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O Estado-força e o não-Estado

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13/11/2005 às 00:00
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O Direito como Fato Social

Com sua concepção/teoria do Direito como Fato Social, Durkheim teria antecipado as principais implicações e/ou efeitos práticos do Estado Jurídico? Teria sido um continuador da perspectiva de Max Weber ao propor as bases do Estado de Direito, a partir da dominação racional-legal (legítima), interposta por meio do império da lei? Ou não há nenhuma relação?

Vejamos, para o próprio Durkheim, como se constituem os efeitos do denominado fato social [15]:

"É fato social toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter" (Durkheim, 1988, p. 52).

Tendo-se em conta esta definição de fato social, podemos dizer que o Direito não se reduz ao Direito Natural (até porque é uma construção social e histórica, como fato social materializável). Sobre essa questão ainda se pode invocar a recente história da positivação dos direitos humanos, como demonstração mais evidente de que esta positivação não se constituiu em processo homogêneo. Basta-nos ver que o direito à vida (o primeiro e básico Direito Natural [16]) não tem sua garantia assegurada na emblemática Constituição Americana.

Na verdade, esse processo histórico revela uma total subjetivação dos direitos naturais, do que decorrem opções e escolhas políticas, ideológicas, culturais, sociais, econômicas e isto propicia uma leitura da própria história política que circunda esses direitos escolhidos ou descartados.

Contudo, o próprio desenvolvimento histórico dos direitos humanos impôs limites ou restrições ao Estado, no sentido mais exato de que a positivação desses direitos naturais forjou um outro tipo de autocontenção estatal — o argumento externo (história) tornou-se garantia institucional interna (Direito Constitucional), e daí passou a proteger juridicamente o indivíduo e a obrigar o Estado.

De outro modo, poderíamos entender o Direito como um estrato social e derivado dos costumes, para além de sua positivação e/ou codificação, como é o caso do direito de lage, nas favelas e nos morros do Rio de Janeiro. Portanto, o Direito como fato social é profundamente histórico. Agora, a coerção sempre terá o mesmo sentido?

Já acerca da coerção inerente ao Direito, dirá Reale que pode tratar- se de pressão social condicionada, que é preciso boa dose de razoabilidade ou, simplesmente, que a coação potencial não é totalmente satisfatória:

"Podemos dizer que o pensamento jurídico contemporâneo, com mais profundeza, não se contenta nem mesmo com o conceito de coação potencial, procurando penetrar mais adentro na experiência jurídica, para descobrir a nota distintiva essencial do Direito. Esta é a nosso ver a bilateralidade atributiva" (Reale, 2005, p. 50).

Então, quando é que verificamos a própria bilateralidade da norma jurídica? Reale retoma toda a tradição para acentuar seu conceito, mas vamos direto ao ponto:

"[...] há bilateralidade atributiva quando duas pessoas [17] se relacionam segundo uma proporção objetiva que as autoriza a pretender ou a fazer garantidamente algo. Quando um fato social apresenta esse tipo de relacionamento dizemos que ele é jurídico" (Reale, 2005, p. 51).

Ou ainda, mais uma vez: "Bilateralidade atributiva é, pois, uma proporção intersubjetiva [18], em função da qual os sujeitos de uma relação ficam autorizados a pretender, exigir, ou a fazer, garantidamente, algo" (Reale, 2005, p. 51).

Assim, vimos como se estabelece um plano linear entre dois sujeitos de direitos. Porém, deve-se frisar que este plano em si não é suficiente para caracterizar o direito como fato social, pois falta-lhe a condição de ser geral: componente que, talvez, se esgote melhor nas alegações sobre as chamadas normas gerais e abstratas [19].

Esta condição também estaria mais próxima do efeito erga omnes, e a isso Reale irá acentuar como o necessário entrelaçamento de duas ou mais pessoas: "a) sem relação que una duas ou mais pessoas não há Direito (bilateralidade em sentido social, como intersubjetividade) (Reale, 2005, p. 51)" [20]. Também vemos em Reale, o liame entre objetividade e intersubjetividade na definição do Direito:

b) para que haja Direito é indispensável que a relação entre os sujeitos seja objetiva, isto é, insuscetível de ser reduzida, unilateralmente, a qualquer dos sujeitos da relação (bilateralidade em sentido axiológico); [...] c) da proporção estabelecida deve resultar a atribuição garantida de uma pretensão ou ação, que podem se limitar aos sujeitos da relação ou estender-se a terceiros (atributividade) (Reale, 2005, p. 51).

Mesmo o Estado deverá pautar-se pela relação de bilateralidade, no sentido de que suas implicações também atingiriam este chamado Estado Jurídico:

Dir-se-á que nesta espécie de normas não há nem proporção, nem atributividade, mas é preciso não empregar aquelas palavras em sentido contratualista [21]. Na realidade, quando se institui um órgão do Estado ou mesmo uma sociedade particular, é inerente ao ato de organização a atribuição de competências para que os agentes ou representantes do órgão possam agir segundo o quadro objetivo [22] configurado na lei. Há, por conseguinte, sempre proporção e atributividade (Reale, 2005, p. 52).

