IV) LIMITES AO CONTROLE JURISDICIONAL DAS DECISÕES PROFERIDAS EM PROCESSO DE CASSAÇÃO DE MANDATO PARLAMENTAR POR FALTA DE DECORO
Por maior que seja o poder disciplinar concedido às casas do Congresso, não é ele ilimitado, eis que deve conformar-se com o texto da Constituição Federal.
Nesse sentido, decidiu a Suprema Corte dos Estados Unidos, no julgamento do caso Powell v. McCormack, 395 U.S. 486 (1969), que embora a Câmara dos Deputados (House of Representatives), a teor de expressa disposição constitucional (Art. I, 5), pudesse decidir se um deputado eleito preenchia os requisitos estabelecidos pela Constituição para tomar posse (Art. I, 2), não poderia fazê-lo com base em fundamento não previsto no texto constitucional.
O poder disciplinar de cada uma das Casas do Congresso, portanto, encontra limites no texto da Constituição Federal (e somente nele), ao qual, como os demais poderes, encontra-se submetido o Poder Legislativo.
Não basta, pois, ao parlamentar, já punido ou ameaçado de punição (o que pressupõe, na linha de precedente do STF, que já tenha sido instaurado o procedimento disciplinar perante o órgão competente da Câmara ou do Senado [44]), alegar que foi injustiçado, que há ameaça ou já houve lesão a direito subjetivo de que é titular.
Além de tal alegação, indispensável para que reste configurado o interesse de agir (sob o aspecto da necessidade da tutela jurisdicional), condição da ação sem a qual é inviável o exame do mérito e, conseqüentemente, da concessão do remédio pleiteado, deverá o congressista argüir a existência de violação do texto da Constituição Federal, na parte em que disciplina o processo de perda do mandato. Vale dizer, a alegação deve ser qualificada.
Sem que haja alegação de violação de alguma das provisões do artigo 55, inciso II e §§ 1º e 2º da Constituição Federal, que disciplinam o processo de cassação de mandato parlamentar [45], o Poder Judiciário não tem jurisdição sobre o caso (a causa de pedir delimita a jurisdição). O processo deve ser extinto, sem exame de mérito, na forma do artigo 267, VI, do CPC. É o que ocorre quando se diz, por exemplo, em decisão monocrática ou colegiada, que "não se conhece" de mandado de segurança.
Tendo em vista que a controvérsia deve ter natureza constitucional [46], de nada adianta, pois, alegar-se que foram desrespeitadas normas legais e regimentais. No primeiro caso, porque em assuntos internos das casas do Congresso, o regimento faz as vezes de lei, tal como ocorre com os regimentos internos dos Tribunais [47] (os quais, no que diz respeito à organização interna dos órgãos do Poder Judiciário, prevalecem sobre a legislação processual), o que ipso facto afasta a possibilidade de violação a preceito de lei [48]. No segundo, porque a interpretação de normas regimentais, consoante pacífica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal [49], é matéria que escapa ao conhecimento do Poder Judiciário [50].
Assim, como bem demonstrou o Ministro Carlos Ayres Britto é a própria Constituição Federal que "oferece os indicadores daquilo que seja intra-muros dos Parlamento e daquilo que não seja", isto é, o que é passível de controle pelo Poder Judiciário (especialmente do Supremo Tribunal Federal) e o que, bem ou mal, deve ser solucionado apenas pelo Legislativo:
"Tudo o que significar direta violação das autoridades do Parlamento a dispositivo constitucional é matéria externa corporis, suscetível de controle por este Supremo Tribunal Federal. Somente o que sobejar dos próprios enunciados da Constituição para se conter nas apertadas fronteiras da legiferação corporativa do Parlamento é que se define pela marca do intra-muros (repise-se), escapando, então, aos misteres controladores que são próprios desta Excelsa Corte de Justiça" [51].
