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A noção de justiça formal em Chaïm Perelman:

igualdade e categorias essenciais

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20/11/2005 às 00:00
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III. A NOÇÃO DE JUSTIÇA FORMAL (AS CATEGORIAS ESSENCIAIS).

            De acordo com Perelman, dentre os pontos convergentes e os divergentes das diversas concepções de justiça, é necessário se talhar uma fórmula de justiça que exsurja de um acordo unânime.

            A noção de justiça consiste, por certo, na aplicação da idéia de igualdade, porém como um elemento indeterminado, ou seja, que possibilite o levantamento e discussão de suas divergências.

            De tal elemento variável, numa pluralidade de determinações, é que advirão as mais opostas fórmulas de justiça, até que se chegue à um ideal de limite, sendo justiça a igualdade, não absoluta, mas a parcial, como algo possível de execução prática.

            Ser justo, persiste Perelman, é tratar a todos de forma igual, contudo tendo em mente a idéia de "limite", em contraposição às possibilidades de realização de tais critérios de distribuição do que seja justo.

            É a noção de "categorias essenciais" de Perelman, pela qual a justiça implica o tratamento igual dos seres que são iguais em dadas circunstâncias. Só é realizável a justiça desde que haja identidade comum entre os indivíduos à que a mesma é aplicada. Citando Tisset, Perelman exemplifica: não há justiça nas relações entre homens e vegetais.

            Tal conceito perelmaniano já serve para aplacar a ira dos defensores de cada tipo de critério de distribuição de justiça, contudo se percebe que um novo problema surge, consistente em se saber como deverá ser o tratamento entre os membros de uma mesma categoria essencial.

            Perelman argumenta que, tomando como vetor variável ("elemento indeterminado") cada fórmula concreta de justiça, será neste campo de ação que o desacordo se instalará. Vale dizer: dentro das diversas categorias essenciais, haverá de existir um tratamento igual entre as pessoas que sejam iguais em certo ponto de vista.

            Em síntese, Perelman traça uma definição de justiça formal (abstrata), como "(...) um princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma (...)" [25]

            Tal definição é formal, justamente porque não se esquadrinha as categorias que são reputadas essenciais para a aplicação da justiça; se permitindo, assim, se surjam e sejam discutidas as divergências no exato instante de estabelecimento de tais categorias, no plano, logo, da justiça concreta.

            A partir daí, Perelman retorna à análise dos seis critérios concretos de administração da justiça, e a cada um deles, através de argumentos convincentes, o mesmo aplica a fórmula de justiça formal.

            Quanto ao primeiro critério, o de "dar a cada qual a mesma coisa", se percebe que, diferentemente do que se imagine, o mesmo não traduz um "humanitarismo igualitário"; posto que, sendo possível se restringir a aplicação deste princípio à uma categoria essencial, tal categoria, se for mais qualificada que as demais, a exemplo dos empresários e dos parlamentares, e. g., poderá se valer de tal discurso para se considerar superior às demais classes.

            Logo, surge daí uma nova fórmula para tal critério, que, de um modo geral, reflete a própria noção de "justiça formal", qual seja: "a cada membro da mesma categoria essencial, a mesma coisa."

            Quanto ao segundo critério, "a cada qual segundo seus méritos", Perelman observa ser premente que se possua o mérito ou o demérito, contudo num mesmo grau ou intensidade, o que possibilita, assim, recompensar ou punir, dentro de sistemas equivalentes, e de uma adequada representação dos fatos subsumidos à apreciação do aplicador da norma.

            De relação ao terceiro critério, "a cada qual segundo suas obras", o belga admite que as obras ou conhecimentos terão de ser considerados equivalentes aos olhos do aplicador da justiça, se considerando, pura e simplesmente, o resultado do trabalho ou a qualidade intrínseca da obra, sem se ater ao esforço ou tempo dispendido pelo agente.

            A partir desta noção, Perelman justifica a necessidade da existência do dinheiro, para comparar a valiosidade de obras; e de um programa (um esquema de regras procedimentais), para se comparar candidatos num concurso público, por exemplo.

            Quanto ao quarto critério, "a cada qual segundo suas necessidades", o mestre de Bruxelas propõe que se busque a determinação das necessidades essenciais dos seres humanos, consideradas estas, a partir de uma pesquisa psicológica de prioridades, dentro de uma grade hierárquica, chamada de "mínimo vital", que levará em conta as exigências do organismo em geral, contudo não as necessidades mais refinadas e particulares.