Vejamos um exemplo concreto da bilateralidade que se reflete no efeito erga omnes, ou seja, como externalidade e generalidade.

No âmbito dos direitos difusos (art. 81, parágrafo único, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor), o efeito da coisa julgada nas ações coletivas será erga omnes (art. 103, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor). Isto é, valerá para todas as pessoas se a ação for julgada procedente ou improcedente pela análise de mérito com provas produzidas adequadamente.

Na hipótese de procedência da ação, todos os consumidores se beneficiarão da sentença definitiva, inclusive para mover ações individuais. No caso de improcedência, há impedimento para a propositura de nova ação coletiva, mas não ficará impedido aquele que ajuizar ações individuais.

Conforme definição jurídica, erga omnes significa: "Perante todos. Ato, lei ou decisão que a todos obriga ou é oponível contra todos ou sobre todos tem efeito" (Paulo, 2002, p.127).

Também se define como locução latina que se traduz:

Contra todos, a respeito de todos ou em relação a todos. É indicativa dos efeitos em relação a terceiros, de todos os atos jurídicos ou negócios jurídicos a que se atenderam todas as prescrições legais, em virtude do que a ninguém é licito contrariá-los ou feri-los. Aplica-se indistintamente ao direito subjetivo e ao direito alheio (neminem laedere [23]), desde que a norma jurídica assegura aos respectivos titulares uso, gozo e posse, em relação a todas as demais pessoas (erga omnes), contra quem possam valer. (De Plácido, 2002, p. 312).

Este efeito de generalidade é o que tornaria o Direito reconhecidamente social e válido, pois se não é social na formulação (representação legislativa), que seja na aplicação (pelo Judiciário). Para Bobbio, no entanto, mesmo as referidas condições de generalidade e de abstração devem ser diferenciadas, bem como veremos que se trata de mera criação ideológica:

[...] julgamos oportuno chamar de "gerais" as normas que são universais em relação aos destinatários, e "abstratas" aquelas que são universais em relação à ação. Assim, aconselhamos falar em normas gerais quando nos encontramos frente a normas que se dirigem a uma classe de pessoas, e em normas que regulam uma ação-tipo (ou uma classe de ações) (Bobbio, 2005, pp. 180-181).

Essas condições de generalidade e de abstração como dissemos, por sua vez, são apenas implicações ideológicas/ideais e inerentes ao próprio Estado de Direito:

Se refletirmos sobre a quanto tenha inspirado a moderna concepção do Estado de direito a ideologia da igualdade e da certeza frente à lei, não será mais difícil dar-se conta do estreitíssimo nexo intercorrente entre teoria e ideologia, e compreender, portanto, o valor ideológico da teoria da generalidade e abstração, que tende não a descrever o ordenamento jurídico real, mas a prescrever regras para tornar o ordenamento jurídico ótimo, aquele em que todas as normas fossem em seu conjunto gerais e abstratas (Bobbio, 2005, p. 183).

Em concepção também baseada em Bobbio (2005), diz Celso Antonio Bandeira de Mello que a norma geral se refere a uma classe de sujeitos:

Generalidade opõe-se a individualização, que sucede toda vez que se volta para um único sujeito, particularizadamente, caso em que se deve nominá-la lei individual [...] a regra geral, isto é, dotada de teor de generalidade, apanha toda uma classe de indivíduos. Pode alcançá-los quer no presente, quer no futuro. Por isso, nada obsta que — sem prejuízo de sua generalidade — eventualmente colha, no presente, apenas um indivíduo e os demais, alojáveis na categoria, venham a existir somente no futuro (Mello, 2005, pp. 26-7).

Entretanto, entre generalidade e individualização da lei, há casos ou exemplos que podem repartir as atenções. Vejamos o exemplo do oligopólio da indústria tabagista: a indústria do fumo movimenta milhões de dólares no Brasil, mas é extremamente prejudicial à saúde da população. Assim, restringir sua ação provocaria a melhoria da saúde em geral [24], porém, com grande e grave impacto na economia.

A ação do governo, mantendo a produção como está, seria de boa-fé porque estaria resguardando os interesses dos produtores – até porque são milhares de pequenos produtores rurais. Mas, por outro lado, se atendesse aos interesses das empresas produtoras, estaria agindo de má-fé, pois seria movido pela ação do Loby. Mas, então, com boa-fé ou com má-fé, o efeito não seria o mesmo? Não se estaria simplesmente resguardando a produção — plantio e comercialização —, e isto não acarretaria no mesmo resultado?

Desse modo, para que a regra seja justa, ética, não basta que se defina e se reproduza como "fato social". Seria preciso garantir que o Direito como fato social também fosse acolhedor de um ethos republicano, tal qual se apresenta nas ambições do Estado Jurídico.

O Direito como fato social, portanto, ao mesmo tempo em que expressa o chamado Estado-Força [25], revela a ideologia integradora que há por trás do Estado de Direito. Uma condição ideológica/idealista que, por sua vez, deverá ter um pouco mais de materialidade no Estado Jurídico – uma materialidade em dois sentidos: a) a materialidade ou a objetividade [26] (jurídica) expressa no maior grau de juridicidade; b) a sociedade civil organizada (não-estatal ou estandartizada) é fonte de enorme demanda jurídica, de pressão social e, assim, exerce controle sobre o Poder Político.