Demonstrado que o controle jurisdicional do processo de cassação de mandato parlamentar impõe, para que seja examinada a existência ou não de lesão ou ameaça a direito, a alegação de afronta ao texto constitucional, chega-se a conclusão de que o mérito da causa somente [52]será apreciado caso a petição inicial argua que: a) o processo disciplinar não foi instaurado mediante provocação da Mesa da Câmara ou do Senado ou de partido com representação no Congresso Nacional (v.g., por provocação de um ou mais congressistas ou de cidadão); b) a votação não foi secreta; c) não foi atingido o quorum necessário (maioria absoluta); d) não foi assegurada ampla defesa.
As hipóteses [53] elencadas nos itens a) a c) dispensam maiores explicações. A alegação de violação ao princípio da ampla defesa, contudo, demanda algumas considerações adicionais.
No direito norte-americano, em que, como o nosso, a Constituição, de forma ampla, outorgou às casas do Congresso competência para disciplinar os seus procedimentos internos, entre os quais o de expulsão de seus membros por conduta incompatível com a dignidade do cargo, tal atribuição encontra limites apenas no próprio texto constitucional, como afirmou a Suprema Corte no caso U.S. v. Ballin, 144 U.S. 1 (1892).
Entre nós, posição semelhante foi manifestada pelo Ministro Carlos Ayres Britto no MS nº 25.594-DF, ao afirmar que o exame da alegação de violação das garantias constitucionais do contraditório e ampla defesa no processo de cassação deve ser feita "à luz de dispositivos constantes do próprio acervo normativo da Constituição" [54].
Aplicando tal entendimento ao tema ora examinado, isto significa que os regimentos internos da Câmara e do Senado devem estabelecer um procedimento que permita ao acusado exercer, minimamente [55], o direito de defesa que lhe foi assegurado pela Constituição Federal (de forma genérica no artigo 5º, LV e de forma específica no artigo 55, § 2º, "in fine"), sob pena de ser reconhecida, em caráter incidental, a inconstitucionalidade da norma regimental [56], e determinada a anulação do processo.
Caso, todavia, o rito estabelecido seja compatível como o conteúdo mínimo do direito de defesa, ainda que simplificado [57], isto é, que não tenha tantas formalidades quanto um procedimento jurisdicional (criminal ou civil) [58], não há que se falar em violação do princípio da ampla defesa [59]:
"Quando as normas legais ou regimentais forem de tal forma restritivas à defesa, que não assegurem a sua amplitude, podem até ser declaradas inconstitucionais. Mas se, dentro dos limites da razoabilidade, asseguram uma defesa ampla, não há dúvida de que a lei ou o regimento devem ser cumpridos" [60].
Não há que se falar em cerceamento de defesa, igualmente, em caso de alegação de descumprimento do regimento interno, eis que tal exame, como já visto, é vedado ao Poder Judiciário.
Também não cabe ao Poder Judiciário manifestar-se a respeito de decisões relativas à condução do processo (mormente se proferidas com base em interpretação de dispositivos do regimento interno), tais como, por exemplo, o indeferimento de prova reputada protelatória [61] ou a manutenção de prova acoimada de ilícita. E a razão é evidente. Se tais decisões dizem respeito à instrução do processo, somente podem ser tomadas pelo juiz da causa, que como já demonstrado é uma das Casas do Congresso e não o Poder Judiciário.
Apontadas as matérias que podem ser apreciadas pelo Poder Judiciário, escapam à revisão judicial as demais, em especial (além das que já foram mencionadas): a) a existência ou não do ato (= conduta) imputado ao parlamentar [62]; b) a sua qualificação como ofensivo ao decoro parlamentar; c) a proporcionalidade da sanção aplicada [63].
Com efeito, ao apreciar tais questões (e aquelas referentes à condução do processo), o órgão legislativo manobra dentro da área de discricionariedade que lhe foi conferida pelo texto constitucional, razão pela qual descabe a sua apreciação pelo Poder Judiciário:
"Em substância: exercendo atribuições políticas, e tomando resoluções políticas, move-se o poder legislativo num vasto domínio, que tem como limites um círculo de extenso diâmetro, que é a Constituição Federal. Enquanto não transpõe essa periferia, o Congresso elabora medidas e normas, que escapam à competência do poder judiciário. Desde que ultrapassa a circunferência, os seus atos estão sujeitos ao julgamento do poder judiciário, que, declarando-os inaplicáveis por ofensivos a direitos, lhes tira toda a eficácia jurídica" [64].