            Desta concepção, Perelman sugere o que ele próprio alcunha de noção de "justiça social", que é distinta da "caridade", que apenas leva em conta os seres enquanto indivíduos, com caracteres particulares.

            No que tange ao quinto critério, "a cada qual segundo sua posição", Perelman explicita que se deve ter em conta a repartição habitual, mas nem sempre necessária, dos seres em classes hierarquizadas.

            Nesse toar, há de se tratar as classes hierarquicamente superiores de forma distinta das mais inferiores, lhes conferindo tantos direitos, quantos deveres; contudo, de forma igual, entre cada membro de uma mesma classe, pena de se criar o que ele denomina de uma "república de amigos".

            Quanto ao sexto e último critério, "a cada qual segundo o que a lei lhe atribui", tal difere de todos os outros anteriormente mencionados, posto que, por esta concepção, o aplicador da justiça não possui livre escolha para ditar esta ou aquela fórmula de justiça concreta.

            Ao aplicador é imposto o critério estabelecido pela regra, que, no particular, é a jurídica, e não a moral. Por tal critério, desimporta a escolha moral, advinda da livre adesão da consciência do magistrado.

            O que vale é a ordem jurídica estabelecida, que determina as categorias, cuja aplicação competirá ao julgador.


IV. CONCLUSÕES.

            Perelman, já em suas derradeiras conclusões acerca de sua concepção de "justiça formal", perquire em que medida o juiz, em face da lei, poderá fazer valer sua concepção particular de justiça.

            A tal pergunta, o mesmo responde que, a depender da consciência do magistrado, seu nível de isenção será maior ou menor; ainda que, Perelman ressalte, jamais existirá um juiz absolutamente isento, sob o aspecto de detenção de uma íntima concepção de justiça, até mesmo em razão de sua humana condição.

            De outra quadra, se torna óbvio admitir que as leis são elaboradas, segundo uma concepção de justiça dos detentores do poder, não coincidente com a da maioria da população.

            Em casos que tais, compete à jurisprudência reduzir, ou mesmo aplacar estas discrepâncias, até em função do já tão conhecido descompasso entre a edição da lei e a constatação das evoluções morais da sociedade pelo Parlamento.

            Perelman, adotando postura pós-positivista, no esteio de Kelsen, peremptoriamente afirma que não pode haver um direito injusto, já que só se pode conceber e respeitar uma única e universal concepção justa, a da lei, pena de se tornar impossível a aplicação da própria justiça.

            A cada situação, portanto, se deve aplicar uma fórmula de justiça concreta, que descreva uma coerência mínima nas ações que vinculam as leis e os legisladores, nos remetendo àquele brocardo latino "pacta sunt servanda", pelo qual uma vez pactuado, deve ser cumprido.

            De qualquer sorte, a aplicação da justiça formal exige a prévia delimitação das categorias consideradas essenciais, dentro de uma certa escala de valores, que são mutáveis no tempo e no espaço.

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            De fato, se a noção de justiça é confusa, isto se dá porque toda definição de justiça concreta se interconecta com uma visão subjetiva, parcial, carregada de forte coloração emotiva, do próprio universo.

            Apenas por meio de uma definição de justiça formal, que é clara e racional [26], será possível se neutralizar esses juízos de valor [27], de tal modo que haja um unânime acordo quanto à sua aplicação.

            A grande questão, entrementes, é se saber situar diante das inúmeras dificuldades, admite Perelman, decorrentes das clivagens travadas entre a justiça formal e a justiça concreta, como, por exemplo, na definição de "equidade", conceito fundamental trazido por Perelman, que o relacionou com "justiça social", o que, desde já, revela, no pensamento do professor belga, o que é digno de nota, uma séria preocupação com a questão da garantia e emancipação dos direitos sociais.


BIBLIOGRAFIA

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NOTAS

            01

Chaïm Perelman nasceu em Varsóvia, Polônia. Em 1925, emigrou para a Bélgica, onde sedimentou sua carreira, lecionando lógica, Moral e Filosofia na Universidade de Bruxelas até 1978.

            02

PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Trad. de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, passim.

            03

Ibidem, p. XIII.

            04

Sobre a noção de "auditório", cf.: PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: uma nova retórica. 5ª tiragem. Trad. de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 20 e segs; PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. 3ª tiragem. Trad. de Verginia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 1998, passim, em especial, p. 143-144.

            05

COELHO, Fábio Ulhôa. Prefácio à edição brasileira. In.: PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação...., ed. cit., p. XV.