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A exigência social de novos direitos impõe (obviamente) ao Estado a contenção de certas ações políticas – neste sentido, a soberania estatal, historicamente, sempre foi controlada, impulsionada pela soberania popular (a fonte da principal demanda por novos direitos [27]).

Quanto ao Direito como realidade da Coerção, e que corresponde à primeira parte da observação feita por Durkheim, em sua clássica definição de fato social, Reale ainda nos lembra da teoria de Ihering — o pensador originário deste binômio Direito/Coerção:

Para Jhering, um dos maiores jurisconsultos do passado milênio, o Direito se reduz a "norma + coação", no que era seguido, com entusiasmo, por Tobias Barreto, ao defini-lo como "a organização da força". Ficou famoso o seu temerário confronto do direito à "bucha do canhão", o que se deve atribuir aos ímpetos polêmicos que arrebatavam aquele grande espírito (Reale, 2005, p. 47).

Sob esse ângulo da abordagem, a coerção do Estado-Força rivaliza com o potencial de Justiça do Estado Jurídico, mas vejamos o próprio Ihering (2002), especialmente quando se refere ao binômio:

O fim do direito é a paz, o meio de que se serve para consegui-lo é a luta. Enquanto o direito estiver sujeito às ameaças da injustiça — e isso perdurará enquanto o mundo for mundo —, ele não poderá prescindir da luta. A vida do direito é a luta: a luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos indivíduos [...] O direito não é uma simples idéia, é uma força viva. Por isso a justiça sustenta numa das mãos a balança com que pesa o direito, enquanto na outra segura a espada por meio da qual o defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada, a impotência do direito. Uma completa a outra, e o verdadeiro estado de direito só pode existir quando a justiça sabe brandir a espada com a mesma habilidade com que manipula a balança (Ihering, 2002, p. 27).

A luta e a defesa pelo Direito, enquanto uma ação típica e própria da passagem do Estado-Força ao Estado Jurídico, encontra-se mais em meio à tempestade social e menos de acordo com a calmaria da dogmática jurídica. Em outra passagem de Ihering fica bem clara sua aposta na capacidade inusitada/quase-ilimitada do Poder Extroverso no bojo do Estado-Força, e é evidente que são idéias-força nem sempre populares e/ou democráticas:

O requisito absoluto do Poder Público, exigido mesmo pela própria finalidade do Estado, é a posse da suprema força, superior a qualquer outro poder no âmbito do Estado. Todo e qualquer outro poder, quer individual ou coletivo, deve situar-se sob ele, que há de colocar-se em superposição. Em função disso, a língua designa aquele aspecto da relação como submissão (submetido, súdito, sub-ditus) e este, como soberania (supra, supranus, sovráno), o próprio Poder Público que a detém, como autoridade, [28] o ato pelo qual o Poder Público se dilata por sobre um território que até então a ele não se submetia, como submissão, conquista [29](Ihering, p. 66).

De qualquer forma, analisando criticamente, é esta marca de segurança, de previsibilidade, de quase-certeza, tão presentes no Estado-Força, que ainda é utopia no Estado Jurídico. Como lembra Bobbio, precisamos ter uma certeza jurídica forjada no princípio da igualdade jurídica, uma certeza de que a Justiça está na outra ponta do Estado Jurídico:

"A lei é igual para todos", é, indubitavelmente, a generalidade da norma, isto é, o fato de que a norma se dirija não àquele ou a este cidadão, mas à totalidade dos cidadãos, ou então a um tipo abstrato de operador na vida social. Quanto à descrição abstrata, ela é considerada como a única capaz de realizar um outro fim a que tende todo ordenamento civil: a certeza. Por "certeza" se entende a determinação, de uma vez por todas, dos efeitos que o ordenamento jurídico atribui a um dado comportamento, de modo que o cidadão esteja em grau de saber, com antecedência, as conseqüências das próprias ações (Bobbio, 2005, p. 182).

Neste caso, trata-se da principal garantia da Justiça que se desejaria fosse o fundamento do ordenamento jurídico. O que ainda nos permite concluir que o Direito como fato social não implica necessariamente em Justiça — até porque pode sustentar-se unicamente como força e/ou mera dominação.

O Estado Jurídico deve patrocinar a autolimitação/contenção de toda forma de poder abusivo, e só assim será possível pensar na responsabilidade civil (e até penal) da pessoa jurídica.

O Estado Jurídico, finalizando, tem a grande vantagem de nutrir uma forte expectativa no Direito, como meio concreto de se controlar o Estado e assim se alcançar a Justiça. Porém, historicamente, o Estado Jurídico já enfrentou (enfrenta) adversários pesos-pesados, a exemplo dos regimes nazi-fascistas do passado (e viventes no presente).

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. O Estado-força e o não-Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 863, 13 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7575. Acesso em: 25 abr. 2024.

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