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O Estado-força e o não-Estado

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13/11/2005 às 00:00
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Uma crítica ao Estado Jurídico

De modo contrário, porém, muitos alegam contra as boas intenções da auto-regulagem do Estado. Por exemplo, um crítico mordaz da Teoria da Autolimitação será Hans Kelsen, que não poupará as boas intenções dos teóricos formuladores:

Hans Kelsen depois de reduzir arbitrariamente a doutrina dualista Estado-Direito à teoria do Estado criador de Direito, compraz-se em demonstrar o absurdo lógico dos princípios da "autolimitação", comparando esta explicação com a dos teólogos empenhados em explicar como Deus, criador do mundo, se fez homem e se submeteu às leis da humanidade para entrar em relação com o homem e o mundo. Kelsen, cujo panteísmo jurídico é um simples capítulo de seu panteísmo universal, compara, então, o mistério da Encarnação com o "mistério" da autolimitação do Estado (Reale, 2000, p. 260).

A crítica que se pode endereçar ao próprio Kelsen, neste caso, é de duas ordens: 1) não há Estado totalmente desobrigado de suas responsabilidades, e; 2) o simples contrato jurídico também não obriga o Estado a cumprir seu papel. Reale acentua a segunda linha de questionamento:

Kelsen esquece, porém, que também ele recorre a um ato de fé quando, identificando o Direito com o Estado, põe como fundamento de todo o ordenamento jurídico uma norma geral hipotética (pacta sunt servanda [10]), sem cuja aceitação impossível seria explicar a competência da autoridade estatal emanadora das leis... (Reale, 2000, p. 261).

Algumas passagens do próprio autor alemão, neste sentido, revelam com clareza essa questão da não-obrigação estatal diante de sua ilimitada condição jurídica e política. Também é uma clara indicação das condições de destaque que iria assumir dali em diante a doutrina do Poder Extroverso:

Admitindo a dualidade de Estado e Direito, a doutrina tradicional coloca essa questão de modo ligeiramente diferente: se o Estado é a autoridade de onde emana a ordem jurídica, como pode ele estar sujeito a essa ordem e, como é possível o indivíduo receber dela obrigações e direitos? [...] O Direito, na realidade, é criado por indivíduos humanos, e indivíduos que criam Direito podem, indubitavelmente, estar sujeitos ao Direito. Mais ainda, eles são órgãos do Estado apenas na medida em que ajam em conformidade com as normas que regulam sua função criadora de Direito; e o Direito é criado pelo Estado apenas na medida em que seja criado por um órgão do Estado, ou seja, na medida em que o Direito seja criado de acordo com o Direito. A afirmação de que o Direito é criado pelo Estado significa apenas que o Direito regulamenta sua própria criação (Kelsen, pp. 284-285).

Sem dúvida é o caso de invocarmos toda a teoria subseqüente da responsabilidade objetiva do Estado a partir da elevação/reconhecimento do Estado à condição de pessoa jurídica de direito público. Com isso, ainda é possível pensar que: se o Direito cria o Direito e este mais novo Direito traça o perfil do Estado, então, o Direito sempre será condicionante do Estado e, desse modo, a criação do Direito pelo Estado é uma evidente demonstração da sua capacidade/necessidade de autolimitação do próprio Poder Extroverso já experimentado.

Essa linha de raciocínio nos ajudaria a compreender que o Estado Jurídico colocaria freios jurídicos e limites éticos ao uso da "violência organizada", pelo Estado-Força.


Estado–Força e Direito

Desse ponto em diante, torna-se limitada demais a investigação em torno da idéia de que o Estado é mero instrumento de poder e de força [11] (e ainda que o seja em alguns momentos), pois o quase-eterno maniqueísmo político assegurou duas vias de entendimento, por muito tempo: 1) a sociedade capitalista é a mais desenvolvida e por isso é boa; dela decorre um Estado Liberal muito bom e, logo, o Direito produzido será equilibrado e pacificador para todos; 2) a sociedade de classes é a barbárie organizada e o Estado Capitalista é o agente de castração dos pobres e, assim, o Direito é o segredo da dominação da classe burguesa.

É esse viés simplicador ao extremo que precisa ser expandido, uma vez que o próprio Estado Jurídico decorre da leitura crítica da história política e por isso passou a ser conclamado como mecanismo de controle desse mesmo poder. Para Ihering, o Estado é a sociedade civil que se mostrou capaz de organizar a força social em torno da ação política. Portanto, o Poder Público é mais do que o Estado, sendo-lhe inicial a idéia de que é força organizada pelo Público e para o Público.

De outro modo, se o Estado Jurídico não deixa de ter as marcas da luta de classes, na sua ausência, o que fazer para relativizar o chamado Poder Extroverso (hierárquico, centralizado, verticalizado) e que supõe o mando e o cumprimento das decisões quase sem a interposição dos recursos?