            06

Perelman se aproxima de Recaséns Siches, ao propor que a racionalidade argumentativa, ainda que frágil, é que deve justificar as decisões jurídicas, com base numa lógica do razoável ( ou proporcional), cimentada em "topoi" extraídas da estrutura da realidade fática. Clássico é o exemplo do marroquino, com suas esposas, algo legítimo no Marrocos, mas considerado bigamia na França, e. g. Cf.: PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica...., ed. cit., passim, no particular, p. 109-110.

            07

Platão, calcado nas experiências orais transmitidas por Sócrates, na Grécia Antiga, foi o precursor do que mais tarde ficaria conhecido como as bases do "Organon" de Aristóteles, conjunto de escritos aristótelicos sobre "lógica". Platão buscou, durante toda sua vida, o conhecimento filosófico racional, no rastro de uma verdade absoluta e universal. Platão contrapunha-se aos sofistas ( "sophia", expressão grega a significar "sabedoria"), que eram mestres do ensino da retórica e da oratória, e que cobravam pelos seus serviços àqueles que quisessem adentrar na política da democracia grega. Em suma, os sofistas, para os pré-socráticos e platônicos, eram "livres pensadores", porém não filósofos. Para Platão, cognome de "Arístocles", a justiça representava agir de acordo com a sua natureza ou essência, fundando-se na verdade, como adequação entre o pensamento ( idéia) e o evento ( realidade exterior). A noção ôntica de Platão, acerca do que seria "justiça", liga-se muito à idéia de realidade suprema, do mundo inteligível das formas, universais e necessárias, porque existentes em si mesmas, e não na consciência de cada um, adstrita ao mundo sensível da matéria, parcial e mutável. Mister se faz observar que Platão não era um democrata, e defendia uma "aristocracia do saber", com a idéia contrafática do "Rei Filósofo". Cf.: PLATÃO. A República. Trad. de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002, passim.

            08

René Descartes, considerado po uns como o "pai da filosofia moderna", foi quem engendrou um método "matemático" aplicado à filosofia, com o mito da neutralidade axiológica. O filósofo, dizia o francês, deve ser, antes de mais nada, um pesquisador, e nunca aceitar nada como verdadeiro, sem demonstração empírica da tese ofertada. Para ele, acima de tudo, há de se duvidar de tudo, só sendo real, a princípio, aquele conhecido adágio "Cogito, ergo sum"( penso, logo existo). O pensamento cético cartesiano lhe rendeu inúmeros sucessores, a ponto de até hoje influenciar o pensamento filósofico moderno, pelo qual o homem é simplesmente um ser pensante, que duvida daquilo que é indemonstrável pela experiência, só acreditando na existência da alma. Descartes, em suas considerações morais, encontráveis na 4ª parte de sua obra "Discurso do Método", vislumbra o alcance da verdade, como bem supremo, somente através da razão. Cf.: DESCARTES, René. Discurso do Método e Regras para a direção do espírito. Trad. de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 41-46.

            09

PERELMAN, Chaïm. Ética...., ed. cit., p. 4.

            10

ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. Trad. de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 104. Sobre um conceito de "justiça social", segundo Aristóteles, cf.: MACEDO, Ubiratan Borges de. Liberalismo e justiça social. São Paulo: IBRASA, 1995, p. 78-82.

            11

Numa lição retórica aristótelica, "definição" e "conceito" não são sinônimos, mas sim a definição como explicitação lingüística de uma dada qualidade, total ou não, de um conceito, que a engloba. De outra quadra, o juízo sintético de Perelman se afasta daquele juízo "a priori" de Kant, que é analítico e conduz à uma conexão intrínseca entre o sujeito e o predicado ( objeto).

            12

GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Pierre Fruchon ( Org.). Trad. de Paulo César Duque Estrada. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 28.

            13

A expressão "lógica" nunca foi utilizada por Aristóteles, que preferia o termo "analítica". "Lógica", no sentido usualmente empregado, só surgiu, pela primeira vez, com os filosóficos estóicos e por Alexandre de Afrodisia. Para Aristóteles, "analytikós" correspondia ao ato de dissolução para busca dos elementos, causas ou condições. Um juízo analítico é aquele no qual o predicado já se está contido no próprio sujeito. Tal juízo visa explicitar o significado do que já se contém no sujeito, ainda que isto repouse desconhecido. Cf.: CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: dos pré-socráticos a aristóteles. v. 1. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 357.

