou não um dever jurídico, ou, ao contrário, se, ainda aqui estar-se-ia diante de um ônus. Prevaleceu o entendimento de que não há, na hipótese, dever jurídico, de modo que não se pode compelir a parte à exibição, conforme assim assentado na súmula 372 do STJ, “na ação de exibição de documentos, não cabe a aplicação de multa Cominatória”.

Ainda assim, foram vários os julgados subsequentes em sentido contrário, de modo que o STJ reafirmou o entendimento sumulado no Resp 1333988/SP (Tema 705), julgado em 09.04.14 sujeito à sistemática dos recursos repetitivos. Foi novamente consagrada a tese de que, na exibição de documento, seja ela autônoma ou incidental, não cabe a cominação de multa para compelir a parte a exibir o pretendido documento.

Entretanto, “o novo CPC expressamente positivou o fim da súmula 372, quando, em seu art. 400, parágrafo único, previu expressamente a possibilidade não só de que o juiz imponha multa para o caso de não exibição de documentos, mas também que utilize outras técnicas, como a busca e apreensão” (RAMOS, op cit, p. 275).

É certo que o art. 379 do CPC em vigor ressalva o direito de a parte não produzir provas contra si mesma, porém tal direito deve encontrar ressonância (previsão) no ordenamento. A Constituição Federal só assegura referido direito em caso de autoincriminação, sendo ele ainda admissível para a tutela de outros direitos fundamentais, como a intimidade e o sigilo profissional.

Ocorre que mesmo na vigência do Novo CPC, persistiu forte resistência ao reconhecimento da exibição de documentos como dever jurídico. Diversos são os julgados do E. Tribunal de Justiça de São Paulo que afastam, por consequência, a imposição de multa na hipótese de descumprida a determinação judicial para a exibição do documento, entendendo pela aplicação da súmula 372 do STJ:

Agravo de Instrumento. Cumprimento de sentença. Determinada a juntada dos documentos faltantes, sob pena de multa diária, ainda que limitada. Inconformismo da ré. Exibição de documentos. Impossibilidade de aplicação da multa. Súmula 372 do STJ. Presunção de veracidade do afirmado em ação principal. Inteligência do caput do art. 400 do CPC. Decisão reformada. Recurso provido. (TJSP;  Agravo de Instrumento 2159383-53.2018.8.26.0000; Relator (a): Hélio Nogueira; Órgão Julgador: 22ª Câmara de Direito Privado; Foro de Presidente Prudente - 2ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 12/09/2018; Data de Registro: 12/09/2018)

APELAÇÃO. Ação de obrigação de fazer – Exibição de instrumento contratual de empréstimo bancário – Sentença de procedência – Incidência de multa cominatória – Recurso do banco réu. EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS – Falta de interesse de agir verificada – Pretensão cautelar de natureza satisfativa não replicada no atual regramento processual, o que implica a sua impossibilidade por ausente previsão legal – Falta de necessidade a caracterizar o interesse processual, inexistindo comprovação da recusa do réu em fornecer os documentos administrativamente, com recolhimento da referente taxa e conferindo prazo razoável para o cumprimento da solicitação – Desnecessidade concreta da atividade jurisdicional – Réu, ademais, que apresentou os documentos em sede de defesa, sem resistir ao pedido – Impossibilidade de aplicação de multa cominatória em ação de exibição de documentos – Inteligência da Súmula nº 372 do STJ – Extinção do processo sem julgamento do mérito, na forma do art. 485, VI do CPC. Recurso provido. (TJSP;  Apelação 1018732-19.2017.8.26.0001; Relator (a): Helio Faria; Órgão Julgador: 18ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional I - Santana - 9ª Vara Cível; Data do Julgamento: 27/11/2018; Data de Registro: 06/12/2018)