Deveras, o julgamento por falta de decoro "transcende os limites da pura legalidade", "pois depende de mil e uma circunstâncias extra-legais" [65] e, além disso, não há como demonstrar objetivamente qual o(s) erro(s) eventualmente existente(s) na decisão, pois ela não se encontra fundamentada, de tal forma que, nas hipóteses acima, a sua revisão pelo Poder Judiciário resultaria, simplesmente, na substituição do subjetivismo da maioria qualificada de uma das Casas do Congresso pelo subjetivismo da maioria simples de um Tribunal [66].
Via de conseqüência, apenas a Câmara dos Deputados e o Senado sobre elas poderão se manifestar, como bem ressaltou o Ministro Paulo Brossard em seu voto no Mandado de Segurança nº 21.360-DF: "Segundo a Constituição, a perda do mandato por falta de ‘decoro parlamentar’ ‘será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal’, e por ninguém mais, por mais alta que seja sua autoridade e mais eminentes suas atribuições" [67].
Contra tal entendimento, costuma-se objetar que não estabelecer limitação à atuação do Parlamento é dar margem ao arbítrio [68], especialmente no tocante à qualificação de determinada conduta como indecorosa (um parlamentar poderia ser cassado por qualquer motivo, ainda que não tivesse feito nada que atentasse contra a honra da instituição).
Ora, em primeiro lugar, se não existem limites é porque a própria Constituição Federal não os instituiu, remetendo a definição dos casos de falta de decoro parlamentar aos regimentos internos [69]. Logo, o que se pretende é criticar a justiça do modelo adotado pela Constituição, o que é juridicamente inaceitável. Por outro lado, não se há de confundir a ausência de limites com a ausência de controle, que pode ou não ser jurisdicional [70]. Em segundo lugar, se os membros do Congresso podem errar, também o podem os Ministros do Supremo Tribunal Federal, de modo que reduzir o número de julgadores não contribui para tornar mais legítima a decisão, mormente diante da ausência de preceito constitucional expresso autorizando a revisão judicial. Por fim, se decidir por último (o que é uma exigência da segurança jurídica) pode ser considerado, por definição e a priori, ser arbitrário, todos os órgãos jurisdicionais que julgam alguma causa em última ou única instância também o são [71]. Em temas como cassação de mandato e impeachment a opção que se colocou ao Poder Constituinte não era entre um julgamento parcial e um julgamento justo, mas entre a absoluta irresponsabilidade política e o risco de parcialidade no julgamento [72], tendo a Constituição preferido a segunda.
Por outro lado, não se deve procurar soluções para problemas constitucionais com base em argumentos ad terrorem, a partir de casos hipotéticos que até hoje não ocorreram e que talvez (para não dizer provavelmente) jamais ocorrerão. À semelhança do que salientam, a respeito do impeachment, autores norte-americanos, a falta de decoro, embora não se limite a tanto [73], tende a se identificar com a prática de ilícitos penais e, quanto a estes, parece não haver dúvidas que é cabível a cassação de mandato, caso a maioria da Câmara ou do Senado julgue que é inaceitável a permanência de um criminoso ou contraventor no seu meio.
Outrossim, não havendo limitação no texto constitucional, o ato atentatório ao decoro parlamentar poderá ter sido praticado no exercício do mandato ou fora dele, tanto na vida privada do parlamentar como no exercício de outro cargo, como de Ministro de Estado [74], Secretário Estadual ou Municipal ou chefe de missão diplomática temporária (artigo 56, I, da CF).