            14

Em essência, Kelsen se apropria da noção platônica, de cunho ontológico, segundo o qual o justo é aquele que é feliz, posto que se comporta de acordo com a lei, dando à justiça um cunho normativo. Bom frisar que Kelsen, na busca do surgimento de uma ciência pura do Direito, relega questões morais ao plano da filosofia do direito. Cf.: KELSEN, Hans. O que é justiça? 3ª ed. Trad. de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 6-7.

            15

Ronald Dworkin discorre sobre a existência de um ceticismo interior, no pensamento moral moderno, e isto é decorrente de interpretações ou percepções parciais do universo como um todo, particularmente influenciado pelo atual pluralismo cultural do ensino sobre questões morais. É o que ele denomina de "posição moral geral e abstrata" de um ceticismo dito "exterior" ( em verdade, interior), algo pelo mesmo condenado, tendo em conta, diante do embate de argumentos que hoje se exigem para a validação de qualque argumentação moral, a impossibilidade do descompromisso ou da pura neutralidade em tais questionamentos nos tempos atuais. Melhor dizendo, não há como se ponderar ser uma convicção moral melhor do que outra, já que cada argumento é construído num determinado lugar e tempo, e naquelas circunstâncias, tal ou qual ponto de vista moral é o mais justo. Cf.: DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 102-108.

            16

Atente-se, em particular, para o movimento que ficou conhecido por "Escolástica", capitaneado por Tomás de Aquino, que exigia que cada argumento filosófico, especificamente o de cunho religioso, fosse baseado na autoridade de Deus, cujo representante terreno era o Vaticano e seu papado. A Igreja Católica adota, então, o que se convencionou como "dogmatismo religioso cristão", a representar a filosofia oficial do catolicismo, e que influenciou, por demais, a própria dogmática jurídica. Cf.: GUERRA FILHO, Willis Santiago. A Filosofia do Direito: aplicada ao direito processual e à teoria da constituição. São Paulo: Atlas, 2001, p. 39.

            17

Baruch ( ou Benedito, de "bento") de Spinoza, filósofo judeu, nascido em Amsterdã ( Holanda), criticou duramente a filosofia da 2ª Escolástica, aduzindo, resumidamente, que não era concebível os homens serem forjados à imagem e semelhança de Deus, porque estes, ao contrário do Ser Supremo, são faticamente imperfeitos. Spinoza se considera um filósofo religioso, e como tal não separa o amor ou vontade ( divino) da razão ( humana). Pelas suas idéias, o holandês foi excomungado e execrado, porque ousou discordar dos dogmas eclesiásticos, e preferiu propugnar por uma religião vivida e filosoficamente compreendida, na busca da experiência pessoal de Deus, que seria uno em sua essência e múltiplo em suas existências ou manifestações. Cf.: SPINOZA, Baruch de. Ética: demonstrada à maneira dos geômetras. Trad. de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2002, passim.

            18

Hannah Arendt, reabilitando a noção de "praxis" de Aristóteles, essencialmente criativa, propõe a adoção de ações ético-políticas ( algo não analisado pelo seu mestre, Martin Heidegger), ao invés da valorização da técnica ou ciência, como ações "sem objetivos", que só conhecem "finalidades desinteressadas" ( como a glória, a liberdade e a justiça), pena de se perder o sentido da própria existência do homem. Cf.: ARENDT, Hannah. "Tradition and the modern age." In.: Between past and future - eight exercises in political thought. New York: Penguin Books, 1980 apud ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 198.

            19

Emmanuel Kant centralizou sua noção de justiça na norma, valorizando o Direito, vindo daí a expressão "jusnaturalismo", como um "dever-ser" ou ideal de permissão de realização da coexistência dos arbítrios. Para tanto, de igual modo e para todos, mister se faz uma esfera de liberdade, ou seja, de autonomia da vontade do ser humano, enquanto ser racional. Logicamente, na cultura moderna, a noção de liberdade passou a ter primazia sobre a de igualdade, particularmente na defesa e garantia dos direitos civis. O filósofo de Koenigsberg constrói uma filosofia crítica, seja da razão pura ( teórica), seja da razão prática ( fundada numa "metafísica dos costumes"), pela qual o Direito integra a Moral. A liberdade pressupõe, do homem, dotado de vontade, uma "boa-vontade" ou "vontade pura" ( leia-se: razão). A ação moral humana não se submete à condicionamentos externos, a exemplo de paixões, desejos ou apetites, sendo ditada apenas pela consciência do dever de agir moral, com lastro na razão prática, e que busca foros de universalidade. Cf.: KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. 2ª ed. Trad. de Edson Bini. São Paulo: Ícone, 1993, passim.