Por isso, o poder sem recursos (como negação do Estado Jurídico), é o exercício da autotutela como uso arbitrário e desvirtuado da discricionariedade, um uso/abusivo da autodefesa em nome do Estado. Porém, neste caso, como se vê claramente, o Poder Público não é sinônimo de políticas públicas, simplesmente porque nada mais expressa do que a visão predominante.

Não raramente, o Estado que não é jurídico, é um Estado antipopular. Ao seguir esse padrão antipopular, por exemplo, ao descentralizar a Administração Pública, o Estado não relativiza a aplicação ou mesmo a vigência do Poder Extroverso. Por sua vez, o Poder Extroverso, sob os estritos limites da sociedade de classes, não é diferente de um mero administrador de interesses econômicos e dissimulador de conflitos sociais (Marx, 1989). No entanto, o princípio da autotutela deveria ter um sentido diverso, bem como outras implicações.

Mas, então, é possível ver a autotutela além dessa condição de simples autodefesa?

Princípio da Autotutela

É possível (re)ler a autotutela como autocrítica.

Pelo princípio da autotutela entende-se que a qualquer momento a Administração Pública pode, de ofício ou quando provocada, rever os seus atos, anulando-os por inobservância dos preceitos legais, ou revogá-los por questões de conveniência ou ainda quando oportunamente tenha que justificar suas decisões, respeitando sempre o devido processo legal (Cf. CF/88, art. 5°, LV).

Sobre o tema, é importante observar o teor das seguintes súmulas do STF:

Súmula 346

: "A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos".

Súmula 473: "A Administração Pública pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial". Neste segundo caso, está expressa a situação em que possa haver vício intencional, ou seja, ilegalidades.

Resta dizer que o princípio da autotutela justifica-se, teoricamente, por estar a Administração Pública a serviço dos interesses da coletividade. Neste aspecto é que se pode dizer que o administrador público é um gestor dos bens, dos interesses e dos serviços públicos. Este também é o sentido acentuado por Gasparini (1989, p. 10).

Esse patrimônio público é colocado sob a guarda, conservação e aprimoramento de alguém (o administrador público), que em hipótese alguma pode se considerar como seu proprietário.

Deve, portanto, o administrador atuar segundo a lei e a moralidade administrativa, tendo em vista sempre uma finalidade que deve ser a consecução do bem público. É essa a finalidade da atividade administrativa: sempre o interesse público ou o bem da coletividade. A prática administrativa, entretanto, é outra questão e, por sua relevância, deveria ser analisada separadamente.

Mas será possível que, no interior do Estado Jurídico, o Poder Extroverso tenha uma conotação mais democrática e republicana? Neste caso, cabe-nos propor e agir.

NoEstado Jurídico que desejamos construir — principalmente diante da corrupção, do descaso, da incompetência, da má-fé, da improbidade e da "ignorância política" —, a ninguém é permitido invocar o verbo "calar-se". Seria, no mínimo, aético invocar um verbo de ação para propugnar exatamente o seu contrário, ou seja, a omissão injustificada. Como é que se pode, com o pensamento na Justiça, invocar a omissão diante da nulidade, e ainda maispara quem quer ser ético? É contra-senso dos mais graves e também atentatório à lógica e à inteligência mediana. Este é, sem dúvida, um raciocínio mais cético do que ético.

A ação e a participação popular no Estado Jurídico seria um recurso, um remédio que poderia combater o mal do elitismo político e o cinismo que aprisiona tanto a universidade, quanto o senso-comum; tanto os ricos, quanto os pobres; tanto os políticos, quanto o povo. Enfim, seria um meio de se assegurar maior legitimidade às estruturas do Estado, do Governo, e à política de modo mais amplo. Seria uma maneira viável de se buscar maior legitimidade a esse moderno contrato social que nós muito alegamos, mas que tanta falta nos faz: a Constituição Política que não sai do papel.

Não raramente, o que vivenciamos no Brasil é a quebra de qualquer base política democrática e, com isso, é nítida a ausência de uma moral republicana. Mas tomemos o exemplo concreto da transformação do Poder Popular em Poder Extroverso.


Do Poder Popular e do Poder Extroverso

O moderno contrato social — a Constituição Federal — deveria atestar o reconhecimento da firma social, e assim deveria receber a chancela pública e popular. Por exemplo, o voto depositado no referendo que necessariamente deveria se seguir à promulgação da nossa Constituição, em 1988, seria o carimbo de encaminhamento à legitimação da soberania estatal, e ainda asseguraria que o Direito fosse mais reconhecido do que imposto e, portanto, realmente social. Um Estado Jurídico Popular é aquele em que o povo participa, referenda e assegura o controle do Poder Extroverso.