Assim é nos Estados Unidos, em caso de impeachment [75] ou de expulsão de congressista [76] e assim deve ser no Brasil:
"É imprescindível à honra e ao decoro parlamentar que em todas as circunstâncias da vida cotidiana o sujeito tenha uma conduta digna: nas suas obrigações como pai, marido, filho, empresário ou trabalhador, contribuinte e, por fim, representante político. Não é possível postular meia honra – em apenas uma esfera social – pois a honra rejeita a fragmentação do sujeito. Afinal, trata-se sempre da mesma pessoa" [77].
Como bem ponderou o Ministro Nelson Hungria, "o procedimento que pode ser reputado incompatível com o decoro parlamentar não é só aquele que o acusado tenha tido no seio da corporação legislativa a que pertence, senão também fora dele, mas com evidente ricochete sobre a dignidade da corporação" [78].
O que importa é que o fato seja capaz de abalar a confiança do povo no parlamentar e no próprio Congresso.
Não se exige, ainda, a contemporaneidade entre o ato e o mandato parlamentar, como tem decidido o Supremo Tribunal Federal, sendo cabível a punição disciplinar ainda que o ato tenha ocorrido em outra legislatura [79] ou antes mesmo de o acusado ter adquirido o status de parlamentar.
A falta de decoro, a imoralidade, não prescrevem (ainda que o fato também seja tipificado como crime e, como tal, possa prescrever), embora, a critério dos membros da Câmara ou do Senado, possam ser relevadas, considerados a gravidade da ofensa (uma briga na juventude não tem o mesmo peso que a prática de tortura, por exemplo) e o tempo decorrido.
Via de conseqüência, entendemos que uma nova eleição do congressista (após o prazo da inelegibilidade) cujo mandato foi cassado não impede que a Câmara ou o Senado volte a aplicar, uma vez mais, a medida disciplinar.
Veja-se, nesse sentido, a lição do preclaro PINTO FERREIRA:
"A desqualificação do parlamentar não impede que ele venha a candidatar-se novamente. Eventualmente pode reeleger-se. Mas sobra, ainda, à Câmara, o exercício do seu poder para cassar novamente o mandato do dito membro" [80] (grifou-se).
Idêntica, ainda, deve ser a solução caso o congressista tenha renunciado para escapar à punição e seja novamente eleito, em eleição imediatamente subseqüente ou posterior.
Sem razão, neste particular, o entendimento de que "os fatos ou atos imputados devem ser de ocorrência posterior à eleição", pois os "anteriores à eleição são de se presumirem [81] conhecidos do eleitorado, que é o juiz máximo da conduta de seus homens públicos" [82].
Com efeito, nos Estados Unidos, em que, como no Brasil, a Constituição não limita neste aspecto o poder disciplinar da Câmara e do Senado, diz-se que na prática o Congresso não cassa um mandato com base em fatos passados se os eleitores deles tinham conhecimento e assim mesmo escolheram aquele indivíduo para ser o seu representante. Trata-se, porém, de uma orientação política do Congresso, e não de falta de autoridade, pois tanto a Câmara quanto o Senado aplicaram outras penalidades (p.e., censura) aos seus membros por má conduta anterior, ainda que ela fosse de conhecimento dos eleitores [83].
Como bem lembrou o Ministro Celso de Mello, "o cidadão tem o direito de exigir que o Estado seja dirigido por administradores íntegros, por legisladores probos e por juízes incorrputíveis" [84]. Não se trata, contudo, de um direito individual e disponível, do qual possa abrir mão parcela dos eleitores (para escolher criminosos como seus representantes), mas de um direito difuso e indisponível, pertencente a toda coletividade. Os eleitos não são mandatários de seus eleitores, no sentido que o termo tem no direito civil, mas representantes do povo, como um todo, embora tenham recebido os votos de apenas parte dele.
Logo, nem o Poder Judiciário, nem uma parcela reduzida do povo (em alguns Estados, bastam poucos milhares de votos para eleger um deputado), podem impor a qualquer das Casas do Congresso Nacional a convivência com indivíduos de conduta moral duvidosa.