            20

BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. 2ª ed. Trad. de Alfredo Fait. São Paulo: Mandarim, 2000, p. 115 e segs.

            21

John Rawls é um filósofo construtivista, a exemplo de Kant e Aristóteles; ao contrário daqueloutra corrente diametralmente oposta, a dos desconstrutivistas, em verdade, livres pensadores políticos (portanto, não rotulados de "jusfilósofos"), a que se filiam Nietszche, Marx e Foucault. Nesse particular, a distinção entre filosofia jurídica (voltada para a paz) e a filosofia política (orientada à guerra) é nítida, já disse Paul Ricoeur. Em sua "Teoria da Justiça", Rawls, neokantiano dos EUA, combate ferrenhamente o tradicional utilitarismo norte-americano, centrando sua premissa na situação hipotética ideal da "posição original", num novo contrato social. A sociedade, formada por pessoas livres, iguais, num esforço cooperativo, diante do "véu da ignorância", abstrairiam suas condições individuais e empíricas, e a partir daí, numa escolha racional, elegeriam aqueles princípios que melhor regeriam suas vidas, que seriam de duas matizes: o da igualdade (privilégio das liberdades individuais e dos direitos civis) e o da diferença (preponderância dos direitos sociais). Tais princípios fundantes de uma sociedade justa, porém, haveriam de ser legitimados por um procedimento, como exigência de universalidade, de justificação pública. Cf.: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997, passim.

            22

Sobre a crítica social-democrata, especialmente de Pierre Rosanvallon, às teses de Rawls, cf.: TORRES, Ricardo Lobo. Reformulação das teses de Rawls. In.: PAIM, Antônio et al. Avaliação crítica da social-democracia: o exemplo francês. Ubiratan Borges de Macedo (Org.). São Paulo: Instituto Tancredo Neves, 2000, p. 91-98.

            23

Robert Nozick, Michael Walzer, Friedrich A. Hayek, Alasdair MaCIntyre, Karl Popper, e vários outros filósofos políticos, cada qual a seu próprio modo, gestaram o que se alcunhou de "comunitarismo", em contraposição ao liberalismo individualista de John Rawls. Os comunitaristas, em suma, criticam a posição rawlsiana, que, depois acabou por ser revista pelo próprio professor norte-americano, de que haveria de ter uma única e universal forma de novo contrato social. Para os comunitaristas, tal pretensão universalizante é descabida, pois despreza o espírito particular de cada comunidade, com suas próprias tradições, usos e costumes.

            24

Cf.: MACEDO, Ubiratan Borges de. Renascença, apogeu e crise do liberalismo, Ethica - Cadernos Acadêmicos. Rio de Janeiro: UGF, 1998, v. 5, n. 2, p. 75-92.

            25

PERELMAN, Chaïm. Ética...., ed. cit., p. 19.

            26

Sobre a noção de "razão histórica", contraposta à de "razão eterna", demonstrada por Perelman, em seu "Tratado da Argumentação", cf.: PEÇANHA, José Américo Motta. A teoria da argumentação ou nova retórica. In.: Paradigmas filósoficos da atualidade. OLIVA, Alberto et al. Maria Cecilia M. de Carvalho ( Org.). Campinas: Papirus, 1989, p. 232.

            27

Cabe a crítica, aposta por Fábio Ulhôa Coelho, ao pensamento perelmaniano, visto que os juízos de valor são apresentados, pelo belga, de forma arbitrária, portanto, insusceptível de tratamento racional. Contudo, ressalta Ulhôa Coelho, o próprio Perelman, mais tarde, em sua "Nova Retórica", percebe que esta aplicação irracional do direito só levaria os seres humanos à violência, propondo, então, um projeto teórico de pesquisa de uma "lógica dos julgamentos de valor". Cf.: COELHO, Fábio Ulhôa. Prefácio à edição brasileira. In.: PERELMAN, Chaïm. Tratado da argumentação...., ed. cit., p. XV.
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Sobre o autor
André Luiz Vinhas da Cruz

procurador do Estado de Sergipe

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, André Luiz Vinhas. A noção de justiça formal em Chaïm Perelman:: igualdade e categorias essenciais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 870, 20 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7607. Acesso em: 28 dez. 2024.

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