Neste contexto, por exemplo, a Assembléia Nacional Constituinte de 1986 representaria a soberania popular e a pujança do Poder Constituinte [12], ao passo que o ato da promulgação da Constituição Federal de 1988 — de modo inverso — instituiu o Poder Constituído e com este adveio o Poder Extroverso, agindo-se por contrato de representação exatamente desse novo contrato sócio-jurídico inaugural (a própria Constituição que nascia).

Quando o Estado formaliza o processo de renovação legislativa e instaura a Assembléia Nacional Constituinte, não estará com essa ação recorrendo à renovação de si mesmo e, agindo assim, também não estaria impondo a si mesmo a atualização das diversas condições objetivas (jurídicas e políticas) da autolimitação do Poder Público?

Assim, a passagem do Poder Constituinte ao Poder Extroverso equivaleria à transformação da soberania popular em soberania estatal – daí a idéia de que o "império da lei", garantido pela ação decisiva da força do Estado, não é ato arbitrário, mas sim decorrente da especialidade das funções públicas e inerente à organização do próprio Poder Constituído. A mesma divisão de funções e de repartições que compõe a interdependência dos poderes — um dos muitos meios aptos a permitirem a visualização do Estado Jurídico.

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Teoricamente, o Poder Extroverso não é o "poder de império" (em definitivo) porque a soberania popular, manifesta no Poder Constituinte, legitima as ações do Estado, tal qual deveria estar previsto na Constituição (promulgada), e assim também estaria de acordo (formalmente, intencionalmente) com os ditames do "império da lei", reafirmando, por fim, a autolimitação do próprio Estado.

De modo precisamente técnico, o que se entende por Poder Extroverso?

As normas de direito público outorgam ao ente incubido de cuidar do interesse público (o Estado) posição de autoridade nas relações jurídicas que trave. Expressa-se no poder de impor deveres ao outro sujeito, independentemente da concordância deste. A lei (espécie de ato estatal, regido pelo direito público) ingressa no âmbito jurídico dos indivíduos, impondo-lhes deveres. E, como se sabe, o legislador não consulta os atingidos pela lei a fim de saber se estão ou não de acordo com a norma a ser posta. O mesmo se passa com o ato administrativo, como a ordem determinando o pagamento de uma multa de trânsito. Também como a sentença do juiz determinando a entrega de bem por um indivíduo a outro. Por isso se diz, usando uma figura de linguagem, que a relação jurídica de direito público (isto é regida pelo direito público) é vertical: um sujeito (o Estado) se situa em posição mais elevada que o outro (o particular). A essa espécie de poder, consistente na possibilidade de obrigar unilateralmente a terceiros, chamamos de poder extroverso (Sundfeld, 2004, p. 69).

Vimos, portanto, que nem mesmo teoricamente nossa dimensão constitucional está completa e é claro que isto acarreta efeitos negativos ao Direito como um todo, à prática política, à estrutura de Governo, às bases sociais. Simplesmente não tivemos (em 1988) e não temos hoje em dia uma estrutura social e política de legitimação popular do Direito, e isso também acirra o cinismo em torno de toda pretensão jurídica do Estado, no Brasil.

De todo modo, sem procedimentos de legitimação populares, nossa descrença só tende a crescer e isto tanto vale para a política, quanto para o Direito; tanto está na lei, quanto no Estado, pois falta-nos esse atestado mínimo de validade, ou seja, não se trata de modificar as leis, mas sim de torná-las reconhecidamente válidas pelo povo.

O Estado Jurídico, então, é um tipo de Estado em que se propôs a incumbência de organizar o Poder Político com mais Justiça. Portanto, também pode-se dizer que não vale mais o binômio (seco) Direito/Coerção, pois, no âmbito do Estado Jurídico, se o Direito é o meio principal de regulagem do Poder Político, então, não faz muito sentido mesmo supor que o Estado produza um direito coercitivo para aplicar contra si.

Nos golpes militares, pode-se dizer que as forças armadas agem violentamente contra o governo, como ocorreu em 1964, no Brasil; mas agir com violência contra algum Estado, supõe-se um estado de guerra – e esta é outra situação, bem diversa da analisada aqui.

Neste âmbito, é melhor pensar em Direito/Democracia ou Direito/Garantia, uma vez que a democracia formal deverá assegurar que o Estado tenha limites e que as garantias institucionais sejam instrumentos válidos e diretos. Mas será que hoje nós contamos com esse mínimo?

Por sua vez, o chamado Estado-Força [13] será ainda visível e verificável se estendermos um pouco mais a análise que procura combinar Direito e Força, ou o binômio Direito/Coerção. Esta relação, por sua vez, corresponde à análise do Direito como fato social, uma vez que, em Durkheim, o fato social tem como conteúdo mínimo obrigatório a generalidade, a externalidade e a coercitividade [14]. Por isso, vejamos um pouco de Durkheim.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. O Estado-força e o não-Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 863, 13 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7575. Acesso em: 24 abr. 2024.

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