AGRAVO DE INSTRUMENTO. Cautelar de exibição de documentos. Fase de cumprimento de sentença. Determinada a apresentação de documentos, no prazo de quinze dias, sob pena de multa diária. Multa incabível. Incidência do teor da Súmula n° 372, do C. STJ. Advento do Código de Processo Civil que não revogou automaticamente referida Súmula. Possibilidade, ao Magistrado, da adoção de outras medidas coercitivas para a efetividade da decisão judicial, conforme a disciplina do artigo 400, do CPC. Decisão reformada. PREQUESTIONAMENTO. Desnecessidade de menção expressa a todos os dispositivos legais. Recurso provido. (TJSP;  Agravo de Instrumento 2076252-83.2018.8.26.0000; Relator (a): Jairo Oliveira Júnior; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Privado; Foro de Barretos - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 22/11/2018; Data de Registro: 22/11/2018)

Há de se ponderar que, por evidente, o entendimento acima longe está de ser predominante, havendo julgados em sentido oposto, os quais, já adaptados ao Novo Código de Processo Civil, entendem pela revogação da Súmula 372 do Egrégio Superior Tribunal de Justiça:

ASTREINTE – Exibição de documentos como medida probatória determinada pelo juiz em liquidação de sentença proferida em ação revisional de contrato bancário – Aplicação da multa pelo descumprimento da ordem de exibição ou de juntada aos autos dos extratos bancários no período a ser considerado pela perita judicial no cálculo do valor devido – Admissibilidade – Tese da impossibilidade de aplicação de astreinte na exibição de documentos (cautelar antecedente ou incidental) ficou superada pela lei nova, estando expressamente autorizada a imposição de multa diária ou qualquer outra medida indutiva, coercitiva, mandamental ou sub-rogatória adequada a compelir a parte a colaborar na produção de prova, como a juntada aos autos de documento que se encontre em seu poder - Inteligência do parágrafo único do art. 400 do CPC/2015 – Hipótese em que a exibição é necessária para tornar possível a realização de perícia contábil em liquidação de sentença proferida em ação revisional de contrato – Decisão mantida – Recurso desprovido. (TJSP;  Agravo de Instrumento 2157621-02.2018.8.26.0000; Relator (a): Álvaro Torres Júnior ; Órgão Julgador: 20ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 41ª Vara Cível; Data do Julgamento: 12/11/2018; Data de Registro: 14/11/2018)

Agravo de Instrumento. Exibição de Documentos. Cumprimento de Sentença. Ato atentatório à dignidade da Justiça. Fixação de multa de 20% sobre o valor da causa. Art. 77, IV c.c. § 2º, CPC. Desobediência ao título exequendo. Recalcitrância da Instituição Financeira, na exibição dos documentos. Art. 400, CPC, bem aplicado. Súmula 372, STJ, que restou revogada pelas novas disposições do CPC, art. 396 e seguintes. Decisão mantida. Recurso não provido. (TJSP;  Agravo de Instrumento 2179670-37.2018.8.26.0000; Relator (a): Bonilha Filho; Órgão Julgador: 26ª Câmara de Direito Privado; Foro de Piracicaba - 2ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 14/11/2018; Data de Registro: 14/11/2018)

AGRAVO DE INSTRUMENTO. Ação de exibição de documento comum às partes. Negócio bancário. Cumprimento de sentença. Estipulação de multa em caso de resistência injustificada. Legitimidade. Proporcionalidade que também é observada, particularmente tendo-se em conta a fortuna da obrigada. RECURSO DENEGADO. (TJSP;  Agravo de Instrumento 2219103-48.2018.8.26.0000; Relator (a): Sebastião Flávio; Órgão Julgador: 23ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 12/11/2018; Data de Registro: 12/11/2018)

De qualquer modo, a divergência sobre a questão continuou tamanha que o E. STJ resolveu, mais uma vez, reanalisar a matéria, razão pela qual atualmente a questão atinente ao “Cabimento ou não de multa cominatória na exibição, incidental ou autônoma, de documento relativo a direito disponível, na vigência do CPC/2015”, é objeto de novo Recurso Repetitivo (Tema 1000), ainda pendente de julgamento e com determinação de suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a matéria e tramitem no território nacional.

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Sobre o autor
Thomaz Corrêa Farqui

Juiz de Direito. Mestre em Direito pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARQUI, Thomaz Corrêa. Ônus da prova nas ações coletivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5894, 21 ago. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75616. Acesso em: 19 abr. 2024